Escalar o teto do mundo. Um sonho para os mais aventureiros. O Monte Evereste situa-se 8 848,86 metros acima do nível do mar, uma tarefa complicada mesmo para os alpinistas mais experientes, mas para Kami Rita Sherpa é mais 'um dia no escritório'. É literalmente isso. Foi no final do mês de maio, no dia 22, que o guia de montanha chegou ao topo pela 30.ª vez, em mais de três décadas que leva dessas 'andanças'.
Numa quarta-feira de manhã, Kami, de 54 anos, bateu o seu próprio recorde, na segunda subida no espaço de 10 dias. Ninguém chegou mais vezes ao topo do mundo do que ele. "É fácil para mim, Deus deu-me energia", começou por nos contar o nepalês que conhece novas sensações sempre que enfrenta o 'gigante'. "Cada subida é uma nova experiência, uma nova história, e é sempre especial", atesta.
O feito não passou despercebido e tem ainda mais valor para quem está por dentro do assunto. Ema Dantas, alpinista luso-canadiana, concluiu em 2022 o objetivo de escalar os sete cumes, onde se incluiu a montanha mais alta do mundo. "Foi incrível ele ter subido pela 29.ª vez e ter regressado dez dias depois. Aquilo é a vida deles, mas é muito cansativo, eu sei. Só temos que admirar", diz-nos.
Menos de 500 pessoas mundialmente fizeram os '7 summits', e Ema Dantas é uma delas. 'É verdade, 'wow', por vezes esqueço-me", desabafa num misto de espanto e satisfação.
As sete montanhas mais altas de cada continente são oito. A versão de Messner - troca o pico Kosciuszko (2.228 metros) na Austrália, pela Pirâmide Carztensz, na Indonésia, com 4.484 metros. Para além do Evereste, a luso-canadiana alcançou a Pirâmide Carstenz (Indonésia, 4.884), o Kilimanjaro (Tanzânia, 5.895), o Elbrus (Rússia, 5.642), o Monte Vinson Massif (Antártida, 4.892), Anconcágua (Argentina, 6.961), Denali (Estados Unidos, 6.190) e o pico Kosciuzkzo (Austrália, 2.228).
Kami Rita é o detentor do recorde, no que ao Evereste diz respeito, e é considerado uma lenda viva no Nepal. Mas mais do que registos e grandes feitos, este não é mais do que o seu modo de vida. "Eu não vou pelos recordes, é o meu trabalho".
Nasceu em 1979, numa pequena aldeia no distrito de Solukhumbu nos Himalaias, terreno fértil para o desenvolvimento de montanhistas bem sucedidos. Entre a comunidade, o primeiro a fazer história acabou por ser Tenzing Norgay, que alcançou os 8,849 metros, juntamente com o neozelandês Edmund Hillary, em 1953.
Durante a infância, Sherpa viu o irmão e o pai partirem para as expedições. "Não estudámos, e não tínhamos muitas condições, e tinha uma família para sustentar. Escalar era para mim o único caminho possível".
'Sardar', como é apelidado, já o faz há quase quatro décadas. Foi em 1994 que atingiu pela primeira vez o cume durante uma expedição, e tem repetido a proeza quase todos os anos. Para além do Everest, escalou também quatro das maiores montanhas dos Himalaias: Lhotse, Manaslu, and Cho Oyu e K2.
Antes do início de cada temporada, que decorre entre março e maio, e juntamente com outras equipas de sherpas, prepara as cordas para que a prática se torne mais segura. Mas como é do conhecimento geral, a subida reserva vários riscos. No mês de maio, Bashi Lai, um indiano de 46 anos, perdeu a vida depois de ser retirado do cume, acabando por morrer no hospital em Katmandu.
Já são oito o número de mortes nesta temporada de escalada ao 'teto' do nosso planeta'. Normalmente as mortes relatadas ocorreram a mais de 8 mil metros de altitude, na chamada 'zona de morte'. Aí falta oxigénio e existe o risco do chamado mal de altitude e hipoxemia.
"Todos podem tentar escalar, se tiveres a preparação certa. Começando por escalar montanhas de 6 mil metros até às de 8 mil. A forma de começar é que importa", relata.
Ema Dantas está consciente dos riscos e concorda com a abordagem do sherpa. "Não é para alpinistas inexperientes, porque não só podem colocar em perigo a sua vida como o dos que os acompanham", alerta. Encontrei pessoas que não conseguiam tirar o mosquetão de uma corda de segurança, e isso são técnicas rudimentares para qualquer alpinista".
"Eu para subir tive que enviar o meu currículo e realizar alguns cursos, porque as empresas que eu contratei não queriam correr riscos", revela.
A subida ao Evereste pode custar entre 40 mil e os 200 mil dólares. Uma expedição exige acompanhamento de um sherpa experiente, a habituação à altitude, oxigénio, e boa alimentação. São precisas várias semanas para atingir o cume.
O governo do Nepal recebe cerca de 10 mil dólares por cada alpinista que embarca nessa aventura.
Subir ao Evereste é um feito único, mas para quem o faz uma vez, desafiar novamente esse gigante deixou de ser objetivo. Alguns permaneceram eternamente na montanha gelada e não voltaram para contar a história. "Se o voltasse a fazer só seria pelo lado do Tibete [tradicionalmente a rota mais utilizada é pelo cume sudeste da montanha, pelo Nepal]. É muito perigoso, face ao histórico da montanha, com os vários corpos que ainda lá estão. O governo do Nepal cobra 200 mil dólares para resgatar um corpo. Há tantas coisas que estão mal no Evereste", destaca a empresária e tradutora luso-canadiana.
Entre o pânico e a euforia, Ema recorda o momento em que atingiu o topo. "O sherpa falava comigo, e eu dizia-lhe, isto está muito alto, vamos embora. Mas é o local mais alto do mundo, daí o encanto. Percebo melhor depois de ter visto as fotografias", disse. "Tenho saudades das montanhas, mas não irei outra vez ao Evereste", completa.
Entre a "South Summit" e a "True summit", a Hillary Step é a parte mais técnica da escalada ao Evereste, e o último desafio antes de se atingir o topo
O impacto do aquecimento global no monte gelado
O aquecimento global também deixou marcas no cume gelado que se situa entre a fronteira do Nepal e o Tibete. Kami tem notado, nos últimos anos, o impacto das mudanças climáticas. "Agora percebemos que há rochas que estão expostas quando dantes havia neve. O clima também é bem mais imprevisível", refere.
O reforço da importância do papel dos sherpa também é uma prioridade. Os guias locais são uma componente fundamental na lucrativa indústria, que acaba por render milhões de euros ao Nepal. Face às suas características, capacidade para subir com pouco oxigénio, adaptação às altas altitudes "Os sherpas têm sido a espinha dorsal que permite aos estrangeiros" atingirem o sucesso no Evereste. "Não seria possível sem a nossa ajuda", destaca. "Falta apoio e reconhecimento do governo e dos países estrangeiros, o que é muito triste", acrescenta.
Ainda assim, não se arrepende de ter seguido a sua vocação. "O meu objetivo é que as pessoas atinjam os seus sonhos, e eu ajudo-os a tornar especial essa jornada".
Kami Rita não se vê a parar tão cedo, e espera continuar a subir ao topo até aos 70, 80 anos "enquanto o corpo o permitir." Até lá, e já para o ano, em 2025, tentará subir ao topo novamente.
"Quero regressar no próximo ano. Quem puder, pode-me acompanhar nessa viagem".
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