Ao longo de 12 anos, Israel pôde ver bem de perto o futuro de centenas de jovens que passaram pela formação do FC Porto. Mais do que isso: Pôde moldá-lo. É uma espécie de super poder detido por quem tem a valiosa oportunidade, e já agora a competência, de esculpir o que é digno de ser esculpido. E quando tanto se fala do denominado 'ouro da casa', termo para adjetivar as dezenas de pérolas extraídas do Olival, estivemos à conversa com um dos grandes responsáveis pelo aparecimento de nomes que antes eram dúvidas e agora são certezas.

Depois de mais de uma década a moldar os talentos dos outros, Israel sentiu que era altura de aprimorar o seu. O telefone já tocou, mas o técnico de 50 anos acredita que o melhor ainda está por vir.

Israel Dionísio lidera o grupo, do qual faz parte Francisco Conceição (à esquerda)
Israel Dionísio lidera o grupo, do qual faz parte Francisco Conceição (à esquerda) Israel Dionísio lidera o grupo, do qual faz parte Francisco Conceição (à esquerda) @FC Porto

De miúdos a graúdos, foram poucos os que não lhe passaram pelas mãos

Diogo Queirós, Diogo Leite, Diogo Dalot, Diogo Costa. Para os mais distraídos, está apresentada a famigerada geração dos 'Diogos'. A valiosa e estimada grupeta é motivo de orgulho para quem durante anos os viu crescer bem de perto. É o caso de Israel Dionísio.

Durante mais de uma década esteve mergulhado nesse caldeirão fervilhante dos escalões de formação do FC Porto, a transbordar de talentos que foram brotando como a "força bruta das trepadeiras", como escreveu Carlos Tê o que Rui Veloso viria a cantar em 'Não me Mintas', canção em que couberam tantas verdades, a começar por Jardel, "a voar pelos centrais". Mas foquemo-nos em Israel, cuja vida tem sido um autêntico 'Porto Sentido'.

Como adjunto e como técnico principal, passou por todos os escalões de formação dos dragões, ficando a faltar a subida aos patamares da equipa B e da formação principal. Digamos que foi um dos responsáveis por fazer crescer os frutos que mais tarde outros vieram a colher em prol de um bem comum: o clube.

É com notório orgulho que o treinador, que deixou o FC Porto em 2022, recorda a matéria-prima que ajudou a esculpir. Parece não se sentir totalmente confortável com o peso da responsabilidade de ter tido, efetivamente, mérito no desenvolvimento destes outrora dragõezinhos, agora já dragões esvoaçantes e de chama bem acesa, cá e lá fora. "Fui uma pequena ajuda. Nós, enquanto treinadores, somos também formadores, às vezes segundos pais, e também contribuímos para o desenvolvimento pessoal deles. Dou-lhes muito na cabeça. É um pouco como os professores, acabamos sempre por nos lembrar com mais facilidade dos que 'vinham para cima de nós'. E a verdade é que ainda hoje mantemos contacto e falamos disso. Tirando a geração Rúben Neves, a partir daí todos passaram por mim, tive uma quota parte de responsabilidade, sim, mas o mérito é sobretudo dos atletas."

Inevitavelmente vem à conversa o nome de Vitinha, "alguém que mesmo em miúdo se sabia com relativa certeza que seria jogador de futebol."

O patamar que atingiu nunca é possível prever, lembrou, recusando a velha teoria propagada pelos que precipitadamente afirmam 'já se sabia que ia ser craque'. Uma espécie de "prognósticos só no fim do jogo", mas acerca do potencial dos jogadores.

"O Vitinha sempre foi aquele miúdo que vinha falar com o treinador. Falava do jogo, perguntava 'mas porque é que não se pode fazer isto, desta forma?'. Quanto mais conhecimento o atleta tiver do jogo, melhor jogador vai ser. Adivinhava-se que o Vitinha ia ser jogador de futebol, mas dizer agora que já se sabia que ia atingir o nível que ia atingir... quem disser isso está a mentir. Ninguém imaginava que chegaria onde chegou", garantiu.

"Ninguém sabe, nunca sabemos se vão vingar com 100% de certeza", defende. No caso do agora médio do PSG, lembrou-nos até que nem sequer era titular nos sub-19, nem quando o FC Porto venceu a 'Youth League'. A título de exemplo, no jogo da final nem sequer foi utilizado. A vida dá mesmo muitas voltas, é uma espécie de regra de ouro da vida e também do futebol.

