Quarta-feira, 3 de novembro. Faltam poucos minutos para as 14h30, hora em que se inicia mais um treino de natação adaptada do Sporting, no Multidesportivo do Estádio José Alvalade. Foi lá que encontrámos quatro dos dez atletas que brilharam no Campeonato da Europa para nadadores com Síndrome de Down (também designada Trissomia 21), em piscina curta, que decorreu no passado mês de outubro, na cidade italiana de Ferrara.

A seleção portuguesa conquistou 31 medalhas (17 de ouro, nove de prata e cinco de bronze), às quais juntou três recordes mundiais e um europeu – só foi ultrapassada no medalheiro pela equipa anfitriã. Um registo impressionante, mas que não surpreende quem contacta diariamente com estes atletas.

“As medalhas acabam por ser o resultado do bom trabalho que eles têm vindo a desenvolver”, começa por dizer Rui Gama, treinador principal de natação adaptada no Sporting e um dos técnicos da Seleção Nacional de Síndrome de Down.

“Algumas marcas ficaram acima da expectativa, mas nós tínhamos essa missão de ir atrás dos recordes do Mundo e da Europa e tentar colocar os nomes dos nossos atletas. Felizmente fomos bem sucedidos”, acrescenta.

E quando se fala em marcas alcançadas nestes Europeus, há um nome que salta à vista. Com apenas 16 anos, Vicente Pereira venceu cada uma das 12 provas em que competiu, bateu três recordes mundiais e conquistou o troféu de melhor nadador masculino da competição, algo inédito para um atleta com idade júnior.

A vontade de vencer está-lhe no sangue. “Quero ser sempre o mais rápido”, conta o jovem nadador do Sporting, com um sorriso nos lábios. Mas já lá chegaremos.

Assim se faz um campeão

Vicente Pereira, João Vaz, André Almeida e Diogo Matos são os quatro nadadores do Sporting que representaram Portugal em Itália. Treinam seis dias por semana dentro de água – chegam a fazer dois treinos bidiários – que depois complementam com o trabalho de ginásio. O ritmo é, por isso mesmo, exigente e a base do treino é “em tudo similar” à natação pura.

“Já chegaram a fazer treinos em que percorreram seis quilómetros e meio. No entanto, no caso específico da Síndrome de Down, eles não ganham tanto com os volumes, mas sim com a intensidade, precisamente pelas necessidades musculares que têm. Por isso, as adaptações que são feitas passam pela criação de estímulos musculares”, explica Rui Gama, que já tem um percurso de quase 20 anos na natação adaptada.

A intensidade dos treinos há muito que já faz parte do dia a dia destes atletas, e como é costume dizer-se, quem corre por gosto não cansa. “Adoro treinar. Estou sempre feliz dentro de água”, afirma André Almeida, de 21 anos, que conquistou nove medalhas nestes Europeus.

A paixão pela modalidade já o levou, inclusive, a sonhar com outro grande objetivo. “Gostava de ser treinador. Mas primeiro quero ser campeão do Mundo”, sublinha André, já a piscar o olho aos Mundiais do próximo ano, que terão lugar em Albufeira.

"Estes atletas são uma mais-valia para o desporto e não apenas uma cara bonita que serve de bandeira para a deficiência"

Mas não é só dentro de água que se fazem campeões. Para Rui Gama, o contexto familiar acaba por ser “fundamental” na caminhada destes jovens rumo ao sucesso. “É uma extensão do treino. É importante que eles tenham um ambiente calmo em casa, sem pressão, onde possam descansar e alimentar-se como qualquer outro atleta”, nota.

O treinador ‘leonino’ destaca ainda o apoio essencial das famílias durante a pandemia, que veio afastar os atletas do contacto com a água. “Não foi fácil, ainda mais neste caso, em que é tão importante estimular a parte muscular. Conseguimos construir um plano para que a família também treinasse com os atletas em casa. Entretanto, a piscina do Jamor reabriu para os atletas de Alto Rendimento e deu para retomar os treinos”, recorda.

E como se gere as emoções de um atleta com Síndrome de Down durante um Europeu? “Esse é um trabalho que também é feito durante a preparação. Vamos criando alguma pressão durante os treinos, para que eles também aprendam a lidar com a ansiedade. No decorrer da prova, estamos lá mais para os acalmar do que para impor algum tipo de pressão. É importante que eles percebam que estamos todos juntos, a lutar pelo mesmo objetivo”, explica Rui Gama.

Rui Gama, treinador de natação adaptada no Sporting
Rui Gama, treinador de natação adaptada no Sporting créditos: Federação Portuguesa de Natação

Esse espírito de entreajuda, aliás, foi visível durante a breve conversa com os atletas. Quando questionados sobre as conquistas individuais, todos responderam aludindo ao grupo. “Foi bom ganhar medalhas, mas não fui só eu. Somos uma família e somos todos campeões” diz André Almeida.

Vicente Pereira: 12 ouros e três recordes do mundo aos 16 anos

Ainda antes de participar na sua primeira prova internacional, com apenas 16 anos, Vicente Pereira já tinha uma certeza: “Disse aos meus pais que ia ser campeão europeu”. Fez mais do que isso - e nunca é demais repetir. Foram 12 medalhas de ouro nas 12 provas em que participou, três recordes mundiais e o troféu de melhor nadador da competição.

