Anda nisto quase desde que nasceu. Tinha apenas 15 dias de vida quando o levaram pela primeira vez para o mar, e não mais deixou de ir lá. Já bateu o seu próprio recorde e conquistou outro em dupla. Agora com 34 anos, feitos em agosto do ano passado, Francisco Lufinha ambiciona ligar Portugal aos países de língua portuguesa espalhados pelo mundo.
“Nasci a 9 de agosto de 1983 e ainda nesse verão com duas semanas de idade fui levado para um barco à vela, onde os meus pais passavam férias com as minhas irmãs. E acho que só tenho a agradecer porque com isso ganhei um equilíbrio, um à vontade com o mar, com o barco a abanar. Dei uns trambolhões quando o barco virava de bordo, mas ganhei uma confiança extra e também um respeito enorme pelo mar”, começa por dizer ‘Lufada’, como é tratado pelos amigos.
Começou por experimentar a vela aos 11 anos e até chegou a ganhar um ranking nacional na classe 420, mas rapidamente percebeu que queria outros voos. Foi aí que percebeu que o vento iria ser o seu melhor amigo até porque diz que gostava mais de “andar à vela nos dias de vento forte porque o barco vai muito mais rápido”. “Isso dava-me gozo e adrenalina!”, atira.
“O windsurf e o kitesurf são desportos que quando se está a praticar ou se está a andar rápido ou não se vai fazer. Portanto, logo por aí eu gostei, estimulou-me bastante e decidi arrancar”, acrescenta.
Mas o que é isto de ser kitersurfista? Lufinha explica que cada praticante desta modalidade tem a sua definição, mas realça que o kitesurf lhe faz sentir uma grande liberdade.
“Eu acho que cada kitesurfista terá a sua visão do kite. A minha é de que nós de repente estamos no meio do mar, e só por isso já é óptimo, e temos uma liberdade enorme. Conseguimos saltar, quase voar sobre a água uns segundos, conseguimos fazer surf em micro, pequenas ou grandes ondas porque temos a facilidade do kite para nos colocar lá, podemos fazer velocidade em regatas e desafiar um amigo, podemos estar com a família numa lagoa com pouca água a divertir-nos com o filho às costas. É muito dinâmico e por isso é que o kitesurf é o meu desporto de eleição, reúne uma série de outros desportos”, explica.
Uma aposta entre amigos e o objetivo de ligar a costa de Portugal, de norte a sul
Francisco Lufinha agarrou-se ao kite e às ondas em 2002 e desde então nunca mais os largou. E tem somado recordes atrás de recordes.
A aventura das odisseias começou em 2013. Depois de uma má experiência em Marrocos, o kitesurfista precisava de alguma coisa que lhe aumentasse a moral. O projeto estava há muito na gaveta, e foi com o apoio de amigos que se iniciou nesta aventura de quebrar recordes.
“Quando comecei em 2013 tinha vindo de seis meses a trabalhar no deserto do Sahara num resort de windsurf e kitesurf que correu bastante mal. Eu precisava de subir o meu ego e de fazer um projeto que estava há algum tempo na gaveta e que me puxasse a moral e me desse gozo”, recorda.
A iniciativa “Portugal é Mar” surgiu quase como uma “aposta entre amigos” quando Lufinha arriscou ligar toda a costa de Portugal Continental, de norte a sul do país. Resultado? O kitesurfista conseguiu completar os 564 quilómetros que separam o Porto de Lagos em 29 horas, e trouxe para casa o recorde mundial masculino da maior viagem de kitesurf sem paragens.
“Depois de superar esse desafio que foram 29 horas, que foi o meu primeiro recorde mundial, comecei a informa-me mais sobre o mar português, a dimensão do mar português e as ameaças a que ele está sujeito a nível da poluição, plástico principalmente, e aí sim agarrei essa minha missão de primeiro divulgar aos portugueses que o nosso mar é gigante. Já que temos um mar tão grande temos o dever de o preservar e de ensinar os outros a preservá-lo. Resolvi agarrar esta causa que agora faz parte do meu dia-a-dia”, refere o recordista de 34 anos.
Um ano mais tarde, em 2014, repete o desafio, desta vez entre o ponto mais a sul do território português, as ilhas Selvagens, e a cidade do Funchal, no arquipélago da Madeira: foram 306 quilómetros em 12 horas. Em 2015, bate o próprio recorde do Guinness e em 48 horas percorreu 874 quilómetros, na ligação entre Lisboa e a ilha da Madeira. A estas junta-se a dos Açores no ano passado, mas disso falaremos mais à frente.
