O português André Neres, 18 vezes campeão nacional de escalada, desistiu de acalentar o sonho olímpico para Tóquio2020, assim como outros praticantes da modalidade, devido a um impasse federativo que se arrasta há anos.
Aos 33 anos, o ‘eterno’ campeão nacional em masculinos ressalva, em entrevista à Lusa, que a modalidade tem muito mais do que o espetro competitivo, ainda que a entrada no programa olímpico, a começar por Tóquio2020, possa trazer vários fatores positivos.
“Por toda a atenção mediática e investimento financeiro, de condições dadas aos países, é sempre positivo, mas há quem não o veja dessa forma, e há assuntos que não são consensuais, como a escolha do formato olímpico”, aponta.
Em Portugal, Neres podia estar, por estes dias, em Toulouse a competir num dos eventos de qualificação olímpica, mas um imbróglio que se arrasta há vários anos, e que já chegou ao campo jurídico, impede os atletas de competirem no patamar internacional.
A situação, a decorrer desde pelo menos 2017, decorre devido a um impasse entre a Feeração Portuguesa de Campismo e Montanhismo (FPCM), que se encontra em processo de “revalidar a inscrição” na Federação Internacional de Escalada Desportiva (IFSC), depois de resolvido um problema com a Federação Portuguesa de Montanhismo e Escalada, legitimada pela IFSC, mas sem o estatuto de utilidade pública desportiva, na posse da FPCM.
Esta questão ‘atrapalhou’ qualquer preparação olímpica, uma vez que a possibilidade “não era assim tão real” devido aos atletas lusos estarem impedidos de participar em competições internacionais.
Estar elegível para participar nos Jogos permitiria acrescentar “bolsas e investimento e apoios para atletas e seleções”, um apoio “extra federação e acima do normal”, além da “visibilidade e importância, até em termos de patrocinadores”.
“Uma das minhas maiores vontades era poder ver este impasse federativo resolvido, quer para um lado ou para outro. (...) É uma coisa que nos está a fazer... nem sequer estamos estagnados, parece que estamos a andar para trás no tempo. É mau para toda a comunidade da escalada em Portugal”, desabafa.
Hoje em dia, “ainda não há” condições no que toca a infraestruturas e recursos humanos, mesmo que essa questão esteja a ser melhorada, porque “a matéria prima, os atletas, estão lá”, faltando agora “mais muros e pessoas competentes, mais experientes”, para se poderem aproximar do que se passa lá fora.
“[Lá fora] não têm mais dedos nas mãos do que nós, não são ‘superhumanos’, têm é mais condições de treino e experiência. Para mim, é uma questão de tempo e trabalho para se atingir esse nível”, considera.
André Neres terá 38 anos em Paris2024, por isso não se vê a pensar nisso, mas talvez “ligado ao programa olímpico, a preparar outros atletas e a trabalhar para gerações futuras”, mesmo que tenha ainda o sonho de “voltar a participar em campeonatos do mundo”.
“Não sei que ambições ou objetivos posso ter, mas sinto hoje que nunca estive tão bem preparado ou em forma como tenho estado ultimamente. Tenho viajado imenso para vários centros mundiais de escalada, onde treinam os melhores, e isso entusiasma-me”, conta.
Se a escalada está, a nível mundial, em “franco crescimento, um bocado ‘na moda’”, em Portugal concentra-se sobretudo na zona da Grande Lisboa, com três muros de treino, ginásios de escalada, abertos recentemente, e mais um a caminho.
Por outro lado, na escalada em rocha, “a maior parte das zonas de qualidade está em Sintra, Cascais, na margem sul, no Cabo Espichel ou na Arrábida”, algo que acontece, também, porque o turismo na região atrai escaladores, entre eles Alex Honnold, protagonista do documentário 'Free Solo'.
Honnold é um dos nomes mais reconhecidos da escalada e 'Free Solo' recebeu o Óscar de Melhor Documentário em 2018, tendo treinado, nesse ano, com o escalador português.
Ainda assim, Neres frisa que esta “é uma modalidade que não tem só a vertente competitiva, mas também a escalada em rocha”. “Isso alicia-me, é aí que os meus olhos brilham”, revela.
Há essa “filosofia inerente”, então, que se torna “muito distante da competição”, antes uma espécie de estilo de vida, com a “vertente de aventura e competição pessoal, de superação dos próprios níveis”.
Do encadeamento de momentos ao longo de um itinerário definido no local da escalada às “milhões de vias [de escalada] pelo mundo inteiro”, este é um desporto que apresenta, para cada praticante, “uma evolução que não tem fim”.
Por outro lado, há “a questão da superação dos medos, da altura, dos riscos, o que faz com que não seja meramente físico”, mas também as viagens pelo mundo. “Tudo isso faz parte do espírito da escalda”, remata.
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