"Nós somos do andebol e vamos para onde o andebol nos levar", foi esta a frase que João Castro levou na bagagem para a sua jornada em busca de novos horizontes pessoais e de mostrar àqueles que nascem com uma bola no pé, o que se pode fazer quando esta passa para as nossas mãos.
Futebol, rugby, ciclismo, cricket, triatlo, estas são apenas algumas das várias modalidades que nos saltam à cabeça quando falamos de Inglaterra e Reino Unido. Já o andebol (ou 'handball') dificilmente fará parte da lista do mais eclético dos adeptos de desporto britânico. Até 2012, altura dos Jogos Olímpicos de Londres, provavelmente muitos ingleses não faziam ideia da existência de uma modalidade associada, primordialmente, à Escandinávia, Norte da Europa e, mais recentemente, América do Sul.
Contudo, existe em curso um plano de desenvolvimento da modalidade em terras de Sua Majestade, e que tem o treinador João Castro como uma das suas pedras basilares. A nossa rúbrica "Mister, mudei de casa", destaca esta semana a animada conversa com o treinador luso que foi desde o Benfica e a Liga espanhola, até aos Jogos Olímpicos Asiáticos, e que hoje procura mostrar em terras britânicas que 'handball' não é só um termo futebolístico para indicar 'mão na bola'.
Enquanto treinador, João Castro conquistou títulos nacionais nos escalões de formação e na equipa principal do Benfica. Vendo esgotadas as suas opções em Portugal, o técnico resolveu embarcar em novas aventuras no estrangeiro. A sua passagem por Espanha coincidiu com o rebentar da pandemia, obrigando a nova e inesperada mudança de planos; a próxima etapa surgiu de uma zona improvável do globo, uma potência desportiva mundial, mas ainda a dar os primeiros passos no que diz respeito ao andebol.
A carreira do jogador e a formação do treinador
Com 42 anos, o técnico português teve o primeiro contacto com o andebol através do desporto escolar com 10/11 anos, tendo passado posteriormente para os escalões de formação do Paço De Arcos e do Passos Manuel e mais tarde para as respetivas equipas principais. Ainda durante o seu percurso de atleta, João Castro percebeu que o seu caminho profissional passaria pelo treino e pela formação.
"Fiz o curso de Educação Física; durante o curso pretendi desde muito cedo iniciar a prática de treinador, começar a colocar alguns dos conhecimentos em prática e a meio do curso já estava a treinar equipas de infantis, por volta do ano 2000. Fiz mestrado, iniciei o doutoramento relacionado com o guarda-redes de andebol. Treinei vários escalões de iniciados, juvenis, e participei, com o Passos Manuel, num projeto de captação de miúdos nas escolas. Foram cerca de dez anos a treinar clubes da zona de Lisboa nos escalões de formação".
"Senti naquela altura que o meu percurso em Portugal já estava preenchido e que, para continuar a ser treinador profissional em Portugal, seria muito complicado pois não há assim tantas possibilidades"
Entre 2010 e 2018 o técnico fez parte da equipa técnica do Benfica. Durante esse período, João Castro foi alternando entre a equipa principal, enquanto adjunto, e o comando das equipas de formação dos encarnados, mais propriamente a equipa de sub-14, sub-18 e sub-20. Ao serviço da equipa sénior, o lisboeta conquistou duas Taças de Portugal e duas Supertaças, enquanto que, nas equipas de formação, foi campeão nacional de sub-14 e bicampeão nacional em sub-20.
Contudo, e apesar do sucesso e dos títulos, João Castro começou a perceber que a margem de progressão da carreira era cada vez menor em Portugal e sentiu necessidade de abraçar outros projetos fora do país.
"Entre 2010 e 2018, tive três passagens pelo Benfica como treinador adjunto e treinador de guarda-redes da equipa principal; primeiro com o Professor José António, depois com o Professor Jorge Rito e finalmente três anos com Mariano Ortega; foram três passagens distintas, três projetos diferentes, em que fui crescendo e também tendo cada vez mais oportunidades na equipa principal, que conciliava com o trabalho que também desenvolvia nos escalões de formação. Mas senti naquela altura que o meu percurso em Portugal já estava preenchido e que, para continuar a ser treinador profissional em Portugal, seria muito complicado pois não há assim tantas possibilidades", disse o treinador.
