No dia 6 de junho de 1944 estávamos em plena Segunda Guerra Mundial. Cerca de 100 mil soldados desembarcavam na costa da Normândia aos olhos do mundo, enquanto em Portugal os olhos estavam postos na contagem decrescente para a inauguração do Estádio Nacional sob o lema: “Salazar promete, Salazar cumpre”.
O dia em que o país parou
O país ia ficar em suspenso para uma cerimónia que queria entrar diretamente para a história, no dia em que se celebrava a“raça”, Portugal e Camões. Para abrilhantar o 10 de junho e a inauguração, instituíu-se que Sporting, campeão em título, e Benfica, vencedor da Taça de Portugal iriam disputar entre eles a Taça Império, a primeira “Supertaça” da história do futebol português, e a Taça Estádio.
Os despachos dos altos representantes do Estado Novo sucediam-se dia após dia para que todos pudessem ir assistir ao evento sem desculpas para o efeito.
“O sr. Subscretário das Corporações determinou o seguinte: - Inaugurando-se no próximo dia 10 de junho o Estádio Nacional determino o encerramento dos estabelecimentos comerciais e industriais da cidade de Lisboa a partir das 13 horas a fim de permitir que a essa cerimónia assista o maior número possível de trabalhadores”, pode ler-se no Diário de Notícias do dia 3 de junho de 1944.
Também por despacho se decidiu que “os estabelecimentos de barbeiro e cabeleireiro de Lisboa se conservem abertos sexta, dia 9 até às 23 horas antecipando o serão que habitualmente fazem ao sábado”.
Todos os caminhos iriam dar ao Estádio Nacional no dia 10, e os bilhetes, que custavam entre os seis e os vinte escudos, desapareciam.
Para conduzir as cerca de 60 mil pessoas que iriam estar na cerimónia foram usados cinco mil automóveis particulares, dez comboios especiais, cem camionetas, cento e sessenta táxis e oitenta elétricos.
A ginástica disciplinada da Mocidade portuguesa e das mulheres da FNAT
Desengane-se quem pense que o jogo entre Benfica e Sporting iria ocupar toda a cerimónia ou era o ponto principal de interesse. O dérbi estava agendado para um quarto para as oito, mas pedia-se que as pessoas estivessem todas nos seus lugares, sem exceção, até às quatro e meia da tarde.
O futebol fazia parte de uma festa muito maior. Prometia-se um evento de “grande afirmação nacional de optimismo, disciplina e beleza”, como escrevia o Diário de Notícias de então. Portugal queria fazer uma demonstração de força e saúde do povo português através do desporto, máxima de então.
As pessoas sentaram-se à hora pedida, Salazar e o presidente da República, General Carmona, chegaram meia hora depois. Mais um compasso de espera e entraram para a pista de atletismo cerca de 3600 filiados da classe de ginástica da Mocidade Portuguesa ao som de uma marcha. Uma série de exercícios sincronizados dentro do relvado ordenados por Marques Pereira aos altifalantes do Estádio.
O atletismo também não foi esquecido e foi mais um ponto alto desta festa. Primeiro o sprint de 100 metros e depois os 800 metros com duas voltas ao Estádio. As duas corridas foram ganhas ambas por atletas do Sporting. Um prenúncio do que viria a acontecer em campo.
As mulheres também eram parte da festa. Seguiu-se a entrada de 300 raparigas (operárias de fábrica, costureiras e empregadas de balcão) ligadas à FNAT (Federação Nacional para Alegria no Trabalho) que procuravam demonstrar a afirmação e o novo lugar da mulher na sociedade portuguesa. Mais uns exercícios de ginástica, uma saída num movimento de serpentina e o espetáculo continua.
Tudo acontecia ao ritmo do ponteiro do relógio, com uma disciplina que a época atendia. Entraram então 10 mil atletas de todas as modalidades desportivas e clubes que existiam no nosso país. Primeiro, os porta-estandartes dos clubes e depois os atletas. Os pescadores traziam aos ombros as suas canas de pesca, os caçadores as suas espingardas, e até os cavaleiros surgiram montados, todos mas todos sem exceção tinham lugar na festa. O novo relvado era pequeno para esta parada.
O golo de Peyroteo para a história
Canta-se o hino a plenos pulmões, decorrem os discursos de adulação a Salazar e ao General Carmona, e o relvado é desocupado para dar lugar a outros artistas: o Sporting de Peyroteo, Vasques ou Albano e o Benfica de Espírito Santo, Albino ou Arsénio.
Era a primeira Supertaça portuguesa da história, ou naquela altura a Taça Império instituída pela “Federação Portuguesa de Football", e um duelo entre os dois rivais de Portugal, os maiores clubes da capital.
Todos sabiam que quem marcasse o primeiro golo do jogo entraria diretamente para a história daquele dia e do Estádio Nacional. Quem estava dentro de campo lutava por esse protagonismo e quem estava fora torcia para que fosse um jogador do clube do seu coração.
A festa do golo não se fez durante os primeiros 45 minutos. O teimoso zero a zero manteve-se e só foi desfeito na segunda parte pelo famoso goleador leonino. Aos 55 minutos de jogo, coube a Peyroteo o privilégio de fazer a bola entrar pela primeira vez nas redes do Jamor, e de vencer automaticamente o prémio do bi-semanário “Os Ridículos” sob o título: “Quem marcará o primeiro goal no Estádio Nacional?”.
O Benfica haveria de chegar ao empate por Espírito Santo (77'), obrigando o jogo a ir para prolongamento, mas aquela era a noite de Peyroteo. Um dos famosos cinco violinos adiantou os leões aos 92' e Eliseu (105') aumentou a vantagem leonina para 3-1. O Benfica ainda reduziu por Julinho mas o resultado não mais haveria de se alterar.
Coube então ao Sporting subir a famosa escadaria do Jamor e o capitão Álvaro Cardoso recebeu das mãos do Ministro da Educação Nacional a Taça Estádio, criada para o efeito. A Taça Império, a tal Supertaça que a FPF tinha criado, havia de ser entregue mais tarde.
Onze Sporting: Azevedo, Álvaro Cardoso, Manecas, Canário, Octávio Barrosa, Eliseu, Mourão, António Marques, Peyroteo, João Cruz e Albano;
Onze Benfica: Martins, César Ferreira, Carvalho, Jacinto, Albino, Francisco Ferreira, Espírito Santo, Arsénio, Julinho, Teixeira e Rogério;
35 anos sem Supertaça
Acredite ou não, a prova não ganhou tradição por falta interesse dos próprios clubes.
A Supertaça só voltou a ter lugar no final da década de 70 e de forma oficiosa. Após a vitória do Boavista (1979) e do Benfica (1980), a Federação Portuguesa de Futebol decidiu passar a organizar a competição dando-lhe o nome de Cândido de Oliveira, em homenagem ao antigo jogador, treinador e jornalista.
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