Enquanto Mbappé vai dormir à tarde após um treino ou tem uma conversa com o seu manager pessoal sobre a próxima campanha publicitária de milhões de euros, Árni Frederiksberg sabe que tem de tratar das encomendas na sua empresa de distribuição de comida congelada até às 16h00, antes de sair para treinar no KÍ Klaksvíkar, após um turno de oito horas de trabalho.

O seu colega, Odmar Faero, também tem de adiantar serviço nos escritórios do estaleiro naval onde trabalha. Quatro dos seus companheiros de equipa são eletricistas e têm de correr contra o tempo para chegar ao treino às 17h00.

Árni Frederiksberg, Odmar Faero e os restantes 26 jogadores do plantel do Klaksvíkar Ítróttarfelag, ou KÍ, estiveram a dois jogos de andar nos mesmos palcos de Salah, Haaland, Mbappé ou Bernardo Silva esta época na Liga dos Campeões.

Ao contrário do que se possa imaginar, a derrota, no prolongamento, diante do Molde, na terceira eliminatória de acesso à fase de grupos da liga milionária, foi festejada como se de uma vitória se tratasse. É que o pequeno Klaksvíkar Ítróttarfelag, mais conhecido por KÍ, acabara de escrever história no futebol europeu: pela primeira vez, as Ilhas Faroé, de apenas 56 mil habitantes, iam ter uma equipa na fase de grupos das provas da UEFA.

Nem mesmo a eliminação seguinte, no play-off de acesso à Liga Europa diante do Sherfiff Tiraspol da Moldávia (a equipa caiu para a Liga Conferência), roubou o sorriso e a alegria dos cinco mil habitantes que habitam Klaksvík (ilha Bordoy),  a segunda cidade mais populosa das ilhas Faroé, país de apenas 72 km2.

FOTOS: A história recente do KÍ em imagens

O primeiro feito do modesto KÍ Klaksvík, formado na sua maioria por jogadores semiprofissionais, começou na primeira eliminatória da Champions, quando afastou o poderoso Ferencváros, com um 0-0 em  no pequeno estádio Vio Djúpumýrar e 3-0 na Hungria. Seguiu-se o BK Hacken, campeão da Suécia, que caiu em casa nas grandes penalidades por 4-3 (0-0 nas ilhas Faroé e 3-3 na Súécia, após prolongamento).

O conto de fadas na liga milionária terminou diante dos noruegueses do Molde (vitória por 2-1 em casa e derrota 0-2 fora, após prolongamento), em mais uma prova viva da força e capacidade do pequeno KÍ. A queda começou longe de casa, já que a UEFA determinou que o pequeno Vio Djúpumýrar, com capacidade para apenas 2500 adeptos, não tinha condições para receber o jogo. O encontro disputou-se no Tórsvollur, na cidade de Tórshavn (capital), um estádio com capacidade para 6 500 pessoas e onde jogam as seleções das ilhas Faroé.

A derrota frente ao Sheriff Tiraspol, no play-off de acesso à fase de grupos da Liga Europa, colocou a equipa na Liga Conferência, num grupo onde se estreou com uma derrota fora por 1-2 frente ao Slovan Bratislava da Eslováquia. O Lille, do treinador português Paulo Fonseca, e o Olimpija Ljubljana, do também técnico luso João Henriques, são os outros adversários dos faroenses.

20 anos a bater nas portas da Europa

O KÍ é o segundo clube mais importante das ilhas Faroé, se olharmos apenas para o palmarés. Fundado em 1904, venceu o primeiro campeonato do país em 1942, num histórico onde soma 20, quatro menos que o Havnar Bóltfelag Tórshavn, conhecido por HB. A estes 20 campeonatos, soma ainda seis Taças Nacionais e três Supertaças.

A primeira aparição da equipa no acesso à Liga dos Campeões deu-se em 1992/93. Desde então, o KÍ já conta com 14 participações nas provas da UEFA, num total de 48 partidas internacionais, com 13 vitórias e 23 derrotas. Equipas como os israelitas do Maccabi Haifa (Taça das Taças 1995/96), os georgianos do Dinamo Tbilisi (6-1 na Liga Europa 2020/21) e os noruegueses do Bodo/Glimt (3-1 e 0-3 na Champions 2022/23) já foram derrotados pelo pequeno KÍ nas provas da UEFA.

Com uma população de apenas 56 mil habitantes, seria difícil esperar que as ilhas Faroé colocassem uma equipas nas fases de grupos da UEFA. Antes do feito do KÍ, só por cinco vezes o campeão daquele arquipélago, pertencente a Dinamarca mas filiada na FIFA e na UEFA, tinha passado da primeira ronda da Champions.