Israel Dionísio com a equipa.
Israel Dionísio com a equipa. Israel Dionísio com a equipa. créditos: Nuno Vasconcelos Photography

A saída do FC Porto e a longa espera pela oportunidade que nunca chegou: "Diziam que tinha muito potencial, mas as coisas não aconteciam"

E foi para melhor poder surfar as ondas geradas pela vida que saiu do conforto em busca do seu sonho. Por razões que ainda hoje não sabe explicar, nem perde tempo debruçado nelas, acabou por não conseguir atingir o patamar que acreditava merecer no FC Porto.

Treinar a equipa sub-19, por exemplo, era um convite que desejava receber no final da época 2021/2022. Mas o convite nunca chegou e o tempo não para, pensou. Hoje, agradece ao FC Porto pelos 12 anos de experiência e por tudo o que aprendeu, mas a paixão pelo futebol e a urgência que sentia em agarrar um projeto profissional falou mais alto. "Não digo que fique uma angústia. Aproveitei ao máximo a experiência, cresci muito dentro do clube, mas sinto que poderia ter existido uma aposta maior em mim. Pela dedicação e pela competência. Não aconteceu assim, há que seguir em frente".

E foi o que fez. O primeiro ano de uma nova vida começou calmo, longe do futebol, para descansar o corpo, mas sobretudo a mente. Lembra-nos de que treinar um clube como o FC Porto, mesmo nos escalões de formação, é para quem está predestinado a missões hercúleas. "É muito duro. Treinar os escalões jovens do FC Porto é a mesma coisa que treinar a segunda liga", deu como exemplo. "É formação, mas tem de haver resultados. No mínimo, temos de ficar numa posição da tabela que dignifique o símbolo que carregamos ao peito."

Seguiu-se um período de estágios e formações, algo que valoriza desde que entrou no futebol. Aliás, foi ao chegar aos dragões que se apercebeu da necessidade de se formar academicamente.  Assim o fez, tinha 36 anos, primeiro ao licenciar-se em educação física e numa fase posterior frequentando o mestrado em treino. Por esta altura já estava a tirar o nível pro da UEFA, o chamado nível 4, que permite aos treinadores orientarem qualquer equipa nos escalões profissionais. O primeiro e segundo níveis foram adquiridos muito antes, aos 30 anos, na fase final da sua carreira de jogador, no Candal.

Aos 30 anos, aconselhado pelo treinador da altura, que também era seu tio, Costa Soares, deu um passo em frente e sem hesitar escolheu o caminho que seria o seu até hoje.

A viagem ainda agora começou, garante-nos com distinta confiança, ao afirmar que está preparado para algo maior. "Treinar uma equipa profissional, na primeira, segunda liga, Liga 3. Tenho muita bagagem. Não tenho de fazer o trajeto inicial no futebol sénior. Depois de treinar os sub-19 e os sub-17 do FC Porto fica mais fácil fazer o 'transfer' para treinar na segunda liga, por exemplo. A exigência não é diferente, garantiu. E escuda-se com o que foi ouvido sobre si ao longo do percurso, ainda no FC Porto. "Diziam que tinha muito potencial, os feedbacks positivos eram muitos, mas as coisas não aconteciam", lamentou.

Este ano surgiram convites para fora, dentro da Europa, e este ano já chegaram convites da terceira divisão. "Tenho de sentir que é um projeto que me agrada e que seja positivo para entrar no futebol sénior.", confessou-nos o técnico.

A influência da formação e a importância da força mental: "Toda a gente projetava que o Diogo Costa ia ser um Vítor Baía"

Enquanto treinador, e a propósito do futuro de quem lhe passou pelas mãos, faz questão de reforçar o papel determinante da força mental dos atletas. Da maturidade em campo e fora dele. É também aí que se perspetiva quem poderá ou não chegar longe, "embora haja sempre surpresas", alertou.

"Há o talento, a técnica, mas depois há a parte mental. A mentalidade também é talento. Às vezes chega mais longe um jogador mediano com uma mentalidade mais forte do que aquele que é um talento puro, mas a parte mental não é tão boa", explicou-nos, dando como exemplo Diogo Costa, de quem já se notavam comportamentos típicos de um jogador dotado de uma maturidade e concentração invulgares para a idade.

