A descrição é de António Simão, dos Artistas Unidos, encenador da peça que se estreia na companhia fundada e dirigida por Jorge Silva, um ano depois da morte deste.

"Foi assim", uma reflexão a solo de um artista em final de vida da autoria do norueguês Jon Fosse, é uma peça que Jorge Silva Melo gostava de ter feito no final da vida e que, com ironia, dizia: "Esta agora é que eu posso fazer, até já ando a ensaiar", contou António Simão, em declarações à imprensa.

A estreia da peça marca também o regresso da companhia ao universo do primeiro dramaturgo posto em cena pelos Artistas Unidos, em 2000, no espaço A Capital, em Lisboa, com a peça "Vai vir alguém", encenada por Solveig Nordlund a convite de Silva Melo, e onde o norueguês esteve presente.

"Foi assim" é um texto que "usa e existe muito no silêncio", observou António Simão, traçando um paralelismo com o texto onde, na prática, "o silêncio existe mesmo" e com a missa, remetendo também para a conversão do escritor norueguês ao Catolicismo.

Lembrando um texto "muito bom" do autor de "Septologia", que "especialistas em literatura, filosofia e linguística consideram um dos mais importantes e celebrados autores vivos", António Simão recordou a definição de escrita do autor nascido em 1959, em Haugesund, no oeste da Noruega: "escrever é ouvir".

"Foi assim" é um texto "que não é fácil de fazer", porque além de remeter para a filosofia, nos dias de hoje "é muito difícil pedir silêncio", já que o mundo atual não é de contemplação, mas composto cada vez mais por "retalhos, variedade e fragmentos".

Ao som das "Variações Goldberg", de Bach, o cenário de "Foi assim" fixa-se num retângulo inclinado, com uma cama e uma bengala encostada. Um andarilho aos pés da cama, uma cadeira de rodas à cabeceira e um roupão pendurado na cama completam o cenário onde um homem de idade avançada surge deitado de costas na cama.

Na penumbra, "Sim é pois é sim mais um dia", são as primeiras falas do protagonista.

O facto de Jon Fosse ter começado como músico não será alheio ao texto da peça composto por linhas partidas, acrescentou José Raposo, corroborado por António Simão, na definição de teatro para Jon Fosse: "O teatro é a poesia em pé".

José Raposo, que nunca trabalhara com Silva Melo, não hesitou em aceitar o convite que os Artistas Unidos lhe lançaram para interpretar a personagem, um repto que aceitou "mesmo antes de conhecer o texto".

Porque além de com frequência dizerem que deviam "fazer isto ou aquilo juntos" e de gostar de ter trabalhado com o "Jorge como ator", a vida tomou outros caminhos.

Saber que Silva Melo queria fazer este texto bastou-lhe para aceitar interpretá-lo, acrescentou.

Depois de ler o texto e de se interrogar "como é que isto se faz", José Raposo confrontou-se com a dificuldade da peça que, segundo António Simão, é representativa do trabalho de ator.

"O ator quando está a ensaiar repete e, de cada vez que repete, o sentido vai abrindo, vai-se mostrando e vai-se expandido", argumentou o encenador.

José Raposo afirmou ter feito a personagem traçando "um 'paralelismozinho' com o Jorge".

"Não sei porquê, mas quando li a primeira vez e sabendo que ele até queria fazer, tendo em conta a situação dele e tudo, eu vi muito o Jorge aqui neste ambiente do Jon Fosse, e, sem querer, inspirei-me muito nele, na forma de falar", confessou.

"Acho mesmo que [o texto] tem muito a ver com o Jorge", disse José Raposo sobre a peça "Foi assim", onde a dificuldade, para António Simão, foi "encontrar o tom certo".

"Estamos aqui neste reino da poesia, tem que haver uma certa leveza, tem que haver uma certa clareza, simplicidade, há aqui um meio termo e com o Zé também não pode ser demasiado marcado, não pode ser demasiado neutro, portanto isso aí foi a minha principal preocupação", acrescentou.

A estreia da peça está integrada na iniciativa "Jorge Silva Melo -- 365 dias depois", que começa às 19:00, no Teatro da Politécnica, com a leitura de excertos de criações e encenações de Silva Melo, por atores que compõem os Artistas Unidos ou que trabalharam com o encenador, como Andreia Bento, António Simão, Cecília Henriques, Daniel Martinho, Hugo Samora, Isabel Muñoz Cardoso, Ivo Canelas, João Meireles, João Pedro Mamede, Jorge Andrade, Manuel Wiborg, Miguel Borges, Nuno Gonçalo Rodrigues, Pedro Lacerda, Sara Belo, Silvia Filipe e Sylvie Rocha.

"Foi assim" estreia-se, depois, às 21:00. A cenografia e figurinos são de Rita Lopes Alves, a luz de Pedro Domingos, o ponto de Sara Barradas e Lídia Muñoz e a assistência de encenação de Pedro Cruzeiro.

"Foi assim" vai estar em cena no Teatro da Politécnica, em Lisboa, até 15 de abril, com récitas de terça a quinta-feira, às 19:00, à sexta, às 21:00, e ao sábado e domingo, às 16:00 e às 21:00.

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