"Somos Mardinis. E nadamos". Este bem pode ser considerado o 'slogan' de Yusra e Sarah Mardini, duas adolescentes sírias ligadas umbilicalmente à natação muito devido à forte influência do seu pai Ezzat Mardini, também ele um antigo nadador, que viu a sua promissora carreira interrompida pelo serviço militar. Para além de pai, Ezzat é também treinador das suas jovens filhas, e nunca mistura os dois papéis. "Em casa sou pai, aqui sou o teu treinador", diz Ezzat à jovem Yusra a meio de um treino.
O plano do pai para Sarah e Yusra é claro: ter as duas filhas nos Jogos Olímpicos. Sarah e Yusra olham para a natação com a mesma naturalidade com que se olha para qualquer outra característica de uma pessoa, como se fosse algo de inerte e que não precisou de qualquer tipo de nova experiência ou adaptação para que passasse a ser parte integrante das suas vidas.
"Eu nado antes de conseguir andar. [...] Nenhuma de nós escolheu nadar. Nós apenas nadamos, sempre nadámos", pode ler-se nas linhas inicias do livro escrito por Yusra intitulado "Mariposa".
Apesar de irmãs separadas por apenas três anos, Sarah e Yusra não poderiam ter personalidades mais díspares. Enquanto Yusra se mostra mais tímida e ensimesmada, procurando frequentemente as 'saias' da mãe, Sarah é extrovertida, vocal e muito opinativa.
"Eu nado antes de conseguir andar. [...] Nenhuma de nós escolheu nadar. Nós apenas nadamos, sempre nadámos"
"[Yusra] Sou dolorosamente envergonhada e raramente falo. Só estou feliz na companhia da minha mãe, Mirwat. Se ela vai à casa de banho, eu espero cá fora até que saia. Se outros adultos tentarem falar comigo, olho para eles em silêncio. [...] A Sarah é o extremo oposto. Ninguém consegue que ela fique calada. Está sempre a falar com os adultos, até estranhos em lojas, balbuciando uma língua inventada. Ela gosta de interromper serões de chá indo para cima do sofá da avó a dizer baboseiras e a abanar os braços como se estivesse a fazer um discurso" (Mariposa, pág.11-12).
Tudo isto se desenrola em plena Primavera Árabe, onde vários regimes autoritários da região vão caindo gradualmente. Apesar das notícias de vários golpes de estado chegarem até à sua casa pela televisão e redes sociais, a situação é de certo modo desvalorizada pelo pai, acreditando que o que acontecera no Egito e Líbano não chegaria à Síria.
"Isto nunca há de acontecer aqui, entendes? Nunca na vida algo semelhante pode acontecer na Síria". Ele explica-nos que a Síria é estável e sensível. Os cidadãos são calmos e discretos. Não vão criar problemas. Todos temos emprego, uma boa vida. Trabalhamos, somos felizes, e seguimos com a nossa vida em frente." (Mariposa, pág.29).
A verdade é que em 2015 a Síria é bem diferente; uma família típica de classe-média vive agora tempos difíceis num país mergulhado numa sangrenta e interminável guerra civil, onde nem se pode andar na rua à noite.
A realidade acaba por bater à porta dos Mardini quando, a meio de uma prova de natação, bombas caem sobre o edifício e um morteiro cai na água, mesmo em frente da aterrorizada Yusra que o vê lentamente a cair no chão da piscina, acabando por não detonar.
Com alguma relutância, o pai decide que Sarah e Yusra devem sair da Síria e rumar até à Alemanha na companhia do primo Nizar. Para tal eles terão de chegar primeiro à Turquia para depois fazer uma travessia de barco até Lesbos.
Depois de pagar 2 mil euros cada um a um passador, os jovens juntamente com cerca de mais vinte pessoas (os atores eram realmente refugiados) são lançados à sua sorte num pequeno semi-rígido. O excesso de peso sobre o barco, juntamente com as constantes falhas de motor, obrigam as irmãs Mardini a saltar para o meio do mar Egeu e percorrer quase 30 quilómetros a nado, durante três horas e meia, junto ao barco.
Até chegar à Alemanha os três jovens vão ter de lidar com tentativas de extorsão e violação e fugas às polícias dos vários países que atravessam. Chegadas à Alemanha, e enquanto a sua situação burocrática não é resolvida, Yusra e Sarah tentam arranjar forma de treinar num clube de natação local. Aí conhecem Sven Spannenkrebs que, perante o talento das irmãs, decide treiná-las.
Yusra mantém a determinação em continuar a treinar para os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro de 2016, acabando por ver todo o seu trabalho recompensado quando o Comité Olímpico Internacional decide criar, pela primeira vez, a Equipa Olímpica de Refugiados, levando Yusra até as Olimpíadas brasileiras. Marcada pela saga que vivenciou, Sarah decide voltar para Lesbos para ajudar outros migrantes a fazer a mesma travessia que ela foi obrigada a fazer.
