Pela velocidade desta corrida, Tiago Dionísio terá realizado mil maratonas em 2029, aos 55 anos. Mas é muito provável que chegue a esta marca antes de 2029. Este analista económico de 45 anos já fez 700 maratonas, a um ritmo de uma prova de longa distância a cada 13 dias, nos últimos 25 anos. São mais de 34 mil km a correr. O homem que já realizou 13 maratonas em 11 dias, chega a deixar o escritório em Lisboa no final da tarde de sexta-feira, apanhar um avião para Inglaterra, fazer uma maratona no sábado de manhã, outra no sábado a tarde e outra no domingo e voltar ao trabalho na segunda-feira, na capital Portuguesa. Para Tiago Dionísio, correr é como respirar. Começou aos 20 anos, usou o primeiro salário como profissional para fazer a Maratona de Londres.
O corpo será sempre o barómetro do limite, mas Tiago Dionísio quer correr até aos 70 anos. Hoje, ostenta o estatuto de português com mais maratonas realizadas, mas podia já nem estar no 'mundo dos vivos'. Em 2006, ficou a conhecer melhor as suas limitações quando fez uma ultramaratona de 90 km na África do Sul e outra de 160 km nos Estados Unidos da América, em apenas uma semana. O seu corpo não resistiu a tanto esforço: os músculos das pernas ficaram destruídos, os rins deixaram de funcionar. A lição estava dada e aprendida, Tiago Dionísio tinha descoberto que afinal não era um Super-homem.
Duas ultramaratonas numa semana e a vida por um fio: "Quando fui a casa de banho urinei sangue"
Fazer uma maratona, apanhar um avião para fazer outra, tornou-se rotina para Tiago Dionísio. Em 2006, propôs-se entrar no restrito grupo de pessoas a fazer a Maratona Comrades, na África do Sul, de 90 km, e depois a Western States, na Califórnia, de 160 km. Até a data, apenas três homens tinham conseguido tal feito, incluindo dois amigos sul-africanos que este português conheceu na Durban. Tiago seria o quarto a fazer as duas provas de seguida.
Mas vários contratempos e o facto de ter apenas uma semana entre uma prova e outra (os outros três corredores que antes alcançaram tal feito, tiveram um intervalo de duas semanas entre as provas) quase lhe roubavam a vida. Terminado os 160 km, Tiago Dionísio teve de ser internado durante três semanas, com uma insuficiência renal. Podia ter sido fatal.
Cheguei pouco antes de meia hora do tempo limite, quando fui a casa de banho urinei sangue
"Aprendi que depois de um esforço grande, apanhar um avião no dia seguinte não é recomendável porque desidratamos muito durante o voo. Tive azar porque nesse ano na Califórnia, a temperatura era muito elevada, numa prova a 3000 metros de altitude. Aprendi a lição. Hoje em dia não tenho qualquer interesse em fazer provas de 160 km, a não ser a Comrades", garante
A Western States, na Califórnia, estava a correr dentro do previsto. Mas a partir dos 80 km, começaram os problemas: dores muito fortes nas pernas obrigaram Tiago a socorrer-se da 'lebre' que o ajudava [nos últimos 60 km os corredores têm direito a uma pessoa que os acompanha para dar apoio]. Entenderam que o melhor era fazer o resto da prova a caminhar.
"Era uma tortura. Para quem está habituado a correr e a ter um certo ritmo, caminhar, ... os km nunca mais passavam. Cheguei pouco antes de meia hora do tempo limite, quando fui a casa de banho urinei sangue. Um dos problemas foi que tomei analgésico para tentar acalmar as dores, que eram muitas e isso só piorou as coisas", recorda.
De lá para cá, Tiago Dionísio nunca fez corridas desta natureza, pelo que no currículo apenas constam duas provas de 160 km: a Western States, na Califórnia e uma outra da mesma distância feita na África do Sul. Das 700 maratonas realizadas, cerca de 200 são ultras e as outras são provas de 42,4 km.
Da falta de velocidade para o futebol ao 'Senhor Comrades'
Depois de passar pelo Colégio Militar em Lisboa, onde estava habituado ao exercício físico, foi nos Estados Unidos, para onde emigrou, que Tiago se iniciou nas corridas, ‘empurrado’ pelo seu treinador de… futebol.
"Fui para os EUA com 13 anos, lá jogava futebol, tinha boa técnica, mas não era propriamente muito rápido. Então o meu treinador aconselhou-me a praticar atletismo para ganhar mais velocidade. Com 18 anos regressei a Portugal e, para jogar futebol, é sempre mais pessoas, é sempre mais difícil. Comecei a correr perto da casa dos meus pais na Avenida de Roma, a fazer 20 minutos, meia hora, tomei-lhe o gosto", sublinha.