No entanto, a vida de Francisco Lufinha não se restringe ao mar, apesar de passar lá grande parte do seu tempo. Formou-se em Engenharia e Gestão Industrial no Instituto Superior Técnico, em Lisboa, mas rapidamente percebeu que o trabalho de escritório e estar à frente de um computador o dia todo não era para si.
Trabalhou em consultoria e até abriu uma startup, mas decidiu mudar de rumo. Montou o seu próprio negócio no Algarve e hoje tem uma empresa de gestão de eventos náuticos “que tem já várias áreas de negócio, desde desafios a conferências”, onde Lufinha conta a história destas odisseias, sempre sem esquecer a sustentabilidade dos oceanos.
“Faço também ações em torno do mar com o Oceanário de Lisboa e a Fundação Oceano Azul que se chama Lufinha School Tour, onde vou às escolas do país que se candidatam e vou lá falar com os alunos, para puxá-los para cima e em simultâneo alertá-los para a importância do mar”, afirma.
A última odisseia que deu um novo recorde do mundo
No ano passado, Francisco Lufinha fixou um novo recorde mundial da maior viagem de kitesurf em dupla ao percorrer 1646 quilómetros juntamente com a alemã Anke Brandt, recordista mundial feminina, numa odisseia que teve início no dia 4 de setembro, em Ponta Delgada, na ilha de São Miguel, e que terminou dez dias depois em Oeiras.
A ideia de convidar a atleta alemã e assim realizar a primeira prova com duas pessoas surgiu depois de perceber que não iria conseguir completar a ligação entre os Açores e Lisboa sozinho.
“A Anke falou comigo em 2014 porque tinha visto o meu recorde do Porto até Lagos e queria fazer um recorde também. Ela vivia no Dubai e pediu-me ajuda. Conseguiu bater o recorde do Guiness feminino. Eu vi que dos Açores para Lisboa não dava para fazer sozinho porque estávamos sujeitos a vento que podia falhar, como aconteceu, e eu resolvi desafiá-la. Perguntei-lhe se queria fazer o desafio em estafeta e ela ficou radiante e aceitou logo”.
A aposta na dupla permitiu que Lufinha ligasse “todo o mar português em kitesurf”, que era o seu grande objetivo e “ajudou a internacionalizar o projeto”. No entanto, trouxe também aspetos negativos, relacionados com as dores que aumentavam sempre que tinham de trocar de turno.
“As dores são inevitáveis. Começam pelas articulações dos joelhos, a seguir dos tornozelos, e depois espalha-se por todo o lado. No caso dos desafios em que ia só eu, o corpo vai-se anestesiando e eu vou deixando de sentir a dor. É uma coisa que é má, desgasta-me bastante as mãos, por exemplo, mas depois chegamos ao fim e fico três/quatro dias a recuperar com o meu fisioterapeuta e a coisa volta a si mesmo. Depois talvez consiga voltar a correr passados dois meses para não forçar os joelhos”, começa por dizer.
“No caso dos Açores, em que tínhamos estafeta, foi muito pior nesse aspeto. Estamos a sofrer desgaste durante o nosso turno, depois descansamos e quando voltamos ao ativo outra vez essa pele das mãos, por exemplo, já está rija e com calos, mas por baixo há ferida e ainda dói. Estamos sempre a carregar na ferida vezes e vezes consecutivas. Eu não sabia que ia ser assim, mas tinha uma ideia de que ia ser bastante penoso”, acrescentou.
Para além de sentir dores, Francisco Lufinha aproveita as muitas horas que passa em alto mar em cima do kite, que considera ser “um momento mágico”, para pensar na vida e nos seus projetos futuros.
“Há uma altura em tudo fica para trás e em que ficámos nós, o mar, e a minha equipa no rádio. Esse é sempre o momento espetacular. Depois são muitas horas, é muito mar, que é uma coisa de que gosto e me tranquiliza. À noite com a lua cheia também gosto bastante porque fica uma autoestrada de luz quando o céu não está coberto. Nessa altura considero que estou num retiro. Há quem vá para Fátima, onde já estive, mas eu no mar faço uma desfragmentação da cabeça e tenho muitas horas para arrumar as ideias, pensar em projetos futuros, no que fiz de mal e no que posso fazer melhor”, disse.