De Lisboa para Riyadh
Depois de oito anos na Luz, três dos quais enquanto adjunto de Mariano Ortega, o treinador João Castro resolveu fazer as malas e acompanhar o técnico espanhol na equipa técnica da seleção nacional da Arábia Saudita, país cuja formação já tinha muitas presenças em Campeonatos do Mundo, mas sempre com resultados modestos.
A falta de oportunidades em Portugal, o desafio aliciante e o desejo de ter contacto com outras culturas levaram João Castro a aceitar o convite e fazer as malas para o Médio Oriente.
"Sabia que ia ser complicado a nível familiar e pessoal, como é óbvio, mas ao mesmo tempo desafiante porque iria ter contacto com uma cultura totalmente diferente. A nível desportivo o convite da Arábia Saudita foi muito desafiante pois, para além de nunca ter trabalhado com uma seleção nacional, o processo envolvia a ida aos Jogos Olímpicos de Ásia e depois ao Mundial, tudo isto inserido numa cultura totalmente distinta da é nossa. Procurámos deixar o nosso cunho".
"'Vocês são muito profissionais, mas às vezes são profissionais demais! Nós precisamos disso, mas não conseguimos', disseram-nos"
Apesar dessa vontade, a verdade é que a nova equipa técnica da formação saudita encontrou uma estrutura pouco profissional e uma mentalidade pouco metódica, onde todo e qualquer problema era resolvido sempre da mesma maneira, e bem ao jeito da cultura daquele país.
"Foi complicado, porque é uma diferença cultural bastante acentuada. Em termos organizativos é muito pouco estruturado. A cultura do país, dos jogadores e da federação é muito baseada no dinheiro e é o dinheiro que resolve tudo; não interessa o processo, ou métodos de trabalho, o principal foco é o resultado"
O treinador português não esquece a experiência que foi participar nos Jogos Olímpicos da Ásia em 2018, momento que aproveitou para entrar em contacto com diferentes culturas, e assistir a modalidades que nem sequer sabia que existiam.
"Para nós foi bastante enriquecedor participar num Jogos Olímpicos, poder entrar num estádio olímpico com 90 mil pessoas na cerimónia de abertura, com trajes árabes e a beber dessa experiência. Estamos a falar de de um continente vastíssimo com culturas totalmente distintas, que vão desde os países como a China ou Japão, passando pelo Médio Oriente até à Rússia, Cazaquistão, Índia; diferentes culturas todas juntas numa aldeia olímpica, todas juntas a competir em diversas modalidades que nós europeus nem sequer jogamos, nem sabíamos que existiam.
Todavia os Jogos disputados na Indonésia também serviram para expôr todas as fragilidades estruturais e profissionais da equipa e federação saudita de andebol.
"Muitas vezes ouvíamos da estrutura: 'Vocês são muito profissionais, mas às vezes são profissionais demais! Nós precisamos disso, mas não conseguimos, porque temos hábitos alimentares, de sono e de trabalho, completamente diferentes!', disseram-nos. O único treino em que conseguimos ter toda a equipa disponível foi no dia da véspera do jogo que nos apurava para as medalhas. E, de repente, era aí que queriam tudo resolvido, tudo preparado. E não é assim que se fazem as coisas."
O regresso à Europa e um adversário inesperado
Finalizada a aventura pelas arábias, João Castro esteve alguns meses inativo enquanto treinador; tendo, contudo, continuado a dar e a receber formação nessa área. A época terminou com uma breve passagem pela equipa feminina do Passos Manuel, período que, apesar de curto, permitiu descortinar algumas vicissitudes do andebol feminino em comparação com a vertente masculina.
"Não há grandes diferenças relativamente aos métodos de treino. As jogadoras apenas querem ser tratadas como atletas, tal e qual como no caso masculino. Para além disso elas revelaram sempre uma enorme capacidade de trabalho. É preciso demonstrar o mesmo grau de exigência que terias na vertente masculina, elas reagem muito bem a esse tipo de estímulo", sublinhou o treinador.
"Notei que em Espanha começava a reconhecer-se cada vez mais a qualidade do treinador português."
No arranque da temporada seguinte, o português estava novamente na companhia de Mariano Ortega, só que desta vez ao serviço do BM Guadalajara, equipa que militava na primeira divisão do campeonato espanhol. Depois de um período de menor intensidade competitiva na Arábia Saudita, João Castro voltava aos grandes palcos europeus, cenário que exigiu do técnico um período de readaptação.
