Enquanto treinadores, é comum pensarmos e afirmarmos que queremos formar e moldar jogadores inteligentes, capazes de resolverem os problemas criados pelo jogo e de se adaptarem convenientemente ao contexto do mesmo. Mas pergunto-me: Estamos realmente a contribuir para isso, quer no processo de treino, quer no trabalho diário próximo dos jogadores? Refiro-me a todas as faixas etárias, desde as etapas de animação em que a componente fundamental é o desenvolvimento do gosto pela prática, até às etapas de rendimento, cujo objetivo principal é ganhar.
Em relação a este tema, a primeira pergunta que deve ser feita é: Que tipo de jogadores pretendemos criar a partir do nosso processo de treino? Por isso, penso que ao contrário do que se diz muitas vezes, a primeira coisa que um treinador deve refletir, discutir e criar, não é o modelo de jogo que pretende implementar, mas sim o modelo de treino.
Se eu quiser que o meu trabalho produza jogadores inteligentes com capacidade de adaptação, tenho de garantir que o treino tem variabilidade de contextos apresentados, promove adaptação constante dentro dos exercícios que crio e que é emitido muito feedback interrogativo. Este é o único tipo de feedback que promove metacognição e verdadeira apropriação do conhecimento por parte dos jogadores. Eles têm de conseguir pensar nas vantagens e desvantagens das decisões que tomam, com e sem bola. É totalmente diferente entregar-lhes o peixe em mão ou ensiná-los a pescar.
Infelizmente, a partir da minha prática profissional, raramente observo contextos de treino que primam por estas características. Quando colocamos perguntas aos jogadores, temos de ter confiança nas vantagens do que queremos ensinar, mesmo que exista abertura para chegarmos à conclusão de que podemos não ser totais detentores da razão, mas já devemos ter refletido e analisado profundamente, a lógica interna do jogo e quais os melhores critérios de resolução de cada situação. Esses critérios nunca devem servir para castrar a criatividade dos jogadores, mas sim para os orientar a tomar mais vezes, decisões com maiores probabilidades de sucesso.
Observo inúmeras vezes a fase ofensiva do jogo ser ensinada com base em dinâmicas padronizadas para cada etapa (construção, criação e finalização). Essas dinâmicas, são trabalhadas sem que exista análise e adequação ao contexto dinâmico e momentâneo do jogo. Não quer dizer que não possa fazer sentido, a partir das etapas de pré especialização, serem criados alguns padrões de movimentação coletiva, mas penso que essa não deverá, de todo, ser a base do processo de ensino do jogo e do modelo.
O autor analisa a importância da criação de dinâmicas ofensivas que variam consoante a análise do contexto, em detrimento de dinâmicas padronizadas.
Defendo a criação de dinâmicas contextuais, ou seja, de dinâmicas que variam consoante a análise do que está a acontecer no jogo, tendo em conta o posicionamento e movimentação defensiva dos adversários. Nesse sentido, os jogadores estarão constantemente a tomar decisões, em busca de movimentações coletivas que aumentem as suas probabilidades de sucesso em campo. Contra adversários distintos, ou até mesmo contra o mesmo adversário, no decorrer do próprio jogo, pode fazer sentido construir com dois elementos, com três ou até com quatro. Assim como pode fazer sentido, tendo em conta a análise do contexto, que a dinâmica dos médios possa variar (estando mais próximos da construção, ou mais profundos entre linhas, ou procurando movimentos à largura, por exemplo). Todas estas variações devem depender da reposta à pergunta: como podemos criar vantagens e dificuldades aos adversários? Como o treinador durante o jogo não deveria estar a jogar “playstation”, cabe aos jogadores tomarem essas decisões, com base na sua inteligência tática e nos princípios gerais do modelo de jogo que foram desenvolvidos no modelo de treino.
Devemos investir mais do nosso tempo de treino, no desenvolvimento dos princípios gerais e específicos, promovendo critérios de resolução de situações em superioridade, inferioridade e igualdade numérica (na fase ofensiva e defensiva). Assim como, devemos desenvolver critérios de decisão na procura de superioridades (numérica, temporal, espacial e posicional). Penso ainda que devemos investir muito nos pormenores de tática individual, tais como o scan, a colocação dos apoios, a orientação e pé utilizado nas receções, proteção da bola, contra movimentos para fugir de marcações individuais e movimentos de afastamento e de aproximação ao portador.
Se os jogadores estiverem capacitados de ferramentas que lhes permitam adaptar-se corretamente aos problemas que cada adversário e cada jogo lhes pode criar, terão um rendimento desportivo mais constante, e terão maior probabilidade de encaixarem em outras equipas e de jogarem em outros sistemas e outros modelos. Além do mais, acredito que, se a base de trabalho for a que propus anteriormente, o sistema tático deixa de ter a relevância que lhe atribuem hoje em dia. Idealmente, as equipas deviam alterar as suas dinâmicas de construção, criação, finalização, pressão e até mesmo de sistema, tendo em conta as vantagens que querem criar no seu adversário, mantendo a mesma identidade. Os princípios coletivos mantêm-se, mudando os posicionamentos iniciais e as movimentações coletivas.
O maior entrave a este processo no futebol profissional é que o mesmo requer algum tempo para ser desenvolvido, sendo isso por vezes incompatível com a exigência de resultados para ontem (em alguns campeonatos mais do que em outros). Dei maior ênfase ao processo ofensivo, mas acredito que mesmo no processo defensivo, deve haver capacidade de adaptação face ao contexto do jogo, sendo que esta deverá ser promovida em treino, a partir da criação de constantes cenários de oposição diferentes, que obrigam à resolução coletiva de novos problemas. Mesmo ao nível da formação, não acredito que estejamos a criar jogadores inteligentes com capacidade de adaptação, se proporcionarmos no treino constantemente o nosso modelo em oposição contra o nosso modelo.
Deixo como reflexão final o seguinte: se alguma vez perguntarem aos vossos jogadores, porque fazem regularmente determinada ação, movimento ou decisão e a resposta for silenciosa ou “porque o mister quer”, desconfiem se o processo está a ir ao encontro do real desenvolvimento dos jogadores.
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