O Estádio da Luz como cenário para jogar era algo impensável há duas semanas para Sadaf Sharifzada e as colegas das seleções jovens do Afeganistão, mas este sábado provaram que o futebol pode ser uma arma contra a intolerância.
Quando o sonho de jogar se tornou um pesadelo em Cabul, Portugal tornou-se um novo começo para 26 meninas das seleções jovens de futebol feminino do Afeganistão, que fugiram do país perante o regresso dos talibãs ao poder. Agora, o adversário era uma equipa das camadas jovens do Benfica, formada por jogadoras sub-15 e sub-16, num treino conjunto em que o resultado não era o mais importante, mas em que cada golo afegão era uma festa.
Com um olhar seguro e falando tão depressa como se ainda estivesse em fuga do seu país, a jovem de 15 anos confessou à Lusa a revolta por ver o regime talibã voltar ao poder e repor restrições à liberdade das mulheres, para quem jogar futebol pode ser uma ofensa que lhes custe a vida. No discurso sobressai a contradição de sentimentos: a alegria de escapar a um futuro sombrio e a preocupação com as famílias que ficaram para trás.
“Vim com o meu irmão, a minha irmã e o meu pai, mas o meu irmão mais pequeno e a minha mãe ainda estão no Afeganistão. Estou muito preocupada com eles. A situação está a piorar de dia para dia. É inacreditável, tudo pode acontecer. Devíamos ter o direito de viver como estas raparigas aqui. Agora não posso fazer nada, mas vou tentar mostrar no futuro que sou poderosa”, disse, em jeito de desafio, sublinhando: “[Os talibãs] não são humanos”.
Chegaram a Lisboa no dia 19 de setembro, na sequência de uma fuga de mais de 6.000 quilómetros e depois de semanas de medo, passadas em esconderijos, tentando ludibriar adversários muito mais difíceis do que aqueles que costumam ter dentro das quatro linhas. E quando o governo afegão colapsou, Sadaf ainda pensou que tudo não passasse de uma brincadeira.
“No dia em que os talibãs vieram, eu estava na escola e as outras miúdas disseram ‘Vamos para casa, chegaram os talibãs’. Eu gozei com isso, disse para não ficarem preocupadas e que era só uma piada, mas quando cheguei a casa e vi na televisão… Meu Deus, foi tudo destruído num só dia”, recordou, enquanto as colegas - equipadas com camisolas vermelhas, ‘leggings’ pretos por baixo dos calções e muitas com lenços na cabeça – procuravam o golo no relvado.
Um novo jogo começa agora em Portugal, “um bom país” para recomeçar, referiu a centrocampista afegã, agradecendo o acolhimento das pessoas e o esforço do governo para trazer também as famílias. Um sentimento partilhado por Parisa Amiri, que, aos 17 anos, assumiu o desejo de se afirmar no futebol e ainda estudar engenharia.
“Estamos muito felizes por vir para Portugal, porque no Afeganistão não nos deixavam jogar futebol e aqui podemos jogar, podemos ter os nossos objetivos aqui, podemos melhorar a nossa vida. São os nossos desejos: jogar futebol e sermos melhores jogadoras no futuro”, garantiu a defesa.
A ameaça talibã de “cortar a cabeça” às mulheres que jogassem futebol ainda ecoa na memória de Parisa. “Não é correto o que estão a fazer. Nós temos direito a estudar e a jogar futebol”, frisou, com as lágrimas ainda a pairar no olhar, ao lembrar os dias anteriores à fuga do país: “Antes de escapar estávamos escondidas com as nossas famílias, uma mochila, duas peças de roupa…”
No banco de suplentes, as colegas de equipa trocam sorrisos, conversam e vão aplaudindo algumas jogadas. De pé e a levar o jogo mais a sério, Farkhunda Muhtaj vai dando indicações de forma quase contínua para dentro de campo e fala com as jogadoras sentadas à sua retaguarda.
A capitã da seleção afegã de futebol feminino, de 23 anos, vive no Canadá, mas veio por estes dias até Lisboa para ajudar na integração destas jovens, para quem já era uma referência e destacou a “oportunidade de uma vida” que encontraram em Portugal: “Elas agora vão treinar em Portugal, vão ter uma educação, já adoram a cidade e o país e vão impactar de forma positiva a sociedade portuguesa”, assegurou.
“No Afeganistão, jogar futebol vai contra as normas sociais e, por isso, muitas mulheres não são bem vistas quando competem em desportos, mas o futebol é a sua identidade, a sua paixão e elas estão determinadas. Poderem continuar a jogar e terem um novo capítulo na sua vida é uma excelente oportunidade para elas e vão superar-se”.
Além do jogo no relvado sintético ao lado do Estádio da Luz, as jovens afegãs receberam também um conjunto de ofertas do Benfica, entre camisolas, chuteiras e cadernos. A distribuir os presentes estiveram as jogadoras ‘encarnadas’ e o presidente da Fundação Benfica, Carlos Móia, que enalteceu a necessidade de acolher da melhor maneira estas jovens.
“É um prazer receber gente que passou e que está a passar pelo problema interno com os talibãs. É o nosso papel, é o mínimo que podemos fazer: receber as pessoas. E nós, portugueses, sabemos receber”, vincou, sem deixar de reforçar: “Espero que fiquem em Portugal. Temos de saber acolher e acompanhar”.
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