Passaram duas semanas desde o desaparecimento de Emiliano Sala, enquanto viajava para o seu novo clube, e muito continua por responder. No dia em que as autoridades britânicas recuperaram o corpo encontrado no avião, submerso no Canal da Mancha, onde viajavam o jogador argentino e o seu piloto - o corpo foi transportado para Inglaterra para o processo de identificação - recorde tudo o que aconteceu até ao momento.
A tragédia
No dia 21 de janeiro, o avião que transportava Emiliano Sala de Nantes, França, para Cardiff, no País de Gales, desapareceu dos radares quando atravessava o Canal da Mancha. Com cerca de uma hora de voo, o piloto pediu ao controlo de tráfego aéreo para reduzir a altitude de cerca de 1500 metros para 700 metros. Mas pouco tempo depois, a guarda costeira de Guernsey foi alertada de que o monomotor Piper PA-46-310P Malibu