A ideia de parar no meio de um desafio já passou várias vezes pela cabeça do kitesurfista, mas o apoio da equipa e o compromisso com os patrocinadores faz com que consiga aguentar-se até cumprir a sua “missão”.
Há quem vá para Fátima, onde já estive, mas eu no mar faço uma desfragmentação da cabeça e tenho muitas horas para arrumar as ideias.
“Já pensei em desistir, sem dúvida nenhuma. Há momentos em que parece que os vários fatores que não se controlam estão todos contra nós. Isso acontece com muita frequência e, às vezes, um sozinho não é um grande problema, mas de repente vêm mais coisas más em simultâneo que fazem pensar se é mesmo suposto estar aqui – em cima da prancha – ou se é um sinal para que eu deva parar e não insistir. Isso acontece muitas vezes, mas até hoje tenho tido a capacidade de dar a volta e de arranjar uma solução, mas muitas vezes dou por mim em lágrimas porque não consigo levar a cabo o projeto”, explicou ainda de falar dos altos e baixos das provas:
“Há alturas mais positivas e menos positivas nos desafios, e, regra geral, isso está ligado às condições do vento. Ou seja, quando eu começo um desafio e está bom vento e boas ondas tenho um sorriso na cara. Quando o vento desce e está muito baixo eu não consigo fazer nada em relação a isso. Posso ter muita vontade, força e energia, mas eu não me movo. Isso começa a ser muito frustrante porque depois fatores como a lua cheia que nós precisamos, começam a deixar de lá estar. Até à data conseguimos alcançar o que queríamos, mas é sempre um risco enorme e isso é o que torna este desafios difíceis e únicos.”
Lufinha recorda também que o percurso planeado durante muitos meses pode mudar num instante. A falta de vento obriga-o muitas vezes a alterar os planos. E a viagem dos Açores para o continente foi a mais difícil de se concretizar, tendo havido alguns dias sem vento.
“Nós temos um local de partida e outro de chegada desejável. Arrancamos quando as condições são minimamente boas. Para desafios mais curtos, como os primeiros, as coisas são mais fáceis porque a três dias de partir eu sei que daqui a quatro/cinco dias vai estar mais ou menos este vento, e então decido arrancar. No caso do Açores para o continente tínhamos aquela janela de sete/oito dias que achávamos que ia durar, mas para isso não há previsão, para além de que as previsões ao pé das ilhas nunca são fiáveis”, atira.
“Nesse desafio decidimos arrancar sabendo que ia haver um dia sem vento, que depois se converteram em três dias sem vento. Isso foi muito agressivo. Nós depois tivemos de nos moldar com as previsões meteorológicas e fugir um bocadinho para norte para tentar fugir da alta pressão que não tinha vento. Depois o vento entrou e era de leste e não de norte como esperávamos. Vinha de frente e estávamos a ir rumo a África sem conseguir subir. E foi apenas nos últimos dois dias que o vento rodou para norte. Temos de perceber que temos determinadas condições e depois tentar fazer a nossa arte. O percurso recto seria o ideal, mas temos sempre ondas, ou trocas de atletas, como no caso do desafio dos Açores”, finalizou.
Já pensei em desistir, sem dúvida nenhuma. Há momentos em que parece que os vários fatores que não se controlam estão todos contra nós.
Preparação longa e desgastante para as provas
A preparação de Lufinha para as odisseias é rigorosa e envolve muitos cuidados não só com o físico, mas também com a alimentação. E às saídas à noite com os amigos são trocadas por cafés durante o dia e quando há um furo no meio do plano de treinos.
“É bastante agressiva a privação desses encontros. Eu muitas vezes tenho de dizer a amigos meus que não posso ir ter com eles porque estive a treinar ou porque tenho de trabalhar no computador, onde trabalho muitas horas para muita pena minha. Depois tenho de abdicar de programas à noite que não dá para o meu treino. Eu acho que o planeamento é fundamental”, lamenta.
Sobre os treinos, Lufinha garante que não há uma metodologia específica para preparar estes desafios. Por isso, mistura exercícios relacionados com outros desportos de maior duração.
“Um treino diário, num dia bom, é uma hora de natação, uma hora de corrida, de preferência com subidas e descidas, uma hora de bicicleta, e uma hora de exercícios propriocetivos, que é em cima de bases instáveis para trabalhar as articulações. Depois no mínimo uma hora de alongamentos é fundamental, e o máximo de horas de kitesurf possível, sendo que isso depende do vento. Pode haver uma semana inteira em que eu não faço kitesurf porque não há vento”, refere.