Nos primeiros anos, por motivos económicos, Tiago Dionísio só poderia fazer a maratona de Lisboa, prova que faz, de forma ininterrupta, desde 1994 [em 2006 optou pela meia em vez da maratona]. Terminada a formação académica no ramo da economia, Tiago ingressou no mercado de trabalho. O seu primeiro salário foi utilizado para fazer a maratona de Londres, um sonho já antigo.
Mas é na Maratona de Comrades, conhecida como a 'Ultimate Human Race', que Tiago se sente em casa. Esta prova, entre as cidades sul-africanas de Pietermartizburg e Durban, foi fundada em 1921 por Vic Clapham, um ex-combatente da Primeira Guerra Mundial que fez a prova em homenagem aos soldados mortos nos conflitos.
"A prova que fiz mais vezes, a minha preferida, aquela que mais me dá prazer, é a Comrades na África do Sul. Não há outra no mundo com 20 mil pessoas a correrem 90 km. O ambiente é extraordinário, várias culturas, é uma experiência de vida. Uma prova tão longa, com tantos altos e baixos, subidas e descidas, é como na vida que temos momentos bons e outros menos bons, e temos que superar as dificuldades. O desafio da prova é tremendo, chegar ao fim ao cabo de 12 horas é uma vitória por si só", relata.
O objetivo, embora que não assumido de forma tão vincada, passa por ser o estrangeiro que mais vezes participou nesta que é a mais famosa maratona do mundo. Apesar de não ter números, Tiago Dionísio sabe que há um inglês que já fez a prova por 26 vezes. Longe ficarão os recordes de dois sul-africanos que terminam esta ultramaratona há 47 anos seguidos.
Tiago já faz parte da 'Grenn Number Club', número atribuído aos atletas que completam a dezena de Comrades. É embaixador da mítica prova sul-africana em Portugal, mas também no estrangeiro, onde faz questão de promover a maratona mais famosa do mundo.
Gosto desse silêncio, desta corrida a sós, onde só se ouve os nossos passos e a nossa respiração
No país de Nelson Mandela há outra mítica prova que apaixona Tiago Dionísio: a ultramaratona 'Two Oceans'. O objetivo passa por entrar para o 'Blue Number Club', quando completar esta ultra pela décima vez.
Levantar, treinar, trabalhar, treinar, dormir. Repete
Para Tiago, "correr é fácil, difícil é organizar a vida pessoal e profissional de modo a ter tempo para as provas". Por isso, abdica de algumas horas de sono e outros privilégios para se dedicar ao atletismo. Acorda todos os dias às 05h30 da manhã, faz hora e meia de corrida, antes de começar o dia de trabalho, das 09h às 19h00. Antes do jantar, volta a fazer meia hora numa bicicleta estática em casa. "Às vezes vou ao ginásio aos fins-de-semana fazer exercícios complementares da corrida como elíptica e remo", frisa.
"Quando treino de manhã, muitas vezes aproveito para, no silêncio e pelo facto de correr sozinho, de tentar preparar o meu dia-a-dia, aliviar o stress, meditar. É fundamental, então agora quando corro de manhã ainda é de noite, gosto desse silêncio, desta corrida a sós, onde só se ouve os nossos passos e a nossa respiração", completa. São nesses momentos que arranja ideias para os relatórios que tem de fazer.
Entre maratonas e ultramaratonas, são quase 34 mil km a correr nos últimos 25 anos, sem contar com as muitas provas de mini e meia maratonas já realizadas e que não entram nesta contabilidade. O gosto pelas corridas é conjugado com outra paixão: viajar. Sempre que pode, Tiago dá um salto até Inglaterra aos fins-de-semana e aproveita para fazer duas ou três maratonas. Sai de Lisboa ao final da tarde de sexta-feira, após um dia de trabalho, apanha o avião, faz uma maratona na manhã de sábado, almoça, faz outro a tarde. Descansa e, na manhã de domingo, volta a fazer outra, antes de regressar à Lisboa para, na segunda-feira, voltar a rotina do escritório. Quase 130 km a correr em dois dias.
Tiago Dionísio é um 'lobo solitário'. Nunca precisou de treinador. O seu corpo e a sua mente são os barómetros do seu limite. Além de treinar todos os dias, nunca faz provas a pensar no tempo. No início, começou por ler muito sobre atletismo. A experiência acumulada permite-lhe saber o que fazer e não fazer em todos os momentos. O facto de não ter lesões também ajuda. Em 25 anos, nunca desistiu de uma prova.
