Meias de cores diferentes, cada um com o seu calção, uma camisola arranjada às pressas e muita vontade de se divertirem. Os miúdos da Amadora entraram em campo no torneio Euro Jovem 2014 - Complexo Desportivo Municipal do Monte da Galega -, juntamente com muitos outros de vários locais de Lisboa e cedo conquistaram os presentes, com o seu futebol de rua, os dribles desconcertantes, as arrancadas, aquela ginga típica de quem passa cinco a seis horas por dia a jogar na rua com os amigos. Estava dado o mote para o nascimento da Associação Desportiva da Amadora.

Aqui, há espaço para gordos e magros, altos e baixos, meninos e meninas, pobres e menos pobres, talentosos ou com pouco talento. Mais que o futebol, está a inclusão, a cultura de valores como o companheirismo, a amizade, o cumprir regras, a igualdade. Mas também a introdução da prática do desporto de forma regular e saudável para potenciar o bem-estar físico, educacional e o equilíbrio emocional nos jovens atletas, preparando-os para hábitos e estilos de vida saudáveis.

A ideia original é de Tony Correia e de Ademar Nascimento, mais conhecido no bairro por Maiuca.

Aquele torneio em 2014 abriu os olhos a estes dois técnicos e principais impulsionadores do projeto.

"Um dos meus antigos presidentes falou-me do torneio e perguntou se eu não queria participar com os do meu bairro já que iam lá estar miúdos de todos os sítios de Lisboa. Então, à pressa, eu e o Maiuca e outros começamos a bater à porta das casas, um a um, a perguntar quem tinha idade para o torneio. Assim que encontrávamos um miúdo, esse também dava o nome de um amigo, dizia onde morava e assim, de boca em boca, a passar a palavra, reunimos uma equipa. Chegámos ao campo, sem treino, sem tática, sem nada e disse-lhes: 'Vão lá para dentro e divirtam-se, fazem como costumam fazer no bairro", recorda Tony Correia.

Desde cedo que Tony e Maiuca perceberam que seria preciso algo mais para proporcionar às crianças uma prática desportiva consistente e estruturada no bairro. Em 2014, fundaram a Associação Desportiva da Amadora, um projeto desportivo, educativo, mas também de cariz social, com o objetivo de retirar as crianças da rua e proporcionar-lhes oportunidades de aquisição de ferramentas durante o crescimento e que os possam ajudar no futuro.

Com os pais a trabalharem, com horários desfasados e muitos a chegarem a casa já tarde, alguns miúdos dos bairros ficam aos cuidados de avós, familiares e muitos ficam até tarde na rua, a jogarem futebol e outras brincadeiras.

Foi aí que Tony, Maiuca e os restantes mentores do projeto perceberam que o pouco talento e a falta de dinheiro não podiam ser motivos para não se praticar futebol de forma regular e organizada.

O crescimento exponencial dos videojogos retirou muitas crianças da rua, onde passavam horas a jogarem futebol e a afinarem a técnica. Os que surgem hoje no futebol parecem todos formatados. Foi-se perdendo a criatividade, a imprevisibilidade, as 'malandrices' do jogo que se aprendem a jogar com os amigos na rua, sem regras, sem restrições. Na Amadora e noutros bairros, ainda é possível ver essa criatividade, ver esse futebol de rua que muitas vezes faz a diferença em campo. E é isso que também se quer potenciar.

Chegámos ao campo, sem treino, sem tática, sem nada e disse-lhes: 'Vão lá para dentro e divirtam-se, fazem como costumam fazer no bairro'

Aqui, jogam todos.

Mas nem sempre foi assim. No passado os mais talentosos acabavam por ser 'pescados' pelos clubes e os restantes viam as suas vivências desportivas limitadas unicamente no bairro, situação que Maiuca e Tony não querem ver repetida. Pelo menos com a coletividade filiada no bairro e dirigida a todas as crianças.

Recursos geridos com 'pinças'. Delta Cafés e Sporting entre os parceiros

Com os parcos recursos existentes, muitas vezes saídos até dos seus orçamentos familiares, os dois iniciaram os treinos no ringue do Bairro Social da Boba durante as férias de verão, e no início do ano letivo conseguiram alugar o pavilhão da Escola B2+3 Cardoso Lopes, por duas horas semanais.

Em 2016, com o crescimento exponencial do número crianças inscritos e o acreditar dos pais no projeto, Tony e Maiuca partiram para uma nova etapa: o inicio dos treinos no Complexo Municipal Desportivo do Monte da Galega - Amadora, num relvado sintético, num espaço de gestão municipal e de muita qualidade para a prática do futebol. Mas a mudança para o Monte da Galega também implicou um aumento nos encargos financeiros, já que 70 por cento das receitas mensais é para pagar a renda da infraestrutura.

