A pluralidade de opiniões e experiências “positivas”, mas não isentas de “bocas” e preconceitos, marcam a experiência feminina nos eSports em Portugal, segundo contaram à Lusa várias profissionais do setor.
Com uma comunidade pequena mas “exigente” no país, o setor fica, em Portugal, longe dos documentados casos de abuso, assédio e outros tipos de violência ‘online’ que ‘atormentam’ o mercado a nível global.
Ainda assim, as mais de 10 profissionais do setor ouvidas pela Lusa lembram vários episódios de “bocas” relacionadas com preconceitos de género, quando a presença de mulheres entre equipas profissionais ainda é escassa.
A jogadora de Counter-Strike: Global Offensive Adriana ‘Yun’ Barbosa diz à Lusa que o sexismo só a faz “querer ganhar ainda mais”, mesmo que encontre frequentemente comentários machistas, há quem “se vá abaixo”.
Marta Casaca, uma fisioterapeuta a ‘full time’ que, nos eSports, trabalha como apresentadora e entrevistadora, entre outras funções, lembra que sobretudo fora dos elencos de jogadores “o género acaba por não ter um impacto tão grande na comunidade”.
Já se vê “muito de tudo”, mesmo num “meio muito competitivo”, e ‘Picky Wicky’, como é conhecida na cena portuguesa, refere que é preciso “educar os outros” e permitir o erro para o corrigir, e não abandonar “à mínima adversidade”.
No campo competitivo, admite, “já é um bocadinho diferente”, porque poucas mulheres transitam para o setor competitivo apesar de muitas descobrirem e praticarem nos principais videojogos, além de “uma questão numérica”, o desfasamento entre o número de rapazes que exploram e experimentam videojogos em comparação com raparigas.
Em 2017, a Marktest apresentou um estudo que colocava em 33,5% a percentagem de portugueses com uma consola em casa. “Analisando os dados por género, observa-se que entre os homens o valor é superior à média (39.2%), enquanto nas mulheres é de 28.4%”, pode ler-se na nota que acompanhou o trabalho.
Casaca realça algumas estratégias que têm sido levadas a cabo para estimular a participação de mulheres em torneios, de eventos dedicados a outras iniciativas, mas há ainda “muita misoginia reportada pelas mulheres, que são atacadas ‘online’, e durante os jogos, por serem mulheres”.
Mesmo nunca tendo tido essa experiência, confessa, lembra que é importante que sejam utilizados “os canais e formas de lidar com essas adversidades e reportar as situações”, até porque são coisas que se repetem “na escola” e noutros contextos.
Já Ana Martins, ‘manager’ da equipa britânica Enclave de League of Legends, lembra a “fama” de a comunidade deste videojogo ser “muito tóxica”, algo com que concorda, embora tenha encontrado em Portugal uma comunidade que a “surpreendeu pela positiva”.
“Quando comecei com um podcast [sobre a comunidade do videojogo em Portugal], fiquei bastante surpreendida pela positiva. (...) A experiência que tive cá foi de uma comunidade próxima e querida. Foi muito diferente do que esperava”, comenta.
Para a ‘manager’, o problema é que “atrás de um ecrã” surgem comportamentos que “não são de seres humanos”, algo que se vê em qualquer lado “pelas redes sociais”, onde o ‘cyberbullying’ se torna “um bocadinho mais agressivo”, porque “não é físico mas é igualmente marcante”.
Concorda que “oportunidades” são a chave para aumentar a igualdade e a presença da mulher, até porque muitas vezes há uma visão, não só nos eSports, de que “a credibilidade de uma mulher nunca é a mesma”, sobretudo num setor com “muitos adolescentes”.
Há hoje em dia, concede, “bastantes mulheres no meio”, que vão “abrindo o caminho” para mais e mais representação, mas Ana Martins considera que também vozes masculinas podem “bater o pé” quanto ao abuso ‘online’, até porque vem de “um problema de mentalidades” e educação.
Se em todo o lado em que trabalhou no setor “nunca foi sequer um assunto”, quando está “’online’, a jogar, é sempre” presente algum tipo de assédio ou abuso. Ana Martins espera, assim, que “um dia o género não seja relevante”.
O selecionador nacional de futebol virtual, Armando Vale, considera que há “uma questão de interesse” e não de capacidade, é apologista de competições femininas, mesmo que isso “em nada invalide” a participação mista, até porque “qualquer competição de eSports é aberta” a qualquer género.
“Pode existir uma certa pressão das mulheres a jogar, porque às vezes ao lidar com público bastante jovem, podem não estar habituadas a levar com naturalidade jogarem contra uma mulher, por não terem ainda valores formados, não mostram o respeito que devem”, critica.
Mais tarde ou mais cedo, diz, vão ver-se “mulheres a competir ao mais alto nível em qualquer videojogo”, e essa certeza também se deve a um “trabalho demorado” que elogia por parte de figuras da comunidade, como ‘streamers’, que tentam sensibilizar o público, e sobretudo o público mais jovem, para a igualdade de género e contra o sexismo.
“Enquanto mulher, nunca me senti menosprezada. (...) Acho que os rapazes têm mais o gostinho do competitivo, e as raparigas encontram outras coisas”, começa por dizer à Lusa Sofia Andrade, uma enfermeira que desempenha várias funções no meio, incluindo de árbitra na Liga Portuguesa de League of Legends.
As mulheres recebem “sempre bocas, como mandar para a cozinha, por exemplo”, e Sofia lembra como, quando era mais nova, tinha a ambição de “estar numa boa equipa”, antes de a vida trazer “a faculdade e obrigações” e levar a uma escolha.
Concorda que “muita gente menospreza alguém só por ser rapariga, neste mundo”, e assumem que lhes estão destinados outros trabalhos que não o de jogadora, algo que, ressalva, “acontece em qualquer desporto”.
“Daqui a 10 ou 20 anos, não será igual, e já teremos mais raparigas nos eSports e menos comentários. Estamos numa fase de transição de gerações, em que isto tudo está a mudar”, alerta.
A jornalista da RTP Arena Sara Lima lembra a comunidade “muito exigente” na qual alguns comentários menos positivos, para mulheres ou homens, “vão desaparecendo e dão lugar a reforço positivo” ao longo do tempo, afirmando-se “muito bem acolhida”.
“Tenho a certeza que [a situação] vai melhorar. Como eu cresci a jogar videojogos, muitas raparigas o fazem. (...) O trabalho que tem de acontecer é mais de proporcionar oportunidades a competições de equipas femininas”, propõe.
Profissional de comunicação na Braver, uma empresa especializada na área, Ana Guerra explica que nos eSports há um “reflexo do que acontece no ‘gaming’ em geral”, com menos exemplos a seguir, razão pela qual pede “mais competições internacionais dedicadas a mulheres”, mais ferramentas para reportar abusos ou comportamentos nocivos e que os os jogos em si sirvam “como arma de protesto” e veículo de ensino.
Para a questão da visibilidade, Vanessa Vieira Dias fundou a comunidade Videojogo, Disse Ela, de ‘networking’ para profissionais do ramo, para “normalizar” esta presença feminina, que Ana Guerra pede para que se criem, também, “mais jogos que fazem sentido para mulheres” e também o aparecimento de mais eventos promotores de talentos, que se tornam, depois, exemplos para novas entradas.
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