"A Universidade de Cambridge desafia a Universidade de Oxford para uma corrida de remo em ou perto de Londres, cada uma num barco de oito tripulantes, durante as próximas férias de Páscoa". Foi assim que se iniciou um dos principais capítulos na histórica rivalidade entre as Universidades britânicas de Oxford e Cambridge.

Separadas por cerca de 120 quilómetros, as duas prestigiadas instituições carregam no seu riquíssimo legado uma longa história de competição nos mais diferentes cenários (político, académico, social). Todavia, nenhum outro evento se tornou tão paradigmático desta rivalidade do que a corrida anual de remo, apelidada simplesmente de 'The Boat Race'.

No próximo dia 30 de março, cerca de 250 mil ao vivo, e mais de 100 milhões por todo o mundo, irão assistir a mais um episódio desta quase bicentenária competição, considerada por muitos como o ponto alto das provas desportivas amadoras no nosso planeta.

A origem

O ponto de partida desta corrida data de meados do século XIX e tem como figuras principais Charles Wordsworth, aluno na universidade de Oxford, e o seu amigo Charles Merivale, da universidade de Cambridge. De acordo com as memórias de Wordsworth, o desenvolvimento do gosto pelo remo levou a um encontro com Merivale e os seus colegas de Cambridge.

"Comecei a dedicar-me ao remo e frequentemente estava no rio [em Oxford] à noite, a remar no lugar de proa num barco amador de seis remadores com uma tripulação de amigos de Christ Church. A prática adquirida levou a que me destacasse como remador e, quando estava em Cambridge nas férias de Natal e Páscoa seguintes, permitiu-me ocupar um lugar no barco do clube de remo de Cambridge, que na época estava a montante do rio, a convite do meu antigo colega de Harrow, Charles Merivale, agora diretor do Colégido de Ely, e outros membros daquela equipa com quem eu tinha me relacionado", escreve Wordsworth.

A boa relação do aluno de Oxford, não só com Merivale, mas com a restante tripulação do barco de Cambridge, assim como um prévio jogo de cricket entre as duas universidades levou, segundo Wordsworth, à marcação de uma corrida entre equipas das duas instituições.

Charles Merivale (esquerda) e Charles Wordsworth (direita)
Charles Merivale (esquerda) e Charles Wordsworth (direita) Charles Merivale (esquerda) e Charles Wordsworth (direita) créditos: lbhflibraries.wordpress.com

"Encorajados pelo exemplo do jogo de cricket entre as duas universidades, que ocorreu em 1827, falámos sobre a possibilidade de organizar uma competição semelhante em remo; e o resultado foi  uma correspondência entre Snow e Staniforth, Capitão do barco de Christ Church, que tinham sido colegas de escola e camaradas de remo em Eton, o que acabou por culminar na marcação de um dia para o encontro proposto".

Assim, a 10 de fevereiro de 1829, a Universidade de Cambridge enviou uma carta à Universidade de Oxford, desafiando-a para uma corrida de remo perto de Londres. A corrida seria feita em embarcações de oito lugares e durante as férias da Páscoa.

Naturalmente, o desafio foi aceite e a primeira corrida teve lugar a 10 de junho de 1829, uma quarta-feira, na região de Henley-on-Thames, a cerca de uma hora de Londres, entre duas embarcações de nove homens cada (oito remadores e um timoneiro). A prova decorreu entre Hambleden Lock e Henley Bridge, numa distância de aproximadamente três quilómetros e seiscentos metros, e da qual, segundo relatos da altura, Oxford saiu vencedora "com facilidade".
O percurso da primeira corrida
O percurso da primeira corrida O percurso da primeira corrida créditos: thames.me.uk

A corrida feminina

Foi preciso esperar praticamente um século até que a competição de remo entre Oxford e Cambridge incluísse a vertente feminina. Foi em 1927 que se deu a primeira prova, pondo frente a frente clube naval de Oxford e o clube naval da universidade de Newnham, em Cambridge. Esta prova era um pouco diferente da vertente masculina; as duas embarcações não podiam estar na água ao mesmo tempo, uma vez que o principal critério para a vitória baseava-se em condescendentes padrões de estilo e técnica, e não na simples velocidade e capacidade física das tripulações. Independentemente da dualidade de critérios, em comparação com a vertente masculina, a primeira vitória acabou por sorrir a Oxford, tal como ocorrera na prova inaugural dos homens.

Para que esta prova tivesse lugar, foram precisas intensas negociações entre as universidades e peritos médicos da altura. Margaret Teify Rhys, timoneira da primeira equipa de Cambridge, descreve-as como "absolutamente hediondas, mas muito engraçadas, em retrospetiva".