Os triunfos, contados a dedos, foram conseguidos diante de outros emblemas de menor expressão, como a vitória do B36 contra o Birkirkara, de Malta, em 2006/07. Ou do EB Streymur frente ao Lusitanos, de Andorra, em 2013/14. O HB também venceu o Lincoln Red Imps, de Gibraltar, em 2014/15; o Víkingur bateu o o Trepça, de Kosovo, em 2017/18.

Percurso do KÍ Klaksvík na UEFA em 2023/24

1.ª ronda de qualificação da Champions League
11/07: KÍ 0-0 Ferencváros
19/07: Ferencváros 0-3 KÍ (agregado de 0-3)

2.ª ronda de qualificação da Champions League
26/07: KÍ 0-0 Häcken
02/08: Häcken 3-3 KÍ (3-3 nos 120 min., KÍ venceu 4-3 nas g.p.)

3.ª ronda de qualificação da Champions League
08/08: KÍ 2-1 Molde
15/08: Molde 2-0 KÍ (agregado de 3-2)

Play-off da Europa League
24/08: KÍ 1-1 Sheriff
31/08: Sheriff 2-1 KÍ (agregado de 3-2)

No caso do KÍ, a maior façanha tinha sido conseguida numa ronda onde eliminou o Slovan Bratislava, em 2020/21, mas não em campo: os eslovacos foram desqualificados após um surto de COVID-19 no plantel.

Os jogos nas Europa este época colocaram um dilema no clube, que está a lutar pelo título nacional. O KÍ Klaksvík lidera o Effodeildin 2023 (campeonato das ilhas Faroé) com 62 pontos, mais nove que o B36, quando faltam quatro rondas para o final. O campeonato é disputado durante o ano civil, por 10 equipas, sempre a fugir ao rigoroso inverno que cobre de branco as ilhas Faroé entre novembro e janeiro.

Apesar do domínio que exerce atualmente no campeonato local, o KÍ passou por um jejum de 20 anos, entre 1999 e 2019, sem ser campeão. Nas últimas quatro temporadas, venceu o campeonato por três vezes.

Eletricistas, estudantes, professores, pescadores e vendedores: no plantel há de tudo

Conseguir montar um plantel para jogar nas provas da UEFA numa cidade de apenas cinco mil habitantes é um grande desafio. E isso dá ainda mais importância ao feito do emblema das ilhas Faroé. Dos 34 atletas do plantel de 2023, 23 são das ilhas Faroé. Os outros jogadores são da Noruega, Dinamarca, Suécia, Sérvia e Gana.

Desses, apenas 12 são profissionais e seis são semiprofissionais. Depois há 10 atletas, com idades entre os 17 e os 20 anos, que também são estudantes nas áreas da construção e da mecânica, num plantel cuja média de idades é de 25 anos.

O lateral direito Jóannes Danielsen e o médio René Joensen, trabalham na empresa de fornecimento de energia elétrica da cidade. Outros jogadores estão ligados à indústria pesqueira, uma das principais a atividades económica das ilhas Faroé.

"Temos quatro jogadores que são eletricistas. O Árni Frederiksberg, um dos nossos melhores marcadores, é diretor de uma empresa de distribuição alimentar e um dos nossos centrais, o Odmar Faero, trabalha nos escritórios de um estaleiro naval", conta Rúni Heinesen, vice-presidente do KÍ Klaksvik

Com o campeonato local nas mãos, resta ao KÍ sonhar com uma vitória na fase de grupos da Liga Conferência. Mas Rúni Heinesen já se daria satisfeito com um empate.

"Sendo o mais sincero possível, espero que consigamos um empate em casa, embora saibamos que vai ser difícil. Por um lado, vamos enfrentar adversários com muito valor e, por outro, também estamos a lutar para sermos campeões e temos de gerir muito bem as coisas. A liga aqui nas ilhas Faroé acaba em outubro, pelo que vamos ter muitos jogos nos próximos dois meses. Vai ser muito complicado e acredito que teremos de escolher: somar pontos na Liga Conferência ou tentarmos ser campeões", completou, citado pelo Zerozero.

