9 de Janeiro de 2023. Ano novo, selecionador novo. Ao fim de 8 anos de ligação quase umbilical a Fernando Santos, Roberto Martínez era apresentado como novo selecionador português. À Cidade do Futebol, casa da Federação Portuguesa de Futebol, o técnico espanhol chegava de sorriso estampado no rosto diante dos jornalistas e com uma rara elegância discursiva que ainda hoje o caracteriza: “É sempre fácil suceder a um grande selecionador, podemos aproveitar o trabalho. A ideia é agradecer a Fernando Santos e manter as coisas boas.”
Quase um ano depois, podemos dizê-lo: não só manteve as boas, como, até ver, corrigiu as más. E são os números que o provam: 10 vitórias em 10 jogos na fase qualificação para o Euro 2024. 36 golos marcados, 2 sofridos.
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Pelo meio, uma goleada por 9-0 ao Luxemburgo e a oportunidade dada a José Sá, Totti Gomes, João Neves, João Mário e Gonçalo Inácio, que se estrearam ao serviço da seleção principal. O resultado? Um apuramento histórico, o mais precoce de sempre, e a manutenção de uma marca pessoal a que é impossível ficar indiferente. Em 39 jogos de qualificação para fases finais, entre a Bélgica e Portugal, Roberto Martínez nunca perdeu. E que assim continue.
Chegar, ver e vencer. Mas antes, conversar com Ronaldo
Foi debaixo de uma autêntica crise que a seleção portuguesa fechou a sua participação no Mundial do Qatar. Cristiano Ronaldo saiu em lágrimas no jogo da eliminação diante de Marrocos, já depois do noticiado desentendimento com Fernando Santos. O incidente terá gerado algum desconforto no balneário e, consequência disso ou não, Portugal caiu aos pés da seleção africana nos oitavos-de-final do campeonato do mundo.
E foi com essa aura de negatividade que, cinco dias depois da despedida do Qatar, chegou a notícia já esperada da saída de Fernando Santos, apesar do vínculo com a Federação Portuguesa de Futebol até 2024. O técnico de 68 anos deixava a equipa das quinas após oito anos, período no qual guiou Portugal à conquista de dois títulos: o Europeu de 2016 e a Liga das Nações de 2019 - os primeiros de sempre da seleção das quinas.
Perante este cenário, menos de um mês depois, Roberto Martínez era anunciado como o novo selecionador português. Antes disso, na imprensa desportiva portuguesa, foram vários os nomes falados, com José Mourinho no topo das possibilidades. E talvez por isso, logo de início, tenham surgido vozes críticas, ou pelo menos hesitantes, da escolha do técnico espanhol - muitos até pela sua nacionalidade. Uma sugestão que não parece ter tido qualquer influência no momento de decidir: “na construção do perfil, nunca foi relevante o local de nascimento do novo selecionador de Portugal, garantiu Fernando Gomes durante a apresentação de Martínez.
José Mourinho encabeçou uma lista extensa de nomes de treinadores portugueses falados na imprensa, mas apesar dos contactos assumidos por Fernando Gomes a alguns técnicos lusos, a única proposta tinha sido apresentada ao ex-selecionador da Bélgica, país que representou durante seis anos sem qualquer título conquistado, apesar do vistoso desempenho, sobretudo no Mundial 2018.
Foram várias as questões disparadas ao novo técnico, entre elas, se contaria com Cristiano Ronaldo - era o que todos queriam saber. A resposta prática chegava dias depois, quando se soube da viagem relâmpago de Martínez à Arábia Saudita para falar com o capitão português. Provavelmente, de forma compreensiva ou não, dependendo das opiniões, uma das primeiras ações desde que assumiu o novo cargo. O que alguns viram como uma possível subserviência ao capitão, outros entenderam como uma nova oportunidade a alguém que tanto deu à seleção portuguesa, de poder dar o seu contributo no novo projeto, a começar pela qualificação para o Europeu da Alemanha.
Uma conversa franca que viria a dar frutos. O capitão lá voltou e respondeu ao voto de confiança com o que se espera dele: 10 golos em 10 jogos.
Apesar da persistência de algumas vozes críticas, Ronaldo esteve em todas as convocatórias de Martínez e a boa relação entre os dois permitiu contornar os episódios menos felizes do capitão português ao longo do Mundial, mas também ao serviço do Manchester United.
O selecionador visitou e falou pessoalmente com os 26 jogadores que estiveram no Mundial 2022 - fez mais de dez viagens, além das deslocações internas - mas este talvez tenha sido o encontro basilar para devolver a serenidade à seleção portuguesa. Pelo menos aos olhos do exterior.
Ó Pátria, sente-se a voz
Soube-se mais tarde, mas percebeu-se desde cedo. Logo na apresentação, um simpático "boa tarde" e um sorridente "obrigado" construíram a ponte de ligação entre o novo selecionador e a comunicação social. Roberto Martínez ainda falou castelhano na maioria do seu discurso durante a sua primeira aparição, mas há muito que já estava a ser acompanhado por um professor de português. Aliás, não foram precisas muito mais conferências para se detetarem melhorias.
