Verão de 2001, arquipélago dos Açores: ainda com apenas um mês de idade, a pequena Maria Inês assiste à prova de tiro com armas de caça do seu pai, António Barros, ainda sem a menor noção daquilo que o futuro lhe iria revelar muito em breve.
Descendente de avô e pai atirador, Maria Inês Barros caminhou desde cedo de arma em punho e mira clara. O resultado? Aos 22 anos, a atiradora do Clube de Caçadores do Vale do Tâmega tornou-se a primeira mulher portuguesa a garantir presença nos Jogos Olímpicos em tiro com armas de caça, na modalidade de fosso olímpico, isto para além de ter conquistado a medalha de prata nos Europeus de júniores em 2021, e nos Jogos do Mediterrâneo, medalha de bronze na prova de trap por equipas nos Europeus de 2022 e na na 'President´s Cup' do mesmo ano, quinta classificada no Campeonato do Mundo de 2022, e medalha de ouro na etapa da Taça do Mundo disputada no Cairo em 2023.
Com o objetivo bem definido, Maria Inês não perdeu tempo e, aos catorze anos, passou no exame e obteve desde logo licença federativa; estava dado o tiro de partida. Contudo, e para se focar no seu alvo, a atiradora contou com a ajuda do seu pai que, desde cedo, lhe fez ver o potencial que tinha.
"Tive uma conversa muito séria com o meu pai, logo no final da minha primeira época no tiro. Na altura estava mais na brincadeira porque só queria dar tiros, quantos mais tiros desse em diferentes modalidades, eu estava lá. Só que o meu pai disse-me “Tu tens capacidades se quiseres ir mais longe”; ele sabia que era um dos meus objetivos, mas naquela altura eu nem pensava sequer em começar a trabalhar para isso, porque para mim ainda era um sonho. Só que ele disse que não, que tinha de começar já desde cedo a focar-me só no fosso olímpico. E de facto o meu pai teve razão (risos)", afirmou Maria Inês.
"Comecei a focar-me no fosso olímpico e desde há cinco anos que eu só atiro nesta modalidade. Foi a partir daí que os meus resultados começaram a surgir; no segundo ano consegui a minha primeira seleção, e a desde então foi sempre a subir"
A subida foi de tal forma acentuada que teve o seu pico em setembro do ano passado em Osijek, na Croácia. A atiradora portuguesa sagrou-se campeã da Europa de tiro com armas de caça, resultado que lhe permitiu uma vaga nos Jogos Olímpicos deste verão, em Paris.
Maria Inês dominou a prova desde as eliminatórias ao terminar o dia com 73 tiros certeiros em 75 possíveis. Na final, a pontaria continuou afinada com 43 pratos em 50 possíveis, resultado que deixou a segunda classificada, a italiana Silvana Stanco, a cinco de distância, e a espanhola, campeã do mundo e olímpica, Fátima Galvez no terceiro lugar.
Veja a prova que colocou Maria Inês de Barros nos Jogos Olímpicos
O que é fosso olímpico?
Fosso olímpico é uma das muitas categorias inseridas na modalidade de tiro que se disputam nos Jogos Olímpicos. O tiro é uma das provas mais antigas da história das Olimpíadas, sendo presença constante nos Jogos da Era Moderna desde 1896, tendo falhado apenas as edições de 1904 (St.Louis) e 1928 (Amsterdão).
O tiro divide-se em várias disciplinas, que englobam tiro com pistola livre, carabina, ou ainda tiro com armas de caça. Dentro desta última existem três provas: fosso olímpico (masculino e feminino), 'skeet' (masculino e feminino), e 'skeet' de duplas mistas.
"Se partir o prato é bom (risos). O fosso olímpico é uma modalidade que requer mais máquinas, nós não as vemos, estão no solo, dentro do fosso, que é de onde sai o prato. Essas máquinas são ativadas por voz; quando estamos todos preparados, com a arma no ombro, dizemos um ‘A’, um ‘O’, a máquina é accionada e lança o prato. Numa prova de qualificação temos dois tiros, numa final aí só temos um. Temos um tiro para partir o prato, supostamente antes dele cair no chão; normalmente o atirador procura partir o prato assim que ele sai, é uma modalidade muito rápida, e nós temos de reagir rapidamente para conseguirmos parti-lo", descreve Maria Inês.
