Na 'separação de bens' após o final do 'casamento' entre clubes e SAD´s de futebol, pode-se bem aplicar a letra da música 'Comunhão de bens' da cantora Ágata, porque uma das partes está a ficar sem "as jóias, o carro e a casa, as contas do banco e a casa de campo", restando apenas o nome.
É um dos muitos males do futebol português. Um dos muitos denunciados e alertados e que, até hoje, não foram solucionados pelas autoridades competentes: Governo, IPDJ, Federação Portuguesa de Futebol, Liga de Clubes e demais entidades.
Históricos como o Clube de Futebol os Belenenses, a União Desportiva de Leiria, o Beira-Mar Sport Clube e Atlético Clube de Portugal, caíram no abismo e tiveram de recomeçar do zero, na árdua tarefa de recolocar o emblema entre os maiores do futebol português. Se a queda é a pique, a subida faz-se por caminhos sinuosos, cheia de obstáculos e com muitos trambolhões pelo meio.
Desportivo das Aves, a última 'vítima'
Esta semana, mais um clube caiu da Primeira Liga para o escalão mais baixo do futebol português. Uma queda cinco degraus, difíceis de recuperar para o Desportivo das Aves, que acaba de inscrever a sua equipa na Segunda Divisão do Campeonato da Associação de Futebol do Porto. Se quiser voltar à Primeira Liga, terá passar pela 2.ª e 1.ª divisões da AF do Porto, Campeonato de Portugal e Segunda Liga.
O emblema que venceu a Taça de Portugal em 2018, há precisamente dois anos, foi incapaz de sobreviver a um ano atribulado, cheio de peripécias, com salários em atrasos, rescisão em massa, ameaça de não comparência nas derradeiras jornadas da I Liga, falta de transportes para as deslocações da equipa sénior der futebol, clube fechado e chaves desaparecidas e, imagine-se, até a Taça ganha há dois anos a desaparecer.
Com a SAD do Desportivo das Aves a falhar a regularização de salários ao longo da última temporada e consumada a descida do clube à Segunda Liga, os responsáveis pela sociedade anónima que geria o futebol profissional do emblema nortenho falharam também os requisitos de licenciamento para as provas profissionais de 2020/21, junto da Liga de clubes. E ainda dispensaram o recurso para o Conselho de Justiça da Federação Portuguesa de Futebol (FPF), aceitando assim a queda da equipa para o futebol não profissional.
Toda a indefinição em torno do clube, que não sabe em que escalão irá competir na próxima época, levou a atual direção do Aves, liderada por António Freitas, a inscrever a equipa no segundo escalão distrital da Associação de Futebol do Porto. Antes dessa decisão, a nova direção do Desportivo das Aves reuniu-se com a Federação Portuguesa de Futebol para perceber em que escalão a equipa ia jogar. Sem respostas e face ao silêncio da SAD, liderada pelo chinês Wei Zhao, e tendo em conta que o clube voltou a ter os direitos desportivos do emblema nortenho, António Freitas não quis mais esperar e inscreveu a equipa no escalão mais baixo da Distrital do Porto.
Com esta decisão, é provável que o Desportivo das Aves venha a ser o novo Belenenses. Isto porque a SAD do clube, liderada pelo chinês Wei Zhao, assumiu que está a preparar uma equipa para disputar o Campeonato de Portugal, para onde caiu depois de falhar a inscrição no futebol profissional. Ou seja, podemos vir a ter dois Aves no futebol português.
Uma situação semelhante à do Belenenses que após separação entre SAD e Clube, teve de começar do zero, na Segunda Distrital da Associação de Futebol de Lisboa, enquanto a equipa de futebol profissional continuava na primeira Liga, mas com outro emblema e outro nome - Belenenses SAD - uma vez que está proibido de usar o nome e os símbolos do Clube de Futebol os Belenenses.
Neste momento, é clara a separação entre clube e SAD do Aves, com o primeiro a ficar com o nome e muitas dívidas do segundo. A direção do Aves, eleita no dia 27 de junho de 2020, vai solicitar uma auditoria às contas dos últimos mandatos, encabeçados por Armando Silva desde 2010/11, depois de terem encontrado o clube "numa situação extremamente frágil, incapaz de responder às despesas fixas" e com "avultadas dívidas a clubes e fornecedores".
"A direção de Armando Silva não exigiu o pagamento de verbas devidamente definidas no protocolo estabelecido com a SAD. O valor em falta ascende a centenas de milhares de euros. Será agendada em breve e em tempo útil uma Assembleia-Geral Extraordinária para o esclarecimento de todas as questões dos associados", esclarece o clube, em comunicado.
Os atuais corpos sociais acusaram a antiga direção de não ter exigido o pagamento de "centenas de milhares de euros" definidos no protocolo estabelecido com a SAD, tese contrariada com "várias diligências em mais de dois anos para cobrança dos valores" e "inúmeros contactos para obter uma alternativa de investimento credível e viável",
"Algo que nunca pôde ser concretizado face ao elevado passivo acumulado que a SAD apresenta desde o início da sua atividade e que afugentou potenciais investidores. Toda a prova documental dessas diligências foi entregue à nova direção poucos dias após as eleições e faz-se sinceros votos para que tenha mais sorte nestes processos", responde os antigos corpos sociais do Desportivo das Aves, liderados por Armando Silva.