Tony Correia gostaria de ver esse montante reduzido até pelo cariz social do projeto, mas, do lado da autarquia, respondem que "há um regulamento a cumprir e não há margem de manobra para uma exceção, teriam de fazê-lo para os demais".

No início, Tony e Maiuca tinham de andar de casa em casa a recolher os miúdos e lavá-los os treinos e jogos. Alguns pais, aqueles que conseguiam, acompanhavam os seus filhos. Depois, graças aos contactos estabelecidos pelos mentores do projeto, a Associação conseguiu, das mãos de um benfeitor, uma carrinha para o transporte das crianças.

Para sobreviver e continuar a sonhar, a ADAMD tem recebido apoios da Junta de Freguesia da Amadora, mas também com outras entidades como o Sporting Clube de Portugal, que dá aos mais habilidosos a possibilidade de realizarem treinos e testes no emblema de Alvalade. O Sporting, através da sua fundação, também ajuda com oferta de bilhetes para os jovens irem ver os jogos a Alvalade, entre outras ajudas.

Dantes outras entidades vinham ao bairro ver os miúdos mais habilidosos jogar, escolhiam os melhores e os outros ficavam abandonados, e não podíamos continuar a compactuar com essa realidade

Em 2019, a Delta Cafés ofereceu aos miúdos lanches para meia época mas que, gerido bem "deu para quase uma época", conta-nos Tony Teixeira. Um gesto que a Associação nunca esquece, de um parceiro que muito tem ajudado no crescimento deste projeto.

O resto das verbas provêm das mensalidades pagas pelos pais, aqueles que podem. A Associação estabeleceu uma tabela sobre quanto e como os pais podem contribuir, cujos valores máximos "são metade do que se paga noutros lados" diz-nos Tony. E quem não tem condições, não tem de se preocupar: jogam todos, participam, o direito à prática desportiva é para todos, independentemente das suas capacidades financeiras.

O nascimento da Associação Desportiva da Amadora acontece num momento crucial do futebol nacional, com a proliferação de várias escolas de futebol. Muitos clubes viraram-se para a formação, a 'galinha dos ovos de ouro' do futebol português, e isso veio acentuar ainda mais as diferenças entre quem pode pagar ou não. Quem tem condições, pode colocar os filhos nas várias escolas de futebol que proliferam por este país, quem não tem, resigna-se.

Os cerca de 30 euros que se pagam, em média, por dois treinos em outras escolas de futebol, estão longe de ser uma realidade na ADAMD.

Treino de uma das equipas da Associação Desportiva da Amadora
Treino de uma das equipas da Associação Desportiva da Amadora Tony Correia e os seus pupilos ADAMD

Por causa da pandemia, a Associação não tem sido tão rigorosa com os pais na questão da contribuição mensal, ciente também das dificuldades que muitos atravessam. Alguns pais perderam o emprego, outros foram atirados para o lay-off e viram reduzido o orçamento familiar mensal. A ADAMD, ciente da conjuntura e a complexidade da situação vivida à data pelas inúmeras famílias, vai facilitando e ajudando quem não pode pagar neste momento.

Mesmo que alguém não consiga contribuir, o seu filho não fica fora de jogo. Prevalecerá os valores e o propósito da criação da instituição: "Todos têm direito a prática desportiva e a desenvolver as suas competências motoras e sociais".

Essa máxima tem acompanhado sempre a ADAMD. Ao longo dos anos, Maiuca e Tony foram observando aquilo que era e continua a ser prática de muitos clubes  no recrutamento. Um recrutamento que acaba ele mesmo por criar desigualdades na prática desportiva.

Num concelho com forte influência africana e onde subsistem ainda muitas desigualdades, a falta de talento para o futebol não pode ser mais uma e travar a prática desportiva nos mais pequenos.

"Dantes outras entidades vinham ao bairro ver os miúdos mais habilidosos jogar, escolhiam os melhores e os outros ficavam abandonados, e não podíamos continuar a compactuar com essa realidade. Passou a ser extremamente difícil a prática desportiva neste país, foi também daí que surgiu a ideia da Associação", diz Toni Correia.

Uma versão que é corroborada por Maiuca, outro dos fundadores: "Temos miúdos de várias idades, de vários extratos sociais, de todas as culturas e feitios. Sabemos que há talento e que, guiados no rumo certo, podem ter um futuro nesta modalidade, mas também há outros onde vemos que não há muito talento, no entanto outros valores devem e são incutidos nos miúdos. Valores que poderão ajuda-los a serem bons pais, bons filhos, bons tios, no fundo ajuda-los também a ser bom cidadãos", sublinha.