"Estive em contacto com um médico da universidade, que fora consultado pelos diretores dos colégios de Cambridge e Oxford. A principal preocupação destes era se esta prova seria prejudicial ao nosso interior. Foi tudo feito no maior secretismo. Se íamos competir, teríamos de o fazer em privado; não havia direito a publicidade da prova e não podíamos estar na água ao mesmo tempo", disse Margaret Teify Rhys em entrevista à BBC.
As primeiras equipas femininas de Cambridge (em cima) e Oxford (em baixo)
As primeiras equipas femininas de Cambridge (em cima) e Oxford (em baixo) As primeiras equipas femininas de Cambridge (em cima) e Oxford (em baixo) créditos: The Times

Relativamente ao tipo de prova protagonizada pelas mulheres, Teify Rhys descreve, numa simples história, como os homens viam a corrida feminina.

"Estávamos as oito já dentro do barco, na água, e os nossos treinadores, em toda a sua sabedoria, decidiram virar tudo ao contrário. Por isso, quando achávamos que estávamos a remar para a prova de estilo, de forma muito cautelosa, estávamos de facto a ser avaliadas na nossa velocidade e vice-versa. Esta história é paradigmática da forma como se olhava para a mulher na altura. Fizeram isto porque achavam que ficaríamos histéricas, perturbadas e e em verdadeiro estado de choque se nos dissessem que ia haver uma mudança de planos. Por isso não nos disseram e, naturalmente, perdemos a corrida", disse a timoneira de Cambridge.

A partir de 1936 a prova feminina passou finalmente a correr-se lado a lado, e em 1964 tornou-se igualmente um evento anual, alternando entre o rio Isis (denominação de Oxford para o Tamisa), em Oxford, e o rio Cam ,em Cambridge. Só em 1977 é que a corrida passou também para Henley-on-Thames, tendo lá ficado até 2014. No ano seguinte, a prova feminina passou a ser no mesmo dia e no mesmo local da prova masculina.

As universidades

A Universidade de Oxford, situada no condado de Oxfordshire, no sudeste de Inglaterra, é considerada a segunda universidade mais antiga do mundo em funcionamento permanente. Com efeito, existem relatos que apontam a prática de ensino nesta instituição no século XII, tendo beneficiado do facto da Universidade de Paris ter barrado a entrada a alunos ingleses em 1167. A universidade arrancou com os cursos de teologia, medicina, direito e artes liberais, tendo aumentando o seu leque curricular ao longo dos anos.

Ao longo da sua longa e rica história, Oxford foi 'berço' de figuras ilustres como os autores Oscar Wilde, Lewis Carroll ou J.R.R. Tolkien, o explorador Sir Walter Raleigh, e ainda 13 chefes de governo britânicos, de onde se destaca Margaret Thatcher.

O clube naval da universidade de Oxford foi criado em 1829 e, de acordo com o mesmo, com o propósito único de vencer a corrida contra os rivais de Cambridge. Deste clube saíram vários campeões olímpicos como Matthew Pinsent, Andy Triggs-Hodge, Peter Reed, Constantine Louloudis, todos ingleses, e ainda os gémeos Mark e Mike Evans, do Canadá.

Campeões olímpicos de Oxford
Campeões olímpicos de Oxford
"Oxford ainda permanece como o mais bonito de Inglaterra, e em nenhum outro lugar a vida e a arte são tão esquisitamente misturadas" (Oscar Wilde)"

Em 1209 um grupo de académicos reúne-se num antigo entreposto comercial romano de Cambridge, tendo por objetivo uma sessão de estudos. Este evento é classificado, pela própria universidade, como o registo mais antigo desta instituição.

Ao longo dos seus mais de oito séculos de história, a universidade de Cambridge foi casa das mais proeminentes figuras e feitos da nossa história coletiva. Em 1516, Erasmo de Roterdão, antigo aluno da instituição, desenvolve não só a tradução do Novo Testamento do grego para o latim, como também a base académica para uma nova escolástica.

Em 1687 'Sir' Isaac Newton, também ele aluno da universidade, publica 'Principia Mathematica', estabelecendo desta forma os princípios fundamentais da física moderna.

Na lista de outros famosos alunos estão nomes como Charles Darwin, Stephen Hawking, Alan Turing, John Cleese, 14 primeiros-ministros, e ainda o atual Rei de Inglaterra, Carlos III.

O clube naval da universidade de Cambridge foi criado a 9 de dezembro de 1828 por meio de uma reunião dos seus membros, que levaria à famosa carta a desafiar Oxford para a primeira corrida. De entre os vários campeões olímpicos (15 no total), destacam-se os nomes de Richard Budgett, Boyce Budd, Tom James, Anna Watkins ou Tom Ransley.

