Quando Benfica e Sporting pisarem o relvado da Luz, este sábado, para o grande dérbi de Lisboa, será o 303.º duelo entre as duas equipas, uma rivalidade que dura há mais de 110 anos – iniciada a 1 de dezembro de 1907. António Simões faz parte dessa mesma história, com 32 dérbis disputados (27 para o Campeonato e 5 para a Taça), tendo ainda somado dois golos diante dos ‘leões’. Estreou-se aos 18 anos, num empate a três bolas na Luz.
Em entrevista ao SAPO Desporto, o antigo extremo das ‘águias’ recordou alguns momentos desses embates, nomeadamente as dores de cabeça que causou a Hilário da Conceição, defesa da equipa de Alvalade que chegou a ser apontado como “o Eusébio dos laterais-esquerdos".
“Eu era muito jovem nestas andanças, assim como o Eusébio. Jogava do lado esquerdo e o Hilário, que estava do outro lado, ficava um bocadinho contrariado porque eu aparecia por lá muitas vezes e reclamava um pouco com o Eusébio em landim [dialeto indígena de Maputo]... Tinha alguma graça essa forma de nos manifestarmos”, recordou António Simões, salientando o espírito de amizade que existia entre os jogadores, mesmo estando em lados opostos da barricada. Esse é, aliás, o melhor que tirou de tantos dérbis disputados.
“No fundo jogávamos uns com os outros, muito mais do que uns contra os outros. Havia uma relação muito genuína, muito próxima, que hoje não é possível, dado o ambiente de crispação que existe. Cada um tinha a sua ambição de ganhar, mas a verdade é que todos nos divertíamos. Felizmente o Benfica ganhou mais vezes ao Sporting nessa altura, mas havia uma relação fantástica entre os jogadores. Hoje, infelizmente, joga-se contra o inimigo”, lamentou o antigo internacional português.
A propósito do companheirismo entre adversários fora das quatro linhas, António Simões recorda um episódio caricato que ocorreu na véspera de um Benfica-Sporting, no final da década de 60, em que um feliz acaso levou a que ‘encarnados’ e ‘leões’ acabassem a confraternizar... no cinema.
“Estávamos em estágio, na véspera de um Benfica-Sporting e para evitar que os jogadores dormissem durante a tarde, para depois à noite não terem dificuldades em dormir, o Béla Guttman e os outros treinadores mandavam-nos todos para o cinema. E nesse sábado à tarde, lembro-me perfeitamente, fomos ao Tivoli, onde também estavam os jogadores do Sporting. Foi uma surpresa, ninguém sabia que iam lá estar as duas equipas, no mesmo local, à mesma hora, e para verem o mesmo filme”, conta o ex-jogador das ‘águias’.
“E ali ficámos, à conversa uns com os outros. Apenas 24 horas antes do jogo, tinha havido um Benfica-Sporting no cinema, mas sem golos. Não havia bola, mas havia confraternização entre todos”, observa.
É nesse sentido que António Simões recorda, também, a intensa rivalidade (mas apenas dentro das quatro linhas) entre Eusébio e Vítor Damas. “O Eusébio sempre foi muito feliz nos derbies, marcou muitos golos e há vários episódios entre ele e o nosso querido amigo Damas. Houve muitos duelos entre eles, umas vezes ganhava um, noutras o outro, mas importa é ressalvar a relação fantástica que existia entre ambos. Eram adversários, mas também dois grandes amigos”, afirmou Simões.
Ao quarto dérbi... o primeiro golo
Com 88 golos somados ao longo da carreira, só dois foram reservados para o grande rival do Benfica naquela época. O primeiro, para o Campeonato, ocorreu logo no terreno do adversário e por distração da equipa da casa. Estávamos em abril de 1963.
“Lembro-me perfeitamente desse golo, de cabeça, ao Carvalho. Foi na sequência de um pontapé de canto, toda a gente estava em cima dos homens altos, do José Augusto, do Eusébio, do Torres, e esqueceram-se de mim... Também não havia nenhuma razão para estarem preocupados mas acontece que ninguém tocou na bola, ela veio direta a mim e eu fiz o golo de cabeça. Foi logo no início da minha carreira, em Alvalade, ganhámos 3-0”, começou por lembrar.
“Aliás, eu marquei golos de cabeça a todos os grandes guarda-redes portugueses, precisamente porque os defesas se esqueciam de mim, não representava nada no jogo aéreo, mas se a bola vinha direta a mim, só tinha de a colocar lá dentro”, rematou.
O golpe certeiro de cabeça de Simões foi, de resto, o 600.º golo a ser apontado num dérbi entre Benfica e Sporting, precisamente na época em que a equipa de Fernando Riera falhou em Wembley o ‘tri’ europeu (1-2 com o AC Milan).
Quando Alvalade 'enganou' Marcelo Caetano
António Simões não esquece o dérbi de 31 de março de 1974, em Alvalade (vitória do Benfica por 5-3), menos de um mês antes do 25 de abril, que contou com a presença de Marcelo Caetano, último líder do Estado Novo. Nessa altura o sentimento de revolta ganhava cada vez mais força, sendo que o jogo em Alvalade foi a estratégia encontrada para reforçar o apoio ao líder do regime.
Minutos antes do apito inicial, Caetano surgiu na tribuna presidencial, recebendo uma enorme ovação das 80 mil pessoas presentes em Alvalade. Estava acompanhado do ministro de Estado Adjunto (Mário Morais de Oliveira) e do ministro da Educação Nacional (Veiga Simão), para além do presidente do Sporting, João Rocha, e do presidente do Benfica, Borges Coutinho.
“Houve uma enorme manifestação de apoio ao Professor Marcelo Caetano, muitos aplausos e depois, passado pouco tempo, veio o 25 de abril. Veja-se a contradição que há nestas coisas. Nem sempre o que parece, é. Tanta manifestação de apoio ao homem e depois correram com ele. Não estou a dizer que isso está certo ou errado, quero é dizer que as aparências iludem”, relata.
*Artigo publicado originalmente no dia 20 de abril de 2017, às 16h47
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