Apesar de ser um desporto há muito presente nos Jogos Olímpicos, o tiro tem vindo gradualmente a perder o seu estatuto no rol de modalidades 'obrigatórias' nas olimpíadas. Perante a emergência de desportos mais populares e mediáticos, o tiro tem vindo a perder o seu espaço; com efeito foi com muita dificuldade que esta modalidade assegurou a sua presença nos Jogos de Los Angeles em 2028, havendo ainda um grande ponto de interrogação relativamente a 2032.
Maria Inês de Barros admite que é mesmo a pouca popularidade do tiro que levou a esta situação. Para além disso, a atiradora acrescenta que algumas das características alegadamente menos ecológicas da modalidade poderão ter contribuído para este cenário.
"É mesmo a falta de popularidade. Cá em Portugal, o tiro não é uma modalidade que toda a gente conheça, só quem está lá ou quem tem familiares ou amigos a praticar. E acho que está a acontecer o mesmo com os Jogos; Foi uma guerra para conseguirmos 2028 e estamos a ter a mesma guerra para 2032. Infelizmente o tiro não é considerado um desporto ‘eco-friendly’ porque usamos chumbo. Contudo os campos de tiro fazem recolhas do chumbo, cá em Portugal são obrigados a reportar a percentagem de chumbo que é recolhida. Entretanto estão a pesquisar outras alternativas ao chumbo mais ecológicas como o aço"
"Acho que é mesmo a falta de popularidade que nos está a matar"
Portugal nos Jogos Olímpicos
Desde os Jogos Olímpicos de 1960, em Roma, que Portugal tem frequentemente marcado presença nas provas de tiro com armas de caça, excepção feita para os Jogos de 1968 (México), 1980 (Moscovo) 2012 (Londres) e Rio de Janeiro (2016). De entre os vários nomes de atiradores olímpicos como Guy de Valle Flor, Custódio Ezequiel ou, mais recentemente, João Paulo Azevedo, aquele que mais se destaca é o de Armando Marques; o atirador de Algés alcançou a medalha de prata nas Olimpíadas de 1976 em Montreal, o melhor resultado de Portugal até hoje.
"Para mim foi um dia normal, como os outros. Tinha 39 anos, comecei a atirar com 25, portanto já eram 14 anos e tantas de dezenas de triunfos. Costumo dizer que foi mais uma prova ganha. Claro que marca de maneira diferente, porque são os Jogos Olímpicos. Tem um sabor especial, por ser olímpico", disse o atleta, anos mais tarde.
Quarenta e oito anos depois, Maria Inês Barros leva consigo para Paris, para além de um vasto leque de conquistas na carreira, uma história rica em bons desempenhos lusos no tiro. A atiradora afirma que está a tentar por de parte o peso de participar pela primeira vez nuns Jogos Olímpicos; para tal, Maria Inês procura usar o exemplo da postura que adotou na Croácia, e que tão bons resultados lhe trouxe.
"Quando alguém diz “Jogos Olímpicos”, o meu coração começa a acelerar. O João Paulo (Azevedo) já me disse que as Olimpíadas são completamente diferente das provas internacionais. É a expectativa que me está a deixar assim um pouco mais ansiosa. Mas eu vou tentar fazer o mesmo que fiz na Croácia, mas é um estado de espírito que eu não sei como ativar. Eu só o consegui porque, depois de tantas provas procurando estar sempre a 200%, pensei “não, eu vou só desfrutar, vou-me divertir com esta prova!” E foi aí que liguei o interruptor, mas não sei o que despoletou aquilo. Quando me lembro “que fixe, vou estar lá”, segue-se logo um “mas para já estou sozinha”, e é um bocado difícil abstrair-me disso. Mas ainda tenho esperanças que vou ter, pelo menos, mais dois colegas"
A situação do tiro em Portugal
A Federação Portuguesa de Tiro com Armas de Caça contava, até setembro de 2023, com mais de 5500 atletas inscritos; apesar disso, Maria Inês de Barros considera que deveria haver mais praticantes de tiro no nosso país em competições, especialmente nos Jogos Olímpicos.
"Espero ter mais pessoas a atirar aqui em Portugal, estamos a precisar. Portugal tem muito talento no tiro, mas não é aproveitado porque as pessoas levam-no muito na brincadeira e não pensam na projeção que isto pode ter; nem toda a gente sabe que o tiro é modalidade olímpica. A ida do João Paulo aos Jogos de Tóquio ajudou a melhorar a nossa imagem, no IPDJ (Instituto Português do Desporto e Juventude), ou no Comité Olímpico. Espero que se torne um hábito e que estejamos sempre nos Jogos e com cada vez mais apoios porque ninguém sobrevive sem eles. Acho que se deve apoiar as modalidades desportivas mesmo antes destas alcançarem um grande resultado", disse a atleta.