"Era a primeira vez que estava a trabalhar com um clube num país diferente. Por isso, no caso do Guadalajara, mais do que uma adaptação profissional, foi preciso uma adaptação pessoal. Ia conhecer um novo país, uma nova cultura, um novo clube, novos jogadores; o único fator que se mantinha era o método de trabalho que tinha criado com o Mariano Ortega", afirmou.
Contudo esse período de familiarização à nova realidade foi facilitada de sobremaneira pela comunidade andebolística espanhola. O desenvolvimento andebol português a nível europeu da altura acabou por beneficiar o treinador adjunto do Guadalajara que, à semelhança de muitos treinadores portugueses, começaram a ver o seu trabalho reconhecido.
"Notei que em Espanha começava a reconhecer-se cada vez mais a qualidade do treinador português. Numa altura em que Portugal estava a começar a ter bons resultados nos escalões jovens, como foi o caso do Mundial de sub-20 em Espanha com a geração do Luís Frade, foi sendo valorizado o impacto do nosso trabalho"
Depois de uma primeira volta um pouco abaixo do esperado, o clube espanhol começou a recuperação na segunda metade do campeonato. Contudo, e numa altura em que atravessava a melhor fase da temporada, a pandemia acabou por interromper a época e deixar muitas interrogações no ar.
"Quando estávamos a caminhar para a segunda volta ocupávamos o sétimo lugar, a melhor posição de sempre do Guadalajara no campeonato; havia nessa altura uma grande satisfação pelo trabalho que estava a ser desenvolvido. Entretanto também já estávamos a preparar a próxima temporada. Foi nessa altura que rebentou a pandemia, e, da parte do clube, houve uma grande incerteza sobre como seria a temporada seguinte em termos financeiros. Aí os responsáveis do Guadalajara disseram-me que não era possível manter dois treinadores profissionais no clube."
Inglaterra? Porque não?
Perante a situação no Guadalajara, João Castro começou em busca de alternativas, nunca fechando a porta a nenhum projeto que pudesse considerar interessante. Contudo, as respostas que recebia eram praticamente sempre as mesmas.
"Os clubes que contactava tinham praticamente sempre o mesmo discurso incerto: 'Vamos ter de aguardar porque não sabemos qual será a nossa situação orçamental. Não sabemos se vai haver campeonatos ou não'. E foi neste cenário que eu tive conhecimento de uma vaga que ia abrir para uma academia de jovens aqui em Inglaterra. Na altura pensei: 'Porque não? É um país de topo em termos desportivos, fico próximo de Portugal e da minha família'. Para além disso, e do que tinha pesquisado acerca da academia, parecia um projeto com potencial".
"Porque eles não veem andebol aqui, a quantidade de jogos que têm aqui no Reino Unido não é comparável com o que têm na Europa."
De entre os 30/40 candidatos de vários países, o escolhido acabou por ser João Castro. No início, o técnico luso contactou Ricardo Vasconcelos, treinador de andebol português que está há mais de dez anos a trabalhar em Inglaterra, para se informar acerca das condições e dos objetivos da federação para a Elite Performance Academy (EPA)
Não sendo Inglaterra uma nação com tradição no andebol, naturalmente o treinador português encontrou em em terras britânicas um projeto ainda em fase embrionária e com muito poucos praticantes. Perante este cenário, era claro aquilo que era preciso fazer inicialmente.
"O que era preciso era dotá-los das capacidades técnicas e de conhecimento do jogo. Porque eles não veem andebol aqui, a quantidade de jogos que têm aqui no Reino Unido não é comparável com o que têm na Europa. Não há assim tantos jogos para que os miúdos possam conhecer o jogo e os jogadores e assim desenvolvam uma cultura andebolística que os permita evoluir".
Apesar do foco estar no desenvolvimento da capacidade dos jovens atletas enquanto desportivas, a EPA é uma academia muito ligada à cultura tradicional britânica de educação, procurando também providenciar ferramentas aos jovens para que possam enveredar por carreiras alternativas ao desporto.
"O que estamos aqui a fazer na academia está muito enraizado na cultura desportiva inglesa. Os miúdos vêm para aqui com 16 anos, fazem o ensino secundário em regime de internato. Treinam às 7 da manhã, têm aulas, vêm treinar às 17/18 horas. Enquanto isso têm acesso a nutricionista, psicólogo, preparador físico e têm formação nessas áreas específicas para que possam ter uma carreira profissional alternativa caso não consigam tornar-se jogadores profissionais de andebol. A formação não se limita ao andebol, o andebol é que acaba por beneficiar desta estrutura pedagógica que é direcionada a desportistas de excelência", descreve João Castro.