Campeões olímpicos de Cambridge
Campeões olímpicos de Cambridge Campeões olímpicos de Cambridge
"Eu fui para lá para remar. É realmente para isso que fui, e antropologia era a disciplina mais conveniente para estudar enquanto passava oito horas por dia no rio." (Hugh Laurie, ator e aluno de Cambridge)

A corrida

A corrida tem uma extensão de 6,8 quilómetros ao longo do rio Tamisa, em período de maré-cheia) entre Putney e Mortlake (por três vezes foi corrida no sentido inverso), no sudoeste de Londres, num percurso que os atletas levam, em média, cerca de vinte minutos a percorrer. Antes do início da prova realiza-se uma 'moeda ao ar', cujo vencedor decidirá de que lado, ou estação do rio iniciarão a corrida. Estas estações são conhecidas como Middlesex e Surrey, apresentando ambas vantagens e desvantagens devido às curvas do rio.

As embarcações têm pouco menos de 19 metros de comprimento e cerca de 96 quilos de peso. As tripulações são compostas por oito remadores e um timoneiro ('cockswain'), responsável não só pela condução da embarcação, como também pelo ritmo aplicado pelos remadores.

A prova inicia-se a jusante da ponte de Putney, passando pelas pontes de Hammersmith e Barnes e terminando antes da ponte de Chiswick. Estatísticas mostram que a ponte de Hammersmith, sensivelmente a meio do percurso, é uma importante referência para determinar o vencedor, uma vez que 80 por cento das embarcações que atravessaram esta ponte na liderança acabaram por vencer a prova.

Percurso da corrida
Percurso da corrida Percurso da corrida (6,8 quilómetros) créditos: putneysw15.com

Ao longo deste percurso, as embarcações passam por locais emblemáticos como Craven Cottage, estádio do Fulham, e um dos primeiros recintos de futebol do país, 'Fuller´s Brewery', a mais antiga produtora de cerveja em Inglaterra, e ainda o 'Harrods Depository', outrora local de armazenamento de produtos vendidos nos famosos armazéns 'Harrods' em Londres, hoje convertido num condomínio de luxo.

Olhando para o o histórico total das provas, Oxford lidera nesta altura em termos de vitórias com 86, contra 81 de Cambridge, nas 168 corridas realizadas desde meados do século XIX, havendo ainda um polémico empate em 1877. Nessa histórica edição, um dos remadores de Oxford (D. J. Cowles), viu uma das suas 'pás' do remo partir numa altura em que a sua equipa estava em clara vantagem à entrada para os últimos metros da corrida.

Apesar disso, e segundo relatos da altura, Oxford conseguiu manter-se em prova e, de acordo com o árbitro da altura, Joseph William Chitty, as duas embarcações cruzaram a meta exatamente na mesma altura, não sendo assim atribuída vitória. Este episódio pôs fim à posição de árbitro, introduzindo, em alternativa, postes de meta.

Postes em ambas as margens que marcam a linha de meta
Postes em ambas as margens que marcam a linha de meta Postes em ambas as margens que marcam a linha de meta. A sigla UBR significa 'University Boat Race' créditos: theboatraces.co.uk

Desde que se tornou um evento anual, a corrida não se realizou em três períodos: entre 1915 e 1919, devido à Primeira Guerra Mundial, entre 1940 e 1945 devido à Segunda Guerra Mundial e, mais recentemente, em 2020 devido à pandemia.

No que aos melhores tempos diz respeito, a Universidade de Cambridge é detentora dos recordes, quer na prova masculina (16 minutos e 19 segundos em 1998), quer na feminina (18 minutos e 33 segundos em 2022).

"Em 1980 eu estava na embarcação, o resultado foi uma derrota de por uma distância de cerca de metro e meio, algo que levarei para o meu túmulo... foi uma derrota muito amarga." (Hugh Laurie)

Episódios insólitos

Afundamentos

Ao longo de 168 anos de história, muitos são os episódios que transformaram memoráveis algumas das edições da prova, por boas e más razões. Em cinco ocasiões aconteceu uma das embarcações afundar no rio, não concluindo a prova; a primeira vez que tal sucedeu foi em 1859 com a equipa de Cambridge. Os 'azuis-escuros' de Oxford passariam pela mesma situação na corrida de 1925 e 1951.

O mais recente caso de afundamento deu-se em 1978 com a equipa de Cambridge. Perante um céu nublado e um vento forte, o que contribuiu para muita agitação marítima, as implacáveis ondas do Tamisa acabaram por encher a embarcação dos 'Cams', numa altura em que estariam perto de ultrapassar Oxford.