Um projeto para lá do futebol

Tony Correia e Maiuca também tem aproveitado para sensibilizar os pais dos atletas (uns com  menos condições pela falta de tempo e outros por algum desleixo) sobre a importância do acompanhamento desportivo na estabilidade emocional da criança.

Sentimos que o projeto só estará consolidado se tivermos a integração dos pais nas atividades, eles são um elo de ligação muito importante

"Temos levado  a cabo uma espécie de 'reeducação mental' dos pais e isso faz todo o sentido. Temos tido reuniões periódicas, onde vamos bater na porta de cada um e falar da sua importância para o filho e para o projeto desportivo. Este desafio tem sido um sucesso ao ponto de recebermos elogios pela nossa forma de atuação por uma  causa que é de todos", revela Tony Correia.

"Anteriormente, íamos à casa dos miúdos para leva-los aos treinos e aproveitávamos para sensibilizar os pais da importância da sua presença no crescimento desportivo dos filhos. Então alguns pais começaram a faltar a essa responsabilidade, de levar os miúdos aos trenos e jogos. Mas depois percebemos que tínhamos de mudar isso e hoje são os próprios miúdos que fazem pressão para os pais irem ver os jogos e treinos", revela Maiuca.

Tony Correia tem 39 anos. É português, filho de cabo-verdianos emigrados há muitos anos em Portugal, tal como Maiuca. Cresceram, como muitos outros, a saber 'desenrascar' sozinhos, porque o principal objetivo dos pais na altura era haver sustento para os filhos em casa.

Os tempos mudaram e hoje, mais do que nunca, é muito crucial os portugueses, filhos de africanos, perceberam a importância do acompanhamento dos filhos na sua formação académica, pessoal e desportiva. Estarem sempre presentes, dar apoio, de modo a ajudá-los a crescer e a atingir os seus propósitos de vida. Mas também ajuda-los a adquirir competências para o exercício da cidadania.

Algumas das equipas da Associação Desportiva da Amadora durante um torneio
Algumas das equipas da Associação Desportiva da Amadora durante um torneio Maiuca e mais dois técnicos a acompanhar os miúdos durante um torneio créditos: ADAMD

O conceito de família está sempre presente: a família em casa, com pais, irmãos, avós, primos e tios, a família em campo, com os colegas, os treinadores e restante staff e a família escolar. Tudo deve andar interligado. E é por isso que a Associação Desportiva da Amadora faz questão de também acompanhar as crianças na escola, solicitando as notas referente aos períodos de avaliação.

"Para nós como instituição, é importante inteirarmo-nos do processo de aprendizagem e do comportamento escolar dos miúdos, tendo em conta que podemos apoiar e ajudar dentro das nossas possibilidades aqueles que possam ter dificuldades", sublinha  Tony.

"Sentimos que o projeto só estará consolidado se tivermos a integração dos pais nas atividades, eles são um elo de ligação muito importante. Os pais, os clubes e o desporto fazem parte do triângulo, que é aquilo que é a nossa visão. E temos conseguido porque a comunidade tem acreditado no projeto, que não é só nosso, mas de todos. Podemos dizer que eles têm estado sempre connosco, apoiando sempre, ajudando, revelando a sua disponibilidade sempre que possível, e quem dá tudo o que pode, nada se lhe pode exigir" conta Tony Correia.

Os 'grandes' à pesca dos melhores

O sucesso do projeto não se mede apenas pelo seu crescimento e pelo número de jogadores inscritos. O facto de já terem saídos muitos jovens da ADAMD para outros emblemas de referência em Lisboa atesta bem a qualidade do trabalho realizado.

"Quando existem instituições de referência com interesse de recrutar no nosso terreno, é sempre um motivo de orgulho para nós", garante Tony.

Frequentemente, os ditos 'grandes' de Lisboa convidam alguns miúdos a fazerem provas nas suas academias e em inúmeras ocasiões são os próprios treinadores, Tony Correia e 'Maiuca', que levam os miúdos, para que não percam a oportunidade de mostrar o seu talento. Isto porque nem sempre os pais, que já têm os seus horários definidos, têm as condições e a disponibilidade de se deslocarem com os filhos.

Existe uma maior proximidade com o Sporting Clube de Portugal, em virtude do protocolo com a ADAMD. Quanto ao emblema da Luz, há relações institucionais embora estes no passado não tenham tido o melhor comportamento no recrutamento de atletas.