“Foram quatro dias de competição e ao terceiro ele já tinha o prémio no bolso”, confidenciou o seu treinador, que destaca o sangue-frio que Vicente manteve durante a competição, apesar da tenra idade: “O nervosismo não o afeta. Bem pelo contrário, só lhe dá força.”

Vicente já nadava uma vez por semana nas piscinas do Sporting, graças a um protocolo do colégio com o clube, mas foi o olhar atento de Rui Gama que o levou a apostar na competição. “O professor dele chamou-me a atenção e fui observá-lo. Tinha uns nove, dez anos”, começa por contar o técnico.

“Comecei a trabalhar individualmente com ele, para que desenvolvesse algumas técnicas, depois a integrá-lo em grupos de competição. Tentava que ficasse ao lado de nadadores mais evoluídos, porque ele aprendia muito a observar os outros. Ele fez o resto”, acrescenta.

Vicente Pereira, a estrela dos Europeus
Vicente Pereira, a estrela dos Europeus créditos: Federação Portuguesa de Natação

Mesmo com idade júnior, Vicente Pereira conseguiu superiorizar-se a outros nadadores mais experientes, surpreendendo todos à sua volta. “Sabíamos que ele era capaz de fazer muito boas marcas, e que poderia ser considerado o melhor júnior, mas daí a ser o melhor atleta de todos… A probabilidade era pequena”, confessa Rui Gama.

A verdade é que Vicente Pereira não engana: é um campeão da cabeça aos pés. “Quando estou dentro de água, quero ser o mais rápido. Gosto de ganhar e de bater recordes”, diz o jovem atleta, que é o mais rápido do mundo em 25m, 50m e 100m mariposa.

“Gosto de nadar mariposa. É muito difícil, mas é o meu estilo preferido”, revela Vicente Pereira, que diz ser menos bom “a nadar costas”. “E quero estar mais tempo debaixo de água quando nado bruços”, acrescenta.

Ainda assim, apesar do espírito competitivo, Vicente diz que prefere as provas por equipas: “É melhor estar ao lado dos meus amigos. Gosto muito deles e do Rui”. Na memória guarda ainda a forma como foi recebido na chegada a Portugal. “Fiquei muito feliz por ver os meus pais e os meus avós. As pessoas são muito simpáticas comigo e já me pediram autógrafos”, conta.

“Deixa-nos muito tristes que estes miúdos não tenham uma classificação própria para participarem nos Jogos Paralímpicos”

Já com o foco nos Mundiais de 2022, o nadador do Sporting vai conciliando os treinos com o curso profissional de técnico de restauração na vertente cozinha/pastelaria. Ambição não lhe falta: “Quero ir ao Masterchef e ser campeão do Mundo!”

Paralímpicos: uma longa batalha

As 31 medalhas conquistadas pela natação portuguesa no 'Open European TriGames' voltaram a colocar o foco no desporto adaptado e nos seus muitos exemplos de superação. Dezenas de pessoas deslocaram-se até ao aeroporto para aplaudir os heróis de Ferrara, pouco habituados a estas andanças. O reconhecimento está longe de ser o desejado, mas Rui Gama nota que o mais importante foi conseguido.

“Mostrámos que estes atletas são uma mais-valia para o desporto e não apenas uma cara bonita que serve de bandeira para a deficiência” sublinha o treinador, de 39 anos. “São um exemplo de superação para qualquer atleta e pessoa, com ou sem limitações. São capazes de coisas inimagináveis. E ainda podem chegar mais longe”, confia.

O técnico do Sporting, contudo, reclama mais apoios. “Deixa-nos muito tristes que estes miúdos não tenham uma classificação própria para participarem nos Jogos Paralímpicos”, lamenta.

A nível regional, nacional, europeu e mundial os nadadores com Síndrome de Down têm competições próprias, mas o mesmo não sucede nos Jogos Paralímpicos. Perante o quadro atual, um campeão europeu ou mundial nunca poderá aspirar à glória olímpica.

Ter um cromossoma a mais é o que menos importa neste grupo de campeões (dentro e fora de água)
A chegada ao aeroporto @Federação Portuguesa de Natação créditos: Federação Portuguesa de Natação

Esta tem sido uma longa batalha, cuja resolução ainda está longe de ver a luz do dia. “Continua na secretaria, à espera de validação. É uma situação exigente do ponto de vista burocrático e isso é que nos está a criar algumas barreiras. Seja como for, vamos estar sempre na linha da frente desta luta”, assegura Rui Gama.

Enquanto o sonho paralímpico não acontece, há um Campeonato do Mundo para disputar no próximo ano: “Repetir o que aconteceu nos Europeus é demasiado ambicioso, há excelentes nadadores pelo mundo fora e a competição é feroz. Vamos atrás das nossas marcas e vamos trabalhar, dentro das nossas limitações, para apresentar a melhor versão desta equipa. Mas acredito que mais conquistas virão.”

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