"Lembro-me de ver a Jessica Rossi, nos Jogos de Londres, a fazer 75 em 75 na classificação. Quando cheguei lá fora e a vi pensei “ela é real!”, e agora atiro ao lado dela; passou de ídolo para amiga e isso é uma sensação incrível"
Todavia, a jovem atiradora admite que, não só os custos envolvidos na prática do tiro, como a falta de divulgação dos resultados, podem afastar muitos atletas de enveredar pela alta competição.
"Eu espero que a situação comece a melhorar com o aumento dos apoios, porque o tiro não é um desporto barato e acho que há muita gente que desiste por causa disso; deslocações, cartuchos, armas, é tudo um bocado caro. Uma caixa de 250 cartuchos, que dá para uma prova de 125 pratos, custa cerca de 100 euros.
Para além disso também falta comunicação e divulgação dos nossos resultados; uma pessoa que queira seguir o tiro, tem de ir ao 'site' da federação para poder ver alguma coisa e não consegue ver nada apelativo, apenas resultados. É diferente de outras modalidades, e acho que a nossa federação, apesar de ter melhorado nesse aspeto, ainda tem margem para evoluir mais"
Para Maria Inês Barros, os custos elevados que estão inerentes à prática do tiro, juntamente com o restante investimento, acaba por pesar na hora dos jovens praticantes decidirem entre o desporto de alta competição e a vida académica.
"Eles vêem-se obrigados a tomar esta decisão por falta de estabilidade. Muitos dos meus colegas simplesmente não tiveram tempo suficiente para evoluir e chegar ao seu pico, tiveram de decidir se realmente iam investir na carreira desportiva, ou naquilo que realmente vai pagar as contas que é um curso e um emprego. No meu caso, felizmente consegui o estatuto de atleta de alta competição; é verdade que a federação tem investido nos juniores, mas eles estão a chegar à altura crítica de decidir o seu futuro, e neste caso os pais têm muita influência, porque são os pais que pagam e muitos, compreensivelmente, pressionam para que eles invistam na sua carreira académica. Eu não fugi a isso mas tive a sorte de ter o estatuto que me permitiu conciliar as duas coisas. Mas acredito que foi à custa disso que perdi os meus colegas pelo caminho"
"Alcançar o estatuto de atleta de alta competição é muito complicado, tem muitos pormenores desnecessários e acho que se deveria facilitar esse processo, porque senão arriscamo-nos a ficar sem juniores, e eles é que são o nosso futuro"
Recentemente a jovem atiradora, que frequenta o mestrado integrado em Medicina Veterinária do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, confessou que também ela terá de tomar uma decisão sobre o seu futuro. Não deixando de sublinhar a sua paixão pelo tiro, Maria Inês Barros afirma que, provavelmente, também deverá optar pela carreira profissional.
"Como já disse, o tiro é um desporto muito caro,e para chegarmos a um patamar em que é possível nos focarmos exclusivamente nele é preciso conquistar muita coisa. Se eu agora me dedicasse somente ao tiro era capaz de me aguentar, mas sei que seria difícil manter estes resultados consistentemente, de forma a conseguir manter este estilo de vida; ou seja, mesmo a longo prazo, diria que é sempre mais seguro optar pelos estudos, infelizmente. Mas acho que isto também se aplica a muitos outros desportos; lamentavelmente em Portugal não há muitos apoios para os desportos com menor visibilidade mediática", confessou.
Enquanto tal não acontece, a penafidelense tem esperança que outros jovens atiradores sigam o seu exemplo e que, acima de tudo, gostem e se divirtam ao fazê-lo, independentemente dos resultados que possam vir a alcançar no futuro.
"Não é preciso que seja uma Maria Inês. Sinceramente, já fico contente se for uma pessoa que queira atirar, e que goste de atirar e que se divirta; e que com isso consiga obter os resultados que lhe permitam ir lá fora. Não quer dizer que sejam todos um “Armando Marques”, “João Paulo Azevedo” ou “Inês Barros”. Somos todos diferentes na maneira de atirar e ainda não encontrei duas pessoas com o mesmo estilo"
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