Roberto Martínez quis aprender português e já o faz quase na perfeição. E o pináculo do profissionalismo do ex-selecionador belga está plasmado no momento do hino nacional, que antecede cada jogo. Em alto e bom som, por diversas vezes já foi possível ver, através das câmaras, Martínez a cantar 'A Portuguesa', feito que o próprio já tinha reconhecido como objetivo pessoal. E, diga-se, cai bem a qualquer português apoiante da seleção.
Das estreias a mais uma renúncia, sem esquecer os leões em 'standby'
Ainda escaldada pela renúncia relâmpago de Rafa na era Fernando Santos, a seleção portuguesa voltaria a ficar com menos um jogador disponível para a representar. Num domingo, uma dia antes do técnico espanhol anunciar as escolhas para os jogos do Grupo J de qualificação para o Euro 2024, João Mário, aos 30 anos, anunciou a sua retirada da seleção nacional.
Um dia depois, Martínez foi perentório, apesar da tácita crítica do médio dos encarnados: "Temos de respeitar o João Mário. É um jogador de um profissionalismo exemplar, com um caráter muito positivo no grupo. É uma decisão pessoal. Temos de respeitar e guardar as memórias. É um campeão europeu", disse Martínez após palavras queixosas do médio do Benfica sobre o facto de ter poucos minutos na suposta melhor fase da carreira. Em sentido inverso, há ainda a destacar as chamadas e respetivas estreias de José Sá, Totti Gomes, João Neves, João Mário (FC Porto) e Gonçalo Inácio. Cinco estreias em dez jogos, que abrem a porta a futuras entradas de jogadores atualmente já internacionais na categoria sub-21.
Quem continua à espera de uma oportunidade é Paulinho e Pedro Gonçalves (e também Nuno Santos). A boa época dos jogadores do Sporting ainda não chegou para a chamada a seleção, o que tem merecido algumas críticas ao selecionador português. Roberto Martínez tem reconhecido o bom desempenho dos dois avançados leoninos, mas aponta para Gonçalo Ramos e Cristiano Ronaldo para justificar a ausência de ambos na convocatória. Este tem sido, talvez, o calcanhar de aquiles do técnico espanhol desde que chegou a Portugal, agravado pelas chamadas de João Félix e João Cancelo - muito criticadas - quando os jogadores do Barcelona foram convocados sem que tivessem ritmo de jogo à data dos jogos da seleção.
Um clube chamado Portugal
Não é propriamente uma novidade, mas atualmente treinar uma seleção representa um desafio que ultrapassa e muito o trabalho efetivo dos jogos, muito espaçados no tempo. A estrutura da Federação tem oferecido ao longo dos últimos anos as melhores condições a todos os profissionais que a representam e Roberto Martínez cedo fez saber que tudo faria para liderar uma "seleção moderna".
Um dos segredos do sucesso de Martínez tem sido fazer a seleção funcionar como um clube. Para o selecionador não há trabalho apenas de mês a mês e a FPF tem-se esforçado para ir revelando através da sua comunicação um pouco do trabalho da nova equipa técnica liderada por Martínez. Reúne-se quase diariamente com o staff, analisa relatórios, visita jogadores, fala com treinadores de clubes e é visto com enorme frequência a assistir aos jogos da I Liga, dos estádios dos 'grandes' aos redutos dos clubes ditos mais pequenos. Assim que entrou no novo escritório selecionou 200 jogadores (foi o próprio que o confidenciou aos jornalistas), um número que foi reduzindo até chegar aos 82 que monitoriza atualmente.
Fá-lo com recurso a uma ferramenta de Inteligência Artificial, capaz de analisar o sistema tático em que jogam nos clubes, a condição física, o processo tático, o calendário de jogos, os minutos por jogo e centenas de dados de desempenho individual e coletivo. Por outras palavras, gere a seleção como se de um clube se tratasse. E os resultados, pelo menos até agora, estão à vista de todos.
O poder da humildade, que também vence jogos
A 23 de março de 2023, Roberto Martínez estreou-se ao comando da seleção portuguesa. Os portugueses festejaram a vitória, 4-0 sobre o Liechtenstein, mas não viram o momento em que o selecionador abordou a comitiva envolvida na organização em Alvalade, chamando-os pelo nome e agradecendo-lhes o trabalho. E as vitórias de Portugal dentro de campo talvez comecem aqui. Na grandeza fora dele.
Pelo apuramento histórico, pela forma elegante como soube adaptar-se à realidade portuguesa dentro e fora do relvado, pela humildade de reconhecer a importância de aprender a língua do país que representa, Roberto Martínez é, inevitavelmente, uma das principais figuras nucleares do desporto nacional em 2023. De nuestro hermano a nosso irmão. 'En menos que canta un gallo'. (que é como quem diz, num autêntico piscar de olhos).
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