A conversa com Jéssica Silva, internacional portuguesa e extremo do Lyon, acontece um dia depois de a Federação Portuguesa de Futebol (FPF) ter ‘deixado cair’ a norma do limite orçamental da proposta final de regulamento da Liga feminina, na sequência dos protestos do movimento "Futebol Sem Género", que reacendeu o debate sobre a igualdade entre homens e mulheres no desporto-rei.
Jéssica Silva deixou o SC Braga em 2017 para rumar ao Levante (Espanha) e, mais tarde, ao Lyon (França), tetracampeão europeu em título. A jogadora continua atenta à realidade do futebol feminino no seu país, mas prefere não tomar partidos.
“É um assunto muito delicado e tenho sempre algum receio de que o que vá dizer seja mal interpretado, daí não me querer intrometer. Acho importante reivindicarmos os nossos direitos e apoio qualquer jogadora que o faça. No entanto, acredito que a Federação nunca quis discriminar as jogadoras”, começa por dizer a internacional lusa.
“A FPF tem trabalhado muito bem - e nós que estamos ligadas ao futebol feminino vemos isso – para divulgar a modalidade e dar visibilidade à mulher. Por isso não consigo ver a Federação a tomar uma decisão que fosse com o objetivo de prejudicar o futebol feminino. Seria um absoluto contrassenso. Acredito que a intenção fosse outra, nomeadamente tentar que houvesse mais equilíbrio entre as equipas”, defende.
Recorde-se que a Federação Portuguesa de Futebol tinha apresentado em comunicado, a 29 de maio, um regulamento específico que enunciava que seria imposto um teto salarial de 550 mil euros a todas as atletas inscritas na liga de futebol feminino. Uma medida que acabaria por cair por terra.
“Não tenho noção dos números nem dos valores dos contratos em Portugal, sobretudo agora com a entrada dos ‘grandes’, mas não me parece que, em salários, um clube ‘grande’ tivesse capacidade para pagar [esse valor]. Acredito que o objetivo [da Federação] nunca foi criar divisões, pelo contrário”, sublinha.
Sem descurar a importância da questão salarial, Jéssica Silva considera que há outras lutas a travar no contexto português do futebol feminino.
“Esquecemo-nos que há muito poucas jogadoras profissionais de futebol feminino em Portugal, umas 10%, talvez nem isso. Mais do que a igualdade salarial, é importante tentarmos dar condições a todas as mulheres e a todas as equipas para se tornarem profissionais. Se calhar são mais as jogadoras que pagam para jogar do que aquelas que são pagas por jogar”, lamenta a portuguesa, que lembra que há muitas futebolistas “com filhos, e que saem do trabalho às 19h30 para irem, depois, treinar às 20h30, 21h00".
"Eu não quero ganhar o mesmo que o Ronaldo ou o Pizzi. Mas defendo que temos de ser remuneradas de acordo com o nosso valor. E não apenas no futebol"
O preconceito que subsiste num mundo masculino
Jéssica Silva não tem dúvidas: ainda há quem pense que o futebol é (só) para homens. “Aos poucos, as coisas estão a mudar, mas claro que ainda há muito preconceito. Em todo o lado, não é só em Portugal. Eu estou no melhor clube do mundo e, mesmo assim, quando digo que sou jogadora de futebol as pessoas ainda estranham. Chateia-me quando uma jogadora faz uma finta ou um grande golo e dizem que foi sorte. E há sempre aquela frase: ‘Para mulher até joga bem’. É uma batalha que vai continuar por muitos anos”, diz a jogadora, cujas fintas - incluindo os 'túneis' - são presença habitual nas redes sociais.
A seleção feminina dos Estados Unidos, bicampeã do mundo em título, tem sido uma das mais ativas na guerra do ‘equal pay’ (igualdade salarial), tendo visto recentemente o seu pedido rejeitado pelo tribunal. Jéssica Silva considera que as norte-americanas têm “toda a legitimidade” para reivindicar um salário equivalente ao dos homens, “por tudo o que têm dado a ganhar ao país”. “Nos Estados Unidos, a seleção feminina é a mais ganhadora e a mais lucrativa”, reforça.
A extremo do Lyon sublinha, no entanto, que é fundamental criar um mecanismo para que o desequilíbrio entre as vertentes masculina e feminina do futebol não seja tão acentuado, em termos salariais.
“Eu não quero ganhar o mesmo que o Ronaldo ou o Pizzi. Mas defendo que temos de ser remuneradas de acordo com o nosso valor. E não apenas no futebol. Numa fábrica, por exemplo, vemos homens a ganhar mais do que as mulheres quando desempenham as mesmas funções. Devem ser criados mecanismos para que esta diferença não seja tão evidente”, sustenta.
No início de junho, a norueguesa Ada Hegerberg, que partilha o balneário com Jéssica Silva, tornou-se a primeira a aproximar o valor dos contratos publicitários das mulheres dos homens, ao assinar um contrato de seis dígitos com a Nike. “É um motivo de orgulho e um grande passo para a modalidade”, diz a portuguesa.
O Lyon e a exigência de competir com as melhores do mundo
Foi no verão de 2019 que Jéssica Silva, então ao serviço do Levante, assinou pelo tetracampeão europeu Lyon, "a melhor equipa do mundo". O interesse do clube francês já vinha de trás e deixou a portuguesa "incrédula", mas só à segunda tentativa é que a mudança para França se concretizou.