"Tenho dois sentimentos relativamente a essa corrida: o primeiro de uma resignada frustração, já que a única coisa de que toda a gente se lembra é do afundamento; o outro forte sentimento que tenho é o de contas a ajustar. Quando afundámos nós estávamos prestes a ultrapassar Oxford; afundámos porque as condições eram incrivelmente duras. Oxford tinha afundado durante os treinos na semana antes da corrida, de tal forma que puseram proteções na embarcação para prevenir que água entrasse ('splashboards'). Mesmo com água a entrar, tentámos continuar, mesmo sabendo que não havia esperança", relata Mark Horton, presidente da Universidade de Cambridge na altura.

Para além de provas onde uma das equipas afundou, houve ainda uma ocasião em que ambas as tripulações sofreram o mesmo destino. Em 1912, e debaixo de condições meteorológicas bastante adversas, a equipa de Oxford passava por grandes dificuldades ao chegar à ponte de Hammersmith, tentando, sem sucesso, manter a sua embarcação à tona.

Segundo relatos da época, nesta altura Cambridge também passava pela mesma situação, acabando por afundar perto de 'Harrods Depository'. A corrida foi retomada no dia seguinte, tendo sido ganha por Oxford.

Ambas as equipas afundaram em 1912
Ambas as equipas afundaram em 1912 Ambas as equipas afundaram em 1912 créditos: Daily Mirror

O motim

Em 1987 o norte-americano Chris Clark, de Oxford, ainda com a pesada derrota no ano anterior em mente, resolveu recrutar três remadores compatriotas, também eles alunos daquela universidade, de grande qualidade: Dan Lyons, Chris Huntington, Chris Penny, e ainda o timoneiro Jonathan Fish.

O problema começou cedo, devido a discordâncias entre a tripulação e o treinador Dan Topolski (vencedor da corrida em 1967 e vencido em 1968) relativamente aos métodos de treino. Perante esta situação, Topolski acabou por ceder e, ao contrário do que estava previsto, colocou mais foco no trabalho realizado dentro de água.

A situação ganhou outra dimensão quando Chris Clark e Donald Macdonald, membro da tripulação e presidente do Clube Naval da universidade, fizeram o teste de aptidão física, no qual Clark bateu Macdonald. Aí, o contingente norte-americano revelou que não participaria caso Macdonald fizesse parte da equipa.

Contudo Donald Macdonald, enquanto presidente do Clube Naval, tinha poder absoluto relativamente à escolha da tripulação. Tudo acabou por descambar em definitivo quando foi anunciado que Clark iria remar a estibordo, o seu lado mais fraco, e Macdonald a bombordo, e que Tony Ward não faria parte da equipa.

Os cinco norte-americanos seriam substituídos por elementos da equipa de reserva, os 'Isis', que levaram Oxford à vitória nesse ano.

"De um lado tínhamos cinco remadores norte-americanos de classe mundial. Eles estavam de tal forma contra o regime de treino e de seleção da tripulação que queriam tomar conta de tudo. Do outro lado estavam, essencialmente, os bons da fita. Eu (Donald Macdonald), Daniel Topolski, o treinador, e um conjunto de bons remadores britânicos. Convocámos uma reunião com todos os capitães da equipa e foi-nos dado um unânime voto de confiança para prosseguir com o método de treino e seleção estabelecido, e os americanos decidiram não participar, e por isso avançamos com os restantes", disse Donald Macdonald sobre o sucedido.

Manifestante interrompe a corrida

Um dos episódios mais bizarros ocorreu em 2012, na 158ª corrida entre as duas universidades. Com cerca de dez minutos de corrida, um manifestante, de seu nome Trenton Oldfield, interrompeu a corrida ao nadar em frente à embarcação de Oxford, sendo quase atingido pelos remos.

De acordo com a imprensa inglesa da altura, o protesto de Oldfield estaria relacionado com o alegado elitismo que a corrida entre Oxford e Cambridge simbolizava.

"Perguntei-lhe quem era e o que estava a fazer, mas ele não respondeu. Disse apenas que sabia o que estava a fazer e pronto", disse David Searle, líder da organização da corrida.

Contudo as peripécias da corrida de 2012 não se ficaram por aí. Um dos remos da equipa de Oxford partiu-se aquando do reinício da prova, e Alex Woods, também de Oxford, colapsou junto da popa da embarcação já bem perto do fim, tendo sido socorrido pelos paramédicos e transportado para o hospital

'The Boat Race' - 2012

Em 1829, certamente Charles Wordsworth e Charles Merivale estariam longe de imaginar que um simples e cordial desafio lançado entre amigos para uma corrida desse lugar a uma das mais apaixonantes e mediáticas provas do desporto britânico atual.

A rivalidade entre Oxford e Cambridge não só ultrapassa os limites da razão, como é da natureza das rivalidades, como as margens do Tamisa, criando ondas de entusiasmo e paixão, enchendo os corações de todos aqueles cujo passado, presente ou futuro estejam ligados a qualquer uma destas históricas instituições.