"O mais importante para mim quando corro é ver o relógio para controlar as pulsações cardíacas, tentar manter um ritmo constante e pulsações baixas. O esforço não é muito grande o que me ajuda a recuperar para a maratona do dia seguinte. Consigo fazer maratonas de três horas e meia a um ritmo de 135 pulsações por minuto, o que para minha idade é bastante bom. No dia seguinte estou bem. Não faço as provas a um ritmo elevado, é um ritmo de treino, tento dormir um bocadinho mais", sublinha, ele que tem como melhor tempo na maratona, duas horas e 42 minutos.
Correr até aos 70 anos: especialistas da Clínica do Dragão aconselham Tiago Dionísio a ter acompanhamento médico
Tiago Dionísio nunca teve treinador e dispensa fisioterapeuta. O atleta de 45 anos continua a confiar nos sinais do seu corpo e na força da sua mente. Mas o desgaste em provas longas de atletismo podem ter efeitos no corpo no longo prazo. O volume, intensidade, densidade e complexidade de algumas provas, poderão causar lesões musculares. Para já, aos 45 anos, Tiago Dionísio ainda tem capacidade para fazer duas maratonas num dia, mesmo que faça tempos na casa das três horas e meia. Com tanta carga física, a componente mental é muito importante, com nos explica Rogério Pereira, Fisioterapeuta e diretor de educação e desenvolvimento na Clínica do Dragão - Espregueira-Mendes Sports Centre, FIFA Medical Centre of Excellence e ainda João Espregueira-Mendes, Presidente do Conselho de Administração da Clínica do Dragão e presidente da Sociedade Europeia de Traumatologia Desportiva, Cirurgia do Joelho e Artroscopia.
"Qualidades e competências psicológicas adequadas são desde logo requisitos. Funções cognitivas como a inteligência, perceção e processos emocionais como o estado de autoconfiança e prazer, serão determinantes para a resiliência e índices motivacionais que permitem alcançar os objetivos propostos, apesar da perceção de esforço e, por ventura, desconforto físico ou dor", explica estes dois profissionais da saúde.
As fadigas física e mental e a desidratação são algumas das consequências para quem faz provas longas. O descanso, o treino, a hidratação e a alimentação têm um papel muito importante para os atletas de longa distância. Até agora, Tiago Dionísio tem conseguido os seus objetivos sem recorrer a especialistas de saúde, mas tanto João Espregueira-Mendes como Rogério Pereira, especialistas em fisioterapia e ortopedia, aconselham o maratonista a procurar acompanhamento médico sempre que possível, de forma a prevenir lesões futuras, caso queira continuar a fazer maratonas até aos 70 anos.
"É determinante o acompanhamento médico para monitorizar regularmente o estado de saúde dos atletas, assim como, o acompanhamento por fisioterapeutas para prevenção, recuperação e tratamento de lesões. Há que lembrar que a prevenção e recuperação de lesões são importantes para evitar condições musculosqueléticas que podem levar à incapacidade de suportar carga e impacto, dos quilómetros de provas longas e complexas. Hoje em dia, os fisioterapeutas e os médicos conhecem bem muitos fatores de risco e metodologias de avaliação dos atletas que permitem prevenir e/ou intervir atempada e eficazmente quando surgem proxis e/ou alterações do estado de saúde do atleta que podem levar à redução da performance, lesão ou doença. Também os profissionais da educação física, das ciências do desporto, da fisiologia do treino e os próprios atletas devem ser envolvidos no planeamento, organização e controlo do treino", explicam os especialistas da Clínica Dragão, contactos pelo SAPO Desporto. Aliás este é um assunto que vai estar em discussão na VI edição das Jornadas Saúde Atlântica Medicina Desportiva e Boas Práticas, a realizar nos dias 15 e 16 de novembro no Porto, onde especialistas de cardiologia, medicina desportiva, medicina geral e familiar, ortopedia e traumatologia, fisiologia do exercício e atletas vão discutir a importância da avaliação médico-desportiva e da monitorização regular do estado de saúde para os atletas de fundo.
Londres, amor à primeira corrida
A primeira participação na Maratona de Londres em 1998, viria a mudar a sua forma de olhar para as provas. A componente solidária da prova londrina, "o maior evento para angariação de fundos para solidariedade" fez com que Tiago e os amigos do Clube de Stress olhassem para as corridas de outra forma e passassem a replicar o modelo londrino na Meia Maratona de Lisboa.
"Eu e os meus amigos do Clube do Stress chegamos a Feira da Maratona para recolher os dorsais e estavam à entrada a fazer um inquérito a perguntar a que instituições de caridade é que íamos ajudar com a nossa corrida. Não sabíamos o que era, perguntaram-nos, 'vocês correm por quem?', e nós respondemos, 'por nós próprios'. E a pessoa disse. 'Então vocês são masoquistas'. Isto porque ali toda a gente corria por uma causa para angaria dinheiro para ajudar instituições de caridade. E isso marcou-nos muito, a ideia de correr por uma causa, de ajudar o próximo", recorda, de forma entusiasta.