A inabalável determinação de Yusra Mardini levou-a a ultrapassar todos os obstáculos que possamos imaginar, e ainda mais alguns que não farão propriamente parte do nosso quotidiano. Contra todas as adversidades, Yusra manteve o sonho vivo através do seu trabalho incansável, acabando por ser recompensada ao participar nos 100 metros mariposa nas Olimpíadas de 2016.
Yusra Mardini nos Jogos Olímpicos de 2016
Reações
O filme foi lançado na plataforma de 'streaming' Netflix a 23 de novembro de 2022, e tem sido bastante elogiado por críticos e pelo público em geral.
Já depois da estreia, a Netflix mostrou o 'trailer' de apresentação à própria Yusra Mardini; mesmo já depois de ter assistido ao filme, a jovem atleta não conseguiu conter as emoções perante o retrato da sua inacreditável saga.
Em entrevista, a realizadora do filme, Sally El-Hosaini, revelou um dos principais motivos que a levou a abraçar este projeto. Para além de identificar-se com as duas irmãs, a realizadora anglo-egípcia viu neste filme a oportunidade de alterar drasticamente o retrato habitualmente feito à mulher árabe no cinema.
“Raramente vemos jovens e modernas mulheres árabes nos ecrãs. Vi aqui a oportunidade de construir complexas heroínas a partir desse tipo de mulheres. Quando era pequena eu nunca tive um exemplo de mulher assim - uma versão de mim nos ecrãs. Normalmente vemos um retrato vitimizado. Pensei que, se não fizesse este filme, e o visse, eu iria sentir-me desiludida porque sabia o que poderia ter estado nas minhas mãos. Foi aí que percebi que o tinha de fazer."
El-Hosaini enfatizou o profundo impacto que os conflitos armados têm numa sociedade, acabando por desmoronar todas as estruturas que a compõem, permitindo assim, ironicamente, maior liberdade social e cultural, onde as pessoas podem assumir um papel que a sociedade tradicional não lhe tinha atribuído.
créditos: LAURA RADFORD/NETFLIX
“A guerra vira tudo ao contrário. Todas as estruturas da sociedade — estruturas culturais, patriarcais — deixam de existir. São abaladas. Isto permite aos jovens realmente enveredarem por um caminho destes. É uma libertação irónica nascida da tragédia e da guerra. Neste caminho que percorram, eles tiveram de tomar decisões realmente cruciais para as suas vidas. Tornaram-se heróis por isso mesmo. Isso foi algo que realmente ressoou em mim."
Durante o processo de construção deste filme, a realizadora teve contacto direto com a história das irmãs Mardini através de conversas com Yusra. Aí a cineasta conseguiu perceber melhor qual a abordagem tomada pelos jovens adolescentes perante uma guerra civil. Segundo El-Hosaini, eles tentam relativizar a situação, por forma a poderem continuar a ser e comportar-se como adolescentes.
“A Yusra contou-me a história do dia em que um morteiro caiu à frente dela quando ela ia ter com amigos, e que, no meio do caos, ela escondeu-se atrás de um muro. Enquanto estava escondida ela pensava: ‘Devo correr para casa ou devo ir ter na mesma com os meus amigos? Estatisticamente já tive um morteiro a cair à minha frente. Mais nenhum vai cair junto a mim esta noite. Vou ter com os meus amigos.’ É assim que a guerra se normaliza. É horrível, mas é isto que realmente acontece. Eles estavam apenas a tentar ser adolescentes"
"'Estatisticamente já tive um morteiro a cair à minha frente. Mais nenhum vai cair junto a mim esta noite. Vou ter com os meus amigos.' É assim que a guerra se normaliza. É horrível, mas é isto que realmente acontece. Eles estavam apenas a tentar ser adolescentes"
As irmãs Mardini
Numa conversa entre Yusra Mardini e Nathalie Issa, atriz que assumiu o papel da atleta no filme, Yusra falou sobre o seu caminho até os Jogos Olímpicos e também tudo o que reviveu ao ver o filme.
"É um pouco confuso ter uma cena favorita num filme sobre a tua vida. Gosto muito da cena onde eu e a minha irmã estamos a dançar numa festa e podemos ver os bombardeamentos. Mostra às pessoas que de facto havia uma guerra e muita coisa estava a acontecer mas nós estávamos a tentar ter uma vida normal. Eramos adolescentes, eu tinha 16 anos, tentávamos sair, divertirmo-nos e ter uma vida normal. Pessoalmente não gosto quando mostram na televisão imagens de cidades árabes cinzentas e destruídas, e não é isso que se vê nesta cena", afirmou a atleta.
"Foi muito bom ver novamente a minha história e perceber que de facto concretizei o meu sonho. Eu nado desde os meus 3 anos e nem sempre gostei. Quando a guerra começou pensei que nunca conseguiria alcançar o meu sonho. Há uma cena no filme em que a piscina está a ser bombardeada, e isso aconteceu de facto; e é triste porque aquilo passou a fazer parte do nosso quotidiano, e pensei que nunca seria uma nadadora olímpica."