"Eu já tinha tido um contacto do Lyon em setembro do ano anterior e na altura nem o Levante aceitou nem eu mostrei grande vontade de sair, estava um pouco reticente por ser um passo gigantesco e preferi ficar em Espanha a ganhar mais experiência. Em fevereiro voltei a ter outro contacto do Lyon e acabei por aceitar. Era uma oportunidade única e foi muito bom ver o meu valor reconhecido desta forma", admitiu.
A internacional lusa divide o balneário com quatro das dez primeiras classificadas da Bola de Ouro [feminina], Lucy Bronze, Ada Hegerberg, Wendie Renard, Dzsenifer Narozsán. "Aqui a exigência é elevadíssima, treinamos quase duas horas e meia por dia, sempre com a máxima intensidade. Os primeiros meses foram um pouco mais difíceis, mas elas foram as primeiras a ajudar-me, fui muito bem recebida. Ao mesmo tempo também puxam muito por mim. Sinto que estou a ganhar muita 'bagagem' e a crescer como jogadora. Estou a conquistar o meu 'espacinho' no mundo do futebol", afirma a extremo.
"Aqui há três ou quatro jogadoras para cada posição, sendo que as melhores jogam precisamente na minha posição. Mas como não gosto de estar na minha zona de conforto, até é bom que haja essa pressão porque obriga-me a superar-me todos os dias e a dar o meu melhor a cada treino. Não tive muitos minutos na temporada passada, mas naqueles que tive sinto que fiz as coisas bem, e o meu valor tem sido reconhecido pelas minhas colegas", conta a futebolista, de 25 anos, que fez um total de cinco jogos com a camisola do Lyon, tendo ainda apontado dois golos.
Tal como na Ligue 1, o campeonato feminino também foi encerrado devido à pandemia da COVID-19, a seis jornadas do fim, com o Lyon a ser declarado campeão - liderava com três pontos de avanço sobre o PSG. Jéssica Silva considera que a decisão do governo francês foi "a mais sensata" tendo em conta o panorama que se vivia no país, louvando o facto de a suspensão do futebol ter sido aplicada "tanto ao campeonato masculino como ao feminino".
A equipa gaulesa, de resto, ainda terá oportunidade de revalidar o título europeu na 'final a oito' que irá decorrer entre 21 e 30 de agosto nas cidades espanholas de Bilbau e San Sebastián, no País Basco. Atlético Madrid, Barcelona, Bayern Munique, Glasgow City, Wolfsburgo, onde joga a portuguesa Cláudia Neto, Arsenal e PSG são as outras equipas em prova.
A grave lesão pouco antes da pandemia
No passado dia 5 de março, a FPF anunciava que Jéssica Silva tinha sofrido uma lesão no tendão de Aquiles ao serviço da Seleção feminina, na primeira jornada da Algarve Cup, sendo baixa certa para os primeiros jogos de qualificação para o Euro2021, que estavam previstos para abril, bem como para o resto da temporada no Lyon. E cerca de uma semana depois, o futebol parou devido à pandemia da COVID-19.
"Não querendo ser egoísta, até porque esta pandemia afetou-nos a todos, a verdade é que acabei por não perder nenhum jogo por causa da lesão. O que aconteceu foi grave e mexeu comigo no início, mas logo no próprio dia já estava focada em recuperar e em regressar aos relvados o mais depressa possível. Logo a seguir aconteceu isto da COVID-19 e os jogos que estava previsto falhar foram suspensos, por isso a nível anímico acabou por não custar tanto este processo de recuperação", admite a extremo.
A internacional portuguesa conta estar apta "em setembro", na esperança de ainda poder ajudar a Seleção no arranque da qualificação para o Europeu (adiado para 2022) - está previsto que a equipa das quinas regresse a 18 de setembro, jogando fora com a Finlândia, e que, em 22 do mesmo mês, visite a Escócia.
"Espero poder jogar nessa altura, mas o mais importante é sentir-me bem e recuperada, porque não quero ficar com mazelas. Além disso, ainda vou ter de recuperar os índices físicos, porque foi um longo processo de recuperação. Se o selecionador e as equipas médicas acharem que estou pronta para jogar, isso será depois uma decisão deles, mas o mais importante é eu sentir-me bem", indica.
A fase final da Champions, essa sim, já foi colocada de parte. "Claro que fico um bocadinho triste por não poder dar o meu contributo, mas sinto que já deixei a minha marca durante esta Champions [n.d.r. marcou nos oitavos de final contra o Fortuna Hjørring], e vou estar a torcer de fora pela minha equipa. O futebol é assim mesmo. Não vou estar nesta, mas estarei na próxima", garante.
Jéssica Silva chegou ao topo do futebol mundial, em termos de clubes, mas sente que ainda há um caminho a percorrer. "Quero deixar a minha marca no futebol mundial", ambiciona a extremo, de 25 anos, que acredita que a sua transferência para um clube tão importante "é o reconhecimento da qualidade da jogadora portuguesa e do trabalho que está a ser feito."
"Não só no meu caso. Temos a Cláudia Neto no Wolfsburgo, a Matilde Fidalgo no Manchester City... É importante haver uma sustentabilidade no futebol. A mensagem que tento passar às outras atletas é para serem ambiciosas e trabalharem muito, mais cedo ou mais tarde as coisas acabam por acontecer. Tenho a certeza que existirão mais portuguesas em grandes clubes europeus", garante.
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