O andebol continua a ser uma modalidade ainda com pouca expressão em Inglaterra e no Reino Unido, contudo, o trabalho de João Castro na EPA começa a gradualmente dar os seus frutos. Muito deste crescimento reside, segundo o técnico luso, no trabalho feito diretamente com a seleção britânica e nos protocolos que permitem a jovens atletas desenvolverem-se enquanto andebolistas em países de topo da modalidade em termos mundiais.
"É preciso dar mais um passo, mas cada passo tem muito trabalho por trás. Tem quatro, cinco anos de trabalho. Por exemplo aqui na academia: começámos com nove alunos, e atualmente temos trinta"
"Os nossos jovens agora estão dois, três anos aqui na academia no Reino Unido para compensar um bocadinho essa diferença de bases relativamente a outros países, e depois os melhores jovens vão para academias na Dinamarca para continuar o seu processo de formação, passando posteriormente para os clubes. Com o trabalho que estamos a desenvolver com o Ricardo Vasconcelos na seleção britânica temos, nos últimos quatro, cinco anos, colocado vários jogadores em clubes de Portugal, Espanha, Luxemburgo, ou da Alemanha.
Mesmo com todo o trabalho desenvolvido em torno do andebol inglês, e que já começa a trazer alguns resultados à equipa nacional, João Castro acredita que Inglaterra e o Reino Unido em geral têm muita margem de crescimento e dá a receita para que tal continue a acontecer.
"É preciso continuar, por um lado, a alargar a base e a fazer trabalho nas escolas para que mais gente possa jogar andebol. Assim poderão surgir mais miúdos e miúdas com talento para poderem desenvolver todas as suas capacidades nos escalões de formação das seleções. O nosso foco na EPA passa também muito por continuar a desenvolver jovens atletas para que tenham condições de continuar a sua formação em clubes e países de outra dimensão. Tal processo acabará por dar os seus frutos no que à seleção nacional britânica diz respeito.
A seleção da Grã-Bretanha de andebol qualificou-se recentemente para a segunda fase de qualificação para o próximo Campeonato da Europa. O técnico português utiliza esse feito como um exemplo de como o desenvolvimento do andebol deve ser feito.
"Há quatro anos, jogávamos contra algumas destas seleções a quem agora ganhamos e ganhamos com relativa facilidade e, ou perdíamos ou ganhávamos por poucos. O patamar seguinte serão seleções que competem contra equipas como Portugal e que perdem. Estamos a falar do Luxemburgo, da Lituânia, equipas com jogadores na Liga dos Campeões. É assim que se deve ir, passo a passo; é preciso dar mais um passo, mas cada passo tem muito trabalho por trás, cerca de 4/5 anos de trabalho. Por exemplo aqui na academia: começámos com nove alunos, e atualmente temos trinta", concluiu.
"Para muitos que queiram ter esta atividade profissional, terão que passar por esta via, porque as possibilidades de ser treinador de andebol em Portugal são reduzidas devido aos constrangimentos financeiros"
Desde 2018 que João Castro não desenvolve o seu trabalho em Portugal, preferindo testar as suas capacidades noutros pontos do globo. O técnico acredita que, quem quiser seguir a carreira de treinador de andebol, terá quase obrigatoriamente de tentar a sua sorte no estrangeiro.
"Atualmente no andebol já temos treinadores em vários pontos do globo, mas, nesse aspeto, estamos cerca de vinte anos atrasados em relação ao futebol. O futebol, por volta do ano 2000, estava mais ou menos na mesma situação em que está agora o andebol. Nunca tivemos tantos treinadores em tantos países, não há continente onde não tenha treinador português de andebol. E estou convencido que, para muitos que queiram ter esta atividade profissional, terão que passar por esta via, porque as possibilidades de ser treinador de andebol em Portugal são reduzidas devido aos constrangimentos financeiros."
Podem chamar-lhe 'balonmano', 'handball', ou 'Kurat alyad', para João Castro o andebol será sempre uma linguagem universal que ultrapassa fronteiras, culturas ou costumes. Para o português, esta modalidade é fundamentalmente um veículo de desenvolvimento pessoal e profissional que o permitiu viajar pelo mundo, ensinando e aprendendo.
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