Para quem vai tantas vezes ao estrangeiro, histórias não lhe faltam. Em 1999, o fuso horário entre Espanha e Portugal ia tramando Tiago e os amigos, na Maratona de Sevilha. "Quando chegamos para a partida, pensávamos que íamos com uma hora de antecedência, para prepararmo-nos e estarmos mais à vontade. Mas quando chegamos, a partida tinha acabado de ser dada, começamos atrás para tentar apanhar o resto do pessoal".
Outra história engraçada aconteceu na África do Sul, onde a solidariedade deixou Tiago Dionísio de rastos. "Houve dois anos em que fiz um evento de bicicleta para uma instituição de caridade, em que fui de Cape Town até Durban onde começa a Comrades, que são 1700 km, e nós fizemos isso em dez dias. No 11.º dia fizemos a Camrades, de 90 km. E eu, que não propriamente ciclista, da primeira vez, foi das coisas mais difíceis que alguma vez fiz na vida. Estar tantas horas em cima de uma bicicleta não é propriamente uma coisa muito confortável. No segundo ano já foi um bocadinho melhor", recorda.
Longe das redes sociais, perto do coração
O trabalho como analista económico permite a Tiago Dionísio organizar-se de forma a ter dinheiro suficiente para fazer as provas que quer e pagar as contas no final do mês. Falar do dinheiro que gasta no atletismo não é algo com que se sinta confortável. Mas sublinha que, para fazer o que gosta, tem de poupar e fazer sacrifícios.
"Tenho a sorte de, na maior parte das minhas viagens, ficar em casa de amigos e isso ajuda a reduzir muito os custos já que não preciso de hotéis. Marco as minhas viagens com quase um ano de antecedência, já tenho tudo marcado até setembro do próximo ano, por exemplo e tenho sempre os preços mais baixos nas viagens. Em Portugal, junto-me sempre com amigos e vamos num carro de alguém, dividimos as despesas para ficar mais barato", explica.
Anunciei nas redes sociais que tinha feito as 700 maratonas porque tinha prometido a um amigo meu que estava com cancro no início do ano que ia fazer as 700 e que gostaria que ele estivesse presente na altura. Infelizmente ele morreu há um mês
A Comrades e a Two Oceans na África do Sul são as duas provas que não podem falhar no seu calendário internacional. As outras, depende se há dinheiro ou não. Apesar de auferir um salário acima da média nacional, há constrangimentos no planeamento anual.
"Este ano adorava fazer a maratona de Nova Iorque, a maratona de Chicago, mas não posso, tendo em conta o número de provas que ando a fazer. São 700 euros de viagens, 260 euros de inscrição, depois alojamento, refeições, que é tudo muito caro" em Nova Iorque.
As limitações financeiras podiam ser atenuadas com um patrocinador. Há uns anos, Tiago tentou obter apoios junto de uma marca de equipamentos desportivos, mas o assunto não foi adiante. Mas também esse não é o tipo de vida que quer. Um patrocinador podia implicar uma exposição que o homem com mais maratonas em Portugal não deseja.
Numa era das redes sociais, só recentemente, Tiago que procura "ser uma pessoa o mais discreto possível", criou uma conta no Facebook para cumprir uma promessa.
"Anunciei nas redes sociais que tinha feito as 700 maratonas porque tinha prometido a um amigo meu que estava com cancro no início do ano que ia fazer as 700 e que gostaria que ele estivesse presente na altura. Infelizmente ele morreu há um mês, então dediquei-lhe isso num posto que publiquei nas redes sociais", explica este homem pouco dada à exposição mediática.
Tiago Dionísio não é pessoa de planear o futuro das corridas. Para ele, é uma prova de cada vez. Mas os números não enganam. Nos últimos 25 anos, fez 700 maratonas, a uma média de uma maratona a cada 13 dias. Se continuar com este ritmo, daqui a dez anos terá chegado às mil. E como quer correr até aos 70 anos, não será difícil ultrapassar as mil maratonas. Sempre uma de cada vez. Com tempo. Enquanto o corpo permitir.
"Uma pessoa não pode olhar muito para o futuro. Quando fiz as 500 há uns anos, as pessoas diziam, 'ah, facilmente vais chegar às mil'. Só penso no dia de amanhã. Não vou dizer que este número [mil maratonas] não está nos meus planos, mas a minha prioridade são as provas que tenho este fim-de-semana. Uma pessoa não pode pensar muito a frente no tempo. Olho cada ano de cada vez".
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