"Quanto ao Diogo Costa, toda a gente projetava que ia ser um Vítor Baía. E a verdade é que já tinha comportamentos diferenciados. Tinha uma concentração enorme, no próprio aquecimento para o jogo.  Lembro-me de ainda estarem a equipar-se, à espera para o aquecimento, e ele já estava a fazer uma ativação, com uns elásticos, fones no ouvido, completamente focado. E estou a falar de um sub-17, tinha 16 anos. Uma maturidade enorme, o [Diogo] Leite, o Dalot, eram jogadores que já tinham comportamentos de sénior."

Israel Dionísio
Israel Dionísio Israel Dionísio

Ao longo dos últimos anos, tem sido cada vez mais frequente vislumbramos jovens talentos a estrearem-se na equipa A com 19, 20 ou 21 anos. Algo inédito se recuarmos dez anos. Sobre o papel da formação no crescimento do FC Porto, Israel reconhece que tem havido, de facto, uma maior aposta no agora denominado 'ouro da casa', mas lembra que foi sobretudo a necessidade o empurrão que faltava.

"A formação nos clubes [equipas principais] aparece muito por necessidade. Se repararmos, quando o Lopetegui estava no FC Porto, o Rúben Neves apareceu na equipa A como quarta opção. Ele acaba por ganhar espaço porque alguém se lesionou e acabou por ir agarrando o lugar. A geração dos 'Diogos' aparece por necessidade. E a tendência será cada vez maior. Mas a formação já trabalhava bem, acho que sim. Quando ingressei no FC Porto, o coordenador era o Luís Castro. E tenho-o como uma pessoa muito competente", elogiou, recordando que a idade não deve pesar na altura de decidir se se 'oferece' ou não a derradeira oportunidade. "Pela competência sempre, nunca deve ser pela idade. É como o treinador. Há treinadores mais velhos, mas não fazem reciclagem, o futebol evolui, o treino evoluiu, há que apostar nos mais novos."

O mercado de verão do FC Porto

A propósito do futuro próximo dos dragões, Israel mostra-se feliz pelo crescimento de nomes como Gonçalo Borges, Martim Fernandes, João Mário ou Zé Pedro, mas acredita que as recentes contratações vêm oferecer alguma maturidade e estabilidade ao plantel. "No caso do reforço sueco [Deniz Gul], vejo-o como uma aposta de futuro, de longo prazo. Não será, à partida, uma grande ajuda no imediato. Pelo contrário, vê Samu como uma grande contratação. "Tem potencial, será uma mais-valia".

Quanto ao empréstimo de Fábio Vieira, jogador que também treinou nas camadas jovens, Israel aplaude o regresso do jovem médio.

"Vem motivado para o clube que o formou. É um jogador de que o FC Porto precisa e que não tem há muito tempo: bom nas bolas paradas, muito forte na entrelinhas. Vai jogar nos espaços mais interiores. Não se pode comparar com saída do Francisco, que é um ala puro, que joga no corredor. O Fábio é um 10, pode partir dos corredores, mas vejo sempre como um quarto médio".

Para já, o FC Porto apresenta um registo 100% vitorioso esta época, mas Israel prefere pôr água na fervura com  um "mérito desconfiado, também por causa da mudanças internas. A equipa ganhando vai dando estabilidade à mudança, é verdade,  mas é certo que não vão ganhar sempre e é importante perceber como é que a equipa vai reagir quando as coisas não correrem tão bem, porque esse dia vai chegar", alertou.

Israel Dionísio ao leme de uma equipa recheada de talento. Na imagem, destaque para Fábio Vieira e Gonçalo Borges, mas também Tomás Esteves, que acabou por não vingar na equipa principal.
Israel Dionísio ao leme de uma equipa recheada de talento. Na imagem, destaque para Fábio Vieira e Gonçalo Borges, mas também Tomás Esteves, que acabou por não vingar na equipa principal. Israel Dionísio ao leme de uma equipa recheada de talento. Na imagem, destaque para Fábio Vieira e Gonçalo Borges, mas também Tomás Esteves, que acabou por não vingar na equipa principal. Créditos: Israel Dionísio

Francisco Conceição: "A melhor solução foi o divórcio"

Israel treinou o extremo do FC Porto, agora emprestado à Juventus, nos sub-17 e nos sub-19, já depois de representar o Sporting. Sobre a ida para Itália, Israel reconhece que depois da saída conturbada de Sérgio Conceição, seria difícil para ambos os lados [treinador e jogador] gerirem a situação. E a resposta foi dada em jeito de pergunta, convidando-nos a colocarmo-nos no lugar do jogador.