Em campo, a equipa é comandada pelo antigo médio norueguês Magne Hoseth, a "mente pensante", como destaca o perfil oficial do clube. O técnico de 42 anos venceu a Liga norueguesa em três ocasiões pelo Molde FK e ainda uma Taça da Noruega, como adjunto do técnico Ole Gunnar Solskjaer. Hoseth também fazia parte da equipa técnica do Valerenga, que venceu a liga da Noruega em 2005, além de se ter sagrado campeão dinamarquês pelo Copenhaga, como adjunto.

Como jogador, é um dos ídolos do Molde, onde fez 118 golos em 364 jogos.

"Fazer história pelo clube e pelo país é um feito incrível para mim e para os jogadores. Senti que podíamos mostrar o nosso valor nas provas da UEFA esta época, mas nunca imaginei que iríamos conseguir estar aqui neste momento. Eliminámos o Ferencváros e o BK Hacken e quase que afastávamos o Molde na terceira ronda. Isso foi algo fantástico, mas quase eliminar o Sheriff Tiraspol, que venceu o Real Madrid há pouco tempo, e chegar à Liga Europa foi outro feito especial", contou o o técnico ao worldfootballindex.com

"Estou a gostar muito deste desafio de liderar a equipa nas provas nacionais e da UEFA. A liga [das ilhas Faroé] é interessante porque tem quatro ou cinco equipas com plantéis muito fortes para lutar pelos títulos e os outros que não são assim tão fortes. Isso cria quase como que duas ligas dentro da liga", completou.

No KÍ, o futebol feminino também dá cartas. A equipa é a atual campeã das ilhas Faroé. Em 2013 por exemplo, disputou com o Ouriense (na altura campeã nacional) o acesso à fase de grupos da Champions feminina. Perdeu por 2-1 em Fátima.

Árni Frederiksberg: goleador e gestor de uma empresa de distribuição alimentar

Árni Frederiksberg saltou para a ribalta com os seis golos que marcou nos seis jogos que disputou nas eliminatórias de acesso à Liga dos Campeões. Começou por das nas vistas ao bisar e assistir na vitória por 3-0 na Hungria, que eliminou o Ferencváros logo na primeira ronda.

UEFA Champions League Qualifying - BK Hacken vs KI Klaksvik
UEFA Champions League Qualifying - BK Hacken vs KI Klaksvik Klaksvik celebra vitória sobre o BK Hacken no Bravida Arena em Gotemburgo. créditos: EPA/Adam Ihse

Na eliminatória seguinte diante do BK Hacken, bisou na empate 3-3 no Bravida Arena em Gotemburgo depois de 0-0 em casa. Nos penáltis, foi o KÍ a sorrir. O avançado de 31 anos voltaria ser preponderante na ronda seguinte ao marcar os dois golos na vitória caseira por 2-1 diante do Molde, da Noruega. A derrota fora por 0-2, após prolongamento, destruiu o sonho da equipa na Champions.

Os seis golos em seis jogos chamaram a atenção da imprensa internacional. Mas Frederiksberg já não tem sonhos. O Melhor Jogador das ilhas Faroé em 2022, internacional por 11 vezes pela sua seleção, divide o futebol com o emprego que lhe dá sustento: das 08h00 às 16h00, Árni Frederiksberg trabalha numa empresa que comercializa produtos alimentares, entre eles pizzas congeladas. Das 17h00 às 20h00, vai treinar no KÍ para ganhar mais algum dinheiro.

Já a pensar na reforma, Frederiksberg espera que os mais novos possam tirar partido das condições criadas na pequena cidade de Klaksvík.

"Quando se tem 31 anos, acho que é um pouco tarde [pensar em dar o salto]. Não me parece que vá fazer dinheiro suficiente com o futebol para viver sem trabalhar para o resto da minha vida", disse Frederiksberg.

"Após tantos anos, acho que as ilhas Faroé podem ter o seu primeiro clube totalmente profissional. Mas isso provavelmente acontecerá com os mais jovens, não com os mais velhos como eu", disse o avançado, numa entrevista ao site norueguês 'NRK'.

Frederiksberg está prestes a finalizar a sua terceira época no KÍ. Esteve 10 temporadas no NSI e duas no B36.

Jonatan Johansson pendurou as luvas, voltou como defesa central e foi repescado para a ribalta

Jonatan Johansson teve de esperar até aos 32 anos para chamar a atenção da imprensa. Após uma carreira modesta em emblemas das divisões inferiores da Suécia e da Noruega, o guarda-redes decidiu pendurar as luvas em 2022. Mas para matar o bichinho do futebol, o sueco voltou a jogar no Majorstuen FK, equipa da 5ª divisão da Noruega, mas como defesa central e não na baliza.