Já a alimentação é baseada em produtos integrais que “dão uma energia mais contínua ao longo do tempo”. E quanto às idas à casa de banho, o fato tem uma braguilha que facilita a tarefa.
“A minha nutricionista faz-me uma avaliação dos meus consumos, e perante esses resultados diz-me que ingredientes tenho de introduzir na alimentação. Consumo bastantes carnes brancas, muitos legumes, muitas leguminosas, e evito hidratos a mais ou que não sejam integrais. Tenho de consumir alimentos integrais, que demoram mais tempo a serem ingeridos e que nos dão uma energia mais contínua ao longo do tempo. Reduzimos também o nível de gordura no corpo para cerca de 10%/11%. É claro que não podemos tirar muita porque corremos o risco de ter frio no meio do mar, mas depois compensamos com um fato isotérmico bom, com várias camadas térmicas e com um protector do vento”, explica o kitesurfista.
Pode haver uma semana inteira em que eu não faço kitesurf porque não há vento.
A dificuldade em arranjar patrocínios e as próximas viagens
Para aventuras como esta é sempre preciso ter quem forneça o material, desde a prancha ao fato. Mas essa parte nem sempre é fácil. Que o diga Lufinha, ele que considera esta a parte mais difícil na preparação de uma odisseia.
“Conseguir apresentar-me a empresas novas é a tarefa mais árdua. Há umas que me conhecem e aí é mais simples, mas há outras que não me conhecem e nesses é mais difícil. Depois podem não haver orçamentos disponíveis para cobrirem as despesas todas. Portugal é um grande país, mas temos poucos habitantes quando comparados com outros, logo temos menos valores disponíveis, o que dificulta muito a nossa captação de patrocínios. Mas regra geral tenho-me focado em trabalhar a relação com os patrocinadores que já tenho, vamos dando provas de que somos bons e cumpridores das coisas que prometemos. Depois vamos tentando captar novas empresas que estejam interessadas em ligar-se aos nossos valores”, esclarece.
Para ‘Lufada’ não há uma odisseia mais difícil pois para além de não as conseguir distinguir garante que cada uma “teve a sua particularidade”. No entanto, aponta a saída do Terreiro do Paço rumo ao Funchal como o momento mais marcante destas aventuras.
“Do Porto a Lisboa foi a grande novidade porque não sabia o que estava a acontecer. Depois das Ilhas Selvagens para o Funchal tivemos vento contra durante 12 horas, e é o único desafio do qual eu ainda fiquei com feridas nos pés. De Lisboa para a Madeira foi o desafio mais agressivo fisicamente porque foram 48 horas de uma só vez. Agora este em que houve pára-arranca e troca entre atletas foi muito difícil a nível psicológico porque não sabíamos se íamos chegar ao nosso destino ou não. Foram todas diferentes”, assegura.
Sobre o momento mais alto destas provas, Lufinha destaca a partida de Lisboa para o Funchal, num local de onde antigamente saiam as naus e caravelas rumo a territórios desconhecidos.
“Eu diria que o momento mais marcante é a saída do Terreiro do Paço que é uma coisa que é proibida e para a qual precisamos de muitas licenças e que tinha muita probabilidade de correr mal. Nós ensaiámos duas vezes antes, e numa dela tínhamos rasgado o kite. O vento não é nada certo, é muito sujo. Tínhamos uma pessoa no meio da Praça do Comércio a dizer de onde vinha o vento. Conseguimos fazer isso com o apoio de muitos marinheiros e velejadores de Lisboa e da caravela portuguesa Vera Cruz. Acho que esse foi dos momentos mais altos que eu tive nestas odisseias”, disse o atleta.
O próximo passo ainda não está definido, mas a ideia é a de ligar Portugal a outros países de língua oficial portuguesa.
“A cabeça está sempre a funcionar. O mar português está ligado e foi um desafio superado. Agora estou com ideia de ir além-fronteiras e fazer travessias ainda maiores. Para isso tenho de adaptar a prancha e o kite, arranjando um sistema para conseguir ir mais longe. Quem sabe viajar pelos países de língua portuguesa, como o Brasil. Tenho de ver isso ainda porque não há nada de concreto.”
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