Urgente mudar a lei das SAD´s
Este é mais um caso flagrante de uma separação nada amigável entre clube e SAD, sempre com muito prejuízo para o primeiro. Sempre que há divisões entre SAD´s e clube, como aconteceu com o Belenenses, ou a falência da Sociedade Anónima Desportiva, como foram os casos das SAD´s do Beira-Mar, União de Leiria e Atlético, o clube fundador vê-se obrigado a começar do zero, em vez de assumir a SAD e continuar no escalão onde estava. E, do zero, tenta uma caminhada dolorosa rumo à elite do futebol português. Dos que caíram, ainda ninguém se levantou.
O Decreto-Lei n.º 67/97, que estabeleceu o Regime Jurídico dos Clubes Sociedades Desportivas e o Decreto-Lei n.º 10/2013, de 25 de janeiro, que estabeleceu o Novo Regime Jurídico das Sociedades Desportivas, foram criados para regulamentar a participação dos clubes nos campeonatos profissionais de futebol da Primeira e Segunda Ligas. Para tal, era preciso constituir uma sociedade desportiva, a partir da época 2013/2014. A maior parte dos emblemas optaram pelas Sociedades Anónimas Desportivas (SAD´s), outros, de menor dimensão, formaram uma Sociedade Desportiva Unipessoal por Quotas (SDUQ), num cenário mais favorável à preservação da identidade, já que o clube é titular do seu capital social.
Os emblemas de menor dimensão que optam pelas SAD´s, têm a esperança de atrair investidores que possam colocar capital no clube de forma a ajudá-lo a ser competitivo e chegar a patamares superiores. O problema começa quando os resultados desportivos da equipa principal de futebol começam a escassear. Os sócios, sem voto na matéria na maioria dos casos, começam a ver o futebol, o principal impulsionador do clube, a tomar um rumo longe do que sonharam.
Em 2018, O SAPO Desporto chamou a atenção para este problema, numa reportagem publicada em outubro e que contou com a colaboração de dois presidentes de clubes que tiveram de começar do zero e ainda de um especialista em direito desportivo.
O problema principal neste caso está no caráter não sancionatório da lei, como nos explicou Veiga Gomes, da Abreu Advogados, numa entrevista em outubro de 2018.
"Temos um conjunto de obrigações: no papel está previsto o que cada um - clube e investidor - deve fazer, mas no geral, não há qualquer tipo de sanção para o incumprimento destas obrigações. A lei prevê que a SAD tenha que pagar uma justa contrapartida pela utilização do estádio. Mas se não pagar, não há consequência nenhuma. A lei prevê que o clube tenha um administrador nomeado na SAD mas se essa administração se reunir sem a sua presença ou sem convocar ou dar informação ao administrador nomeado pelo clube, não há qualquer consequência. A lei prevê também que a mudança da sede da SAD tenha de ser aprovada pelo clube. E o que acontece se a SAD resolve ir para outro lado? Nada", explica-nos este especialista responsável pela Área de Prática de Direito do Desporto, da Abreu Advogados, em entrevista ao SAPO Desporto.
"Os problemas resultam de uma lei mal feita, que não prevê qualquer tipo de sanção. Há aí uma parte forte que, no fundo são os acionistas, que têm o maior ativo principal que é o futebol e que julgam poder fazer o que lhes apetecer, sem qualquer tipo de sanção", completa.
A mudança já foi solicitada por quem viu o clube do coração bater no fundo do poço. Patrick Morais de Carvalho, presidente do Clube de Futebol Os Belenenses, já denunciou o problema em mais que uma ocasião junto das entidades competentes mas, até agora, ... nada.
"O Governo, o Estado e a Assembleia da República não podem fazer como a avestruz e meter a cabeça debaixo da areia e fazer de conta que não se passa nada. Passa-se. A Liga e a Federação, mais cedo ou mais tarde, vão ter de deixar de assobiar para o lado e vão ter de começar a preocupar-se porque vão ser muitos casos em catadupa e vão ter de olhar para esta matéria", explica-nos o presidente dos azuis do Restelo.
Tanto Patrick Morais de Carvalho como Ricardo Delgado, presidente do Atlético Clube de Portugal, mostram a sua preocupação com o que já foi criticado por Veiga Gomes, da Abreu Advogados: quem não cumpre não é penalizado.
"O principal ponto a alterar seria um regime sancionatório para, em caso de incumprimento por parte dos putativos investidores, os clubes fundadores poderem ficar defendidos, nomeadamente resgatando a equipa de futebol das SAD´s onde estão e poderem, no momento seguinte, fazer uma outra SAD. Imagina, o clube A, que é sócio fundador de uma determinada SAD, no caso de ver incumpridos os seus direitos especiais, que foi o legislador quem os consagrou, esse clube poder abandonar essa sociedade anónima e levar com ele a equipa de futebol que é sua e poder recomeçar no dia seguinte com uma outra sociedade, no caso de serem comprovadas essas violações grosseiras dos direitos dos clubes fundadores", pede Patrick Morais de Carvalho.
"Os clubes em Portugal não estão preparados para terem SAD´s compradas por investidores estrangeiros. [...]. Ninguém faz nada para proteger e defender os clubes originais. Não sou contra entrada de investidores, mas é preciso haver segurança para que, em caso de incumprimento por parte do investidor, que o clube originário que cria o futebol, nunca é precavido nestas situações. Se houver um incumprimento por parte do investidor, o clube originário, se quiser prosseguir, tem de começar de uma divisão distrital. Não é justo. Quem fomenta o futebol, tem de parar para repensar este problema das SAD´s. Nós, no Atlético, vimo-nos na obrigação de começar na última divisão, quando o que aconteceu foi o não cumprimento por parte do investidor para com o clube. O prejudicado não pode ser sempre o clube fundador", defende o presidente do Atlético.
Outros emblemas registaram conflitos entre SAD´s e clubes, como foram os casos do Leixões, Olhanense e Cova da Piedade.
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