Com muitas lesões entre os guarda-redes do KÍ, entre eles o titular, e sem orçamento para mais investimentos, Magne Hoseth, lembrou-se de Jonatan Johansson, seu antigo colega de equipa. Uma chamada bastou para convencer o guardião sueco a mudar-se para a pequena localidade de cinco mil habitantes nas ilhas Faroé e ajudar a equipa a chegar à fase de grupos das provas da UEFA.

Os festejos do guarda-redes Jonatan Johansson, do KÍ
Os festejos do guarda-redes Jonatan Johansson, do KÍ Os festejos do guarda-redes Jonatan Johansson, do KÍ

"Disse-lhe que não defendia há dois anos, mas acreditou em mim e confiou que o meu hábito seria suficiente", disse Johansson, em entrevista ao portal 'Nettavisen, da Noruega', quando questionado sobre a conversa com Magne Hoseth. O clube está tão encantado com o guarda-redes que renovou com ele até dezembro de 2023.

Um mês depois de assinar, estava a defender tudo e mais alguma coisa na estrondosa vitória diante do Ferencváros, equipa favorita mas que foi incapaz de fazer um golo a Jonatan Johansson em 180 minutos.

Jonatan Johansson brilharia depois no jogo histórico, diante do Hacken. Após o 3-3 nos 120 minutos de jogo (0-0 nas ilhas Faroé), o guardião do KÍ defendeu um dos remates no desempate por grandes penalidades, antes de Vegard Forren confirmar o triunfo e uma garantia: na melhor das hipóteses o KÍ entraria na Champions (teria mais duas eliminatórias), na pior das hipóteses entraria na fase de grupos da Liga Conferência.

Sucesso do KÍ reflete-se na seleção das ilhas Faroé

O jejum de 20 anos sem títulos foi quebrado graças ao trabalho de Mikkjal Thomassen como treinador. O técnico chegou em 2015, revolucionou o futebol e a estrutura do KÍ para sair da sombra do HB e do B36. Em 2016 e 2017 o título esteve muito perto, mas a equipa perdeu para o Víkingur.

Numa pequena cidade cujas principais atividades são a pesca e o comércio, o futebol aparece mais como um passatempo. Na sua fundação, o KÍ descreve-se a si próprio como um espaço de convivência e de prática desportiva para ajudar a comunidade.

Mas Mikkjal Thomassen mostrou-lhes que era possível ir mais longe, se o clube fosse o mais profissional possível, dentro das contingências. O clube e o município investiram nas estruturas, criaram mais campos, apostaram ainda mais na formação, sem esquecer o futebol feminino.

O clube não sentiu a saída de Mikkjal Thomassen (regressou ao seu país para orientar o Frederikstad) já que o seu substituto, Magne Hoseth, deu sequência ao trabalho desenvolvido e levou o clube para outro patamar.

Crianças num treino de futebol no KÍ
Crianças num treino de futebol no KÍ Crianças num treino de futebol no KÍ

Foi já com ele na equipa, campeã em 2022, que jogadores como Réne Shaki Joensen, Heini Vatnsdal, Hallur Hansson e Odmar Faero chegaram à seleção, tal como Jákup Andreasen, Jóannes Kalso Danielsen, Borge Petersen e John Johannesen, todos formados na academia do KÍ.

O sucesso do KÍ tem levado a um crescimento cada vez maior do futebol no país.

"O futebol das ilhas Faroé está a crescer, atingimos o recorde de 7200 jogadores inscritos este ano. Isso é mais do que 13 por cento da população do país. Na Federação estamos a organizar competições para todas as idades, dos sete aos 60 anos. Nos últimos anos investimos no desenvolvimento do departamento técnico, que trabalha de perto com os clubes no desenvolvimento de projetos que vão de encontro às suas necessidades", contou a UEFA, Paetur Clementsen, Diretor Técnico da Federação das ilhas Faroé.

As ilhas Faroé é um arquipélago localizadas no Atlântico Norte, entre a Islândia, a Noruega e o Reino Unido, formado por 18 ilhas maiores e outras menores desabitadas. O futebol é um dos oito desportos praticados pelos faroenses, com seleções reconhecidas internacionalmente.

Apesar de o território pertencer a Dinamarca, as ilhas Faroé tem a sua própria seleção, que compete nas provas internacionais em várias modalidades. A federação de futebol foi admitida na FIFA em 1988 e de lá para cá é mais conhecida pelas goleadas que sofre de equipas mais cotadas. No entanto, já foi capaz de bater seleções como Áustria ou Grécia.