Eduardo Galeano, jornalista e escritor uruguaio, autor de obras imortais como ‘Veias Abertas da América Latina’ ou ‘Futebol ao sol e à sombra’ costumava colocar um aviso, simples, escrito à mão, na porta da sua casa em Montevideu com a frase “cerrado por fútbol”, que em tradução para português, significa “Fechado para o futebol”, durante os aproximados 30 dias em que parte do planeta fica numa espécie de transe futebolístico com o Campeonato do Mundo. Mas este vai ser o primeiro Mundial sem o aviso à porta de Galeano, que nos deixou em 2015. Como brasileiro, e também jornalista, é um imenso desafio tentar explicar o efeito que um Mundial de futebol tem sobre os latino-americanos, em particular sobre os habitantes da terra de Pelé.
Dividimos o tempo das nossas vidas neste quadriênio que separa uma ‘Copa’ de outra. Como os espanhóis, temos o hábito de tratar a taça como copa, o campeonato mundial grafado sempre em letra maiúscula, assim como a Seleção. Orgulhamos-nos de ser o único país a ter participado em todos os Mundiais, e a exigência do brasileiro é não menos do que o título. Mas engana-se aquele que brada que o Brasil é o ‘país do futebol’. Não o é. Digo que Inglaterra ou Alemanha, sim, podem proclamar-se como tal. Pelas bandas germânicas e britânicas, em qualquer canto joga-se uma liga, um campeonato, e por mais amador que seja, há organização, há adeptos, há estádios, há, portanto, futebol. No Brasil, excetuando as capitais dos estados e demais grandes centros urbanos, o futebol no interior do país é relegado ao abandono. O Brasil não é, nesta minha visão, o país do futebol, mas sim o ‘país da Copa’.
Mesmo quem dá a mínima para as disputas clubísticas, entra nesta espécie de transe coletivo que o Mundial provoca. Lembramo-nos onde estávamos, o que fazíamos, quem estava ao nosso lado quando Ronaldo marcou os dois golos à Alemanha, quando Baggio chutou para longe o penálti, e para os mais experientes, o que Pelé e aquela assombrosa seleção fizeram em 1970. Mas também lembramo-nos o que Zidane, Paolo Rossi ou a Alemanha nos fizeram.
8 de julho de 2014, meia-final do Mundial em solo brasileiro, encontrei-me com minha então namorada (hoje esposa) para vermos aquele fatídico Brasil x Alemanha nas areias de Copacabana, num espaço criado pela organização para os fãs aglomerarem-se. O dia estava esquisito, nublado (entenda-se dia nublado como esquisito no Rio de Janeiro, onde são raros os dias de trégua solar), e a Alemanha ia marcando, um após o outro. Ao intervalo, com o placar em 0x5 e com a ameaça, depois concretizada, de um temporal, fomos abrigar-nos num pub próximo, e lá, na companhia de constrangidos alemães, terminamos de ver o martírio futebolístico brasileiro. Já são quase quatro anos desde esse dia, e tenho a sensação de que o Brasil entrou numa espécie de maldição após aquele 8 de julho. A economia descarrilou-se, a política, talvez nossa maior tragédia, vive desde aquele ano uma inacreditável sucessão de descalabros e escândalos que a ‘Mani Politi’ brasileira tem, de várias formas, evidenciado. A isto, como clara consequência, soma-se o caos social, com desemprego, preços nas alturas, salários desvalorizados e uma moeda suscetível a qualquer twitter de Trump. A mais recente crise, com a greve dos camionistas que está a deixar o país paralisado, apenas reflete os dias conturbados pelos quais o Brasil tem passado.
Também os dirigentes do futebol brasileiro já não são os mesmos de há quatro anos, com José Maria Marin, então o presidente da Confederação Brasileira de Futebol, preso pelo FBI no desmantelamento da cúpula corrupta da FIFA, a aguardar sentença numa prisão de Nova Iorque. O então vice-presidente, que passou a ser o ‘chefe’ do futebol local, Marco Polo Del Nero, foi afastado e recentemente banido do futebol pela FIFA atual.
É claro que Klose, Müller, Kroos, Khedira e Schürrle não têm culpa das mazelas brasileiras, de nossos crónicos problemas sociais e nossa hereditária corrupção política. Mas eles mexeram com nossa autoestima, em ‘nosso’ evento particular. Não somos os únicos a sofrer com a eficácia tática alemã, pois como disse certa vez o antigo avançado inglês Gary Lineker, “o futebol é um jogo simples, 22 homens correm atrás de uma bola durante 90 minutos e no fim os alemães sempre vencem”. Brasil e Alemanha podem encontrar-se já nos oitavos na Rússia, pois são vizinhos de grupo. Caso seja mesmo inevitável este encontro, que de alguma forma os deuses do futebol possam ajudar-nos a dar cabo desta maldição, para que possamos ter algum alívio até 2022.
*Yuri Bobeck é jornalista, com passagens por rádio UEL FM, jornal Lance!, TV Cultura e TV Globo. Colabora com o portal SAPO neste Mundial’2018.
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