"Ponha-se na posição do Francisco, enquanto filho, com tudo o que se passou, como dizem que se passou - não tenho conhecimento sobre o processo. Se o fizermos, percebemos que o nosso rendimento dificilmente seria o mesmo. Tudo o que acontecesse - a performance do jogador, a forma do treinador ligar com ele, seria sempre muito difícil. Tudo seria especulativo. Se joga é por isto, se não joga é por aquilo, a melhor solução foi o divórcio. Mas é uma pena. É futebol. O Francisco, como acabou a época, mais a prestação dele no Europeu, ia certamente ser uma mais valia para o clube. Mas se ficasse não seria igual", concluiu num tom premonitório.

A entrada de André Villas-Boas no FC Porto: "Sinto que a mudança tinha de existir"

Agora do lado de fora da muralha azul e branca, mas sempre atento ao clube que foi sua casa durante uma boa parte da vida, Israel Dionísio não esconde que tem descoberto melhorias, começando por dar o exemplo na comunicação do emblema portista.

"Acho que há algo que está à vista de todos. A forma de comunicar do FC Porto mudou muito. Por exemplo, eu quando trabalhava no FC Porto não podia fazer este tipo de entrevistas, o tempo que lá estive desapareci do mundo do futebol, não podia ir a um colóquio, por exemplo, era tudo muito fechado."

"Há uma forma de comunicar mais moderna, mais atualizada, e acredito que a gestão também o seja. São outras pessoas, outra geração. Sinto que a mudança tinha de existir, precisava de algumas atualizações. Se ela [a mudança] tinha de acontecer como aconteceu? Se calhar não. Mas se não fosse assim, provavelmente nunca tinha existido. A mudança era importante, há que dizê-lo, mas sabendo sempre que a pessoa que esteve lá estes anos todos [Pinto da Costa] representou muito bem o clube e será sempre eternizada pelo FC Porto.

A escolha de Vítor Bruno: Da escolha óbvia aos vários fatores que podem prejudicar o recém técnico principal

Vítor Bruno é um dos rostos principais dessa mudança, sucedendo a Sérgio Conceição como treinador dos dragões. Uma decisão "óbvia" no entender de Israel, mas que também envolve algum risco, alertou o treinador.

"É a escolha mais óbvia, tendo em conta o estado do clube. Alguém que já tem anos dentro da estrutura, conhece os cantos à casa e enquadra-se nas possibilidades do clube. Sabendo também que há muito fatores que também podem condicionar essa escolha. Para um jogador que trabalhou muitos anos com o Vítor [como adjunto de Sérgio Conceição] pode ser difícil vê-lo como um líder. É muito fácil ver de fora, mas tendo em conta o cenário de que se fala - não conheço a história, apenas pelas notícias -, imagine um jogador que encara o novo treinador da mesma forma como supostamente é visto pelo antigo treinador", lançou a pergunta, antes de concluir com um facto inegável. "Uma coisa já aconteceu: já ganhou um título".

O futuro de Sérgio Conceição: "Acho que o futuro do Sérgio passará pelo estrangeiro"

Sobre o futuro de Sérgio Conceição, com quem nunca privou, apesar de não raras vezes frequentarem os mesmos espaços, Israel acredita que passará pelo estrangeiro. O técnico deixa elogios ao antigo treinador portista, responsável por onze títulos, e que no seu entender está perfeitamente preparado para um patamar superior.

"A nível europeu, olhando para os jogos que fez na Liga dos Campeões, apresentou-se como uma pessoa muito capaz. Iria ser sempre uma mais valia para qualquer equipa europeia. Todos os jogos que fazia na Europa percebia-se a capacidade que tinha, parece até estar especialmente talhado para os grandes jogos, para os grandes palcos. Aqui em Portugal não fará sentido continuar. No futebol as coisas mudam muito rapidamente, é verdade, mas acho que o futuro do Sérgio passará pelo estrangeiro", vaticinou.

Israel Dionísio
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