"Por muito que as pequenas instituições não tenham a capacidade de reter ou dar o mesmo nível de formação e condições, quando se inicia o processo de recrutamento do 'pelezinho', deve-se respeitar qualquer instituição pois sem estas, os grandes clubes não conseguem fazer o seu trabalho de recrutamento", explica Toni ao recordar, com alguma mágoa, a postura do emblema 'encarnado' numa situação, que não quer ver repetir-se.

"Vieram aqui observar alguns miúdos, gostaram de um deles, falaram depois com os pais e levaram o miúdo e não se dignaram a falar connosco, não é a melhor forma de se trabalhar, de todo", frisa.

Para Maiuca e Tony, é indiferente o destino final dos miúdos. Desde que consigam dar o salto para onde possam ter melhores condições para desenvolver as suas competências e chegar mais longe.

Quando existem instituições de referência com interesse de recrutar no nosso terreno, é sempre um motivo de orgulho para nós

"Nós não temos qualquer preferência para onde eles vão. Sabemos que os que têm talento vão acabar eventualmente por dar o salto e ainda bem. É para isso que também trabalhamos. Nunca, em momento algum, vamos 'cortar as pernas aos miúdos'. Mas há formas de proceder", recorda Tony Correia.

Com o Sporting, a ADAMD ganha visibilidade e credibilidade mas não só. O protocolo com o Sporting tem ajudado a Associação em várias áreas como a metodologia de treino, o crescimento dos recursos humanos e a interação nas demais áreas ligadas à formação de jovens atletas.

Daqui pode sair o próximo Renato Sanches ou Gelson Martins

O Concelho da Amadora já viu nascer muitos craques do futebol, com fortes ligações à África. Renato Sanches, Rúben Semedo, Gelson Martins, são alguns dos internacionais portugueses filhos de cabo-verdianos que deram os primeiros pontapés na bola na Amadora. Dady, que jogou no Belenenses, foi internacional por Cabo Verde. Frequentemente, estes craques são convidados para os torneios da ADAMD, onde convivem com os miúdos e passam um pouco das suas vivências e fazem-nos acreditar que tudo é possível.

Toni Correia e Maiuca acreditam "que daqui poderá sair o próximo Renato Sanches, Gelson Martins, Rúben Semedo, Tiago Djaló, Ivanilson e entre muitos outros" futebolistas profissionais que começaram na Amadora.

Uma das treinadoras da ADAMD com uma das equipas
Uma das treinadoras da ADAMD com uma das equipas Uma das treinadoras da ADAMD com uma das equipas créditos: ADAMD

Para os mais pequenos, é sempre uma alegria enorme ver os ídolos de perto. Para os mentores do projeto, é importante que os mais novos tenham estas referências e percebam que, com disciplina, trabalho e entrega, podem chegar a patamares superiores, onde estão estas referências.

São também momentos onde se junta a comunidade à volta do futebol, mas também da culinária, momento de convívio entre as diversas famílias, momentos de estreitar relações.

Futuro: ter mais equipas e miúdos e participar em mais torneios de referência

A pandemia de COVID-19 veio travar o crescimento exponencial da Associação Desportiva da Amadora. Aos poucos, os miúdos vão voltando aos treinos, num ambiente controlado que implica uso de máscaras, álcool-gel, medição de temperatura à entrada e pouco contacto. Por isso é natural que haja alguma ansiedade para que tudo volte ao normal. Mas há outros projetos a serem lançados em breve.

"A breve prazo, quando isto tudo passar, queremos fazer um torneio sem as restrições atuais. Contamos lançar o nosso projeto educativo antes do início do próximo ano letivo. Também queremos angariar fundos para conseguir um local mais perto para este tal projeto educativo, um projeto de nutrição com pais e crianças, onde queremos trabalhar com os tutores sobre a importância da alimentação nas crianças e nos jovens atletas", explica Tony Correia.

O técnico quer também reunir condições para levar os miúdos a mais torneios fora da Grande Lisboa.

Para Maiuca, é importante voltar rapidamente aos números de inscritos antes do início da pandemia. De mais de 120 minutos, a ADAMD passou a ter pouco mais de 60 miúdos, desde o início da pandemia da COVID-19. Sem jogos e com tantas restrições de treinos, fica difícil convencer os pais, mas também os miúdos a voltarem aos treinos. O medo existe e é natural.

Num futuro próximo, não se espante se ouvir a nova coqueluche do Benfica ou do Sporting agradecer a ADAMD pela sua formação. Daqui sairão outros Dadys, Gelsons Martins, Rúbens Semedos, Renatos Sanches ou Manuel Fernandes.

O talento sempre existiu, mas agora é moldado pelas gentes do bairro.