"Mesmo depois de chegar à Alemanha, conhecer o Sven, falar-lhe do meu sonho olímpico e conseguir uma bolsa do COI e fazer parte da primeira Equipa Olímpica de Refugiados, eu tive dificuldades em lidar com isso. Eu não queria ir aos Jogos Olímpicos porque as pessoas tinham pena de mim, queria fazer por merecer o meu lugar nas Olimpíadas."
"Quando entrei no Estádio Olímpico foi absolutamente fantástico, tive a noção de que isto não era apenas o meu sonho, já não era apenas sobre mim, mas sim sobre milhões de pessoas. Estás ali a representar pessoas que precisam de esperança e de uma voz, e por isso decidi que ia nadar por todos eles. A partir daí, em cada prova em que participei, sempre pensei nessas pessoas e mostrar que esta rapariga síria comum está a mudar o mundo"
Hoje Yusra Mardini é embaixadora da boa vontade da UNHCR (Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados), a mais jovem de sempre a ser distinguida com esse título. A jovem atleta tem percorrido o mundo e partilhado a sua experiência em escolas, com chefes de estado, CEOs e também diretamente em campos de refugiados um pouco por todo o planeta.
"Estás ali a representar pessoas que precisam de esperança e de uma voz, e por isso decidi que ia nadar por todos eles. A partir daí, em cada prova em que participei, sempre pensei nessas pessoas e mostrar que esta rapariga síria comum está a mudar o mundo"
Já a irmã Sarah dedicou-se a ajudar outros refugiados a fazer a mesma travessia realizada por ela e pela sua irmã. Sarah acabou por ser presa pelas autoridades gregas, acusada de tráfico, espionagem e associação criminosa. Depois de mais de cem dias presa, Sarah foi libertada sob fiança em dezembro de 2018. Caso seja condenada, a jovem síria arrisca-se a uma pena de 25 anos.
Numa conferência em Londres em 2020, Sarah Mardini explicou as razões pelas quais decidiu voltar a Lesbos e ajudar mais migrantes a chegar à Europa.
"Em Agosto de 2016 recebi uma mensagem no meu Facebook de um voluntário desconhecido. Ele disse que há crianças no campo de refugiados de Lesbos que me pedem que lhes ensinem a nadar para serem como as irmãs Mardini...eu não preciso de mais do que uma criança que diz que quer ser como eu para voltar para lá. Depois de ir aos Jogos Olímpicos com a minha irmã voei diretamente para Lesbos e foi aí que conheci as crianças e o que estava a ser feito no campo de refugiados."
"O terapeuta do campo estava a usar a história das Mardini para restabelecer esperança nas mentes e corações das crianças, mostrando que qualquer um poderia fazer a diferença se acreditasse verdadeiramente. A partir daí duas semanas transformaram-se em dois anos, tudo graças a apenas uma frase. Quando fui apresentado à equipa o que me disseram foi: 'Se acreditas que és um herói ou que estás a salvar alguém, podes sair. As pessoas que chegam de barco até nós são sobreviventes, tu não estiveste na água com eles, tu não estás a salvar a vida de ninguém, estás só a prestar assistência'."
"Fui presa porque todas as noites dava água, cobertores e ajudava na tradução. As entidades governamentais entendem que isto constitui assistência a migrantes ilegais. Em 2015 quando fiz a travessia eu não sabia que haveriam pessoas na costa à minha espera; ninguém põe a sua vida em risco num barco de borracha por haver alguém à nossa espera na costa. Esta é a minha única resposta a todas as acusações de que sou alvo."
"Se acreditas que és um herói ou que estás a salvar alguém, podes sair. As pessoas que chegam de barco até nós são sobreviventes, tu não estiveste na água com eles, tu não estás a salvar a vida de ninguém, estás só a prestar assistência'."
Quatro anos depois de aberto, o processo que envolve Sarah Mardini ainda não está concluído. O julgamento do passado dia 10 de janeiro não foi conclusivo, com o tribunal a remeter remeteu a acusação de volta para o Procurador, devido a falhas processuais.
A Equipa Olímpica de Refugiados
O anúncio da criação da Equipa Olímpica de Refugiados (EOR) foi feito na Assembleia Geral das Nações Unidas em Outubro de 2015 pelo presidente do Comité Olímpico Internacional (COI), Thomas Bach. Numa altura em que o mundo se deparava com uma enorme crise migratória, o COI abriu a porta a todos os atletas que lutavam e sonhavam com as Olimpíadas, mas que foram obrigados a abandonar os seus países.
A primeira EOR foi composta por dez atletas de países como a Síria, Sudão, Etiópia ou República Democrática do Congo, que participaram em eventos de natação, atletismo e judo.
Para os jogos de 2020 em Tóquio, o COI decidiu manter esta iniciativa, alargando o número de selecionados através de um programa de bolsas atribuídas a atletas refugiados. Nos Jogos Olímpicos nipónicos, a equipa foi constituída por 29 atletas, espalhados por disciplinas como o boxe, ciclismo, halterofilismo ou canoagem, isto para além das clássicas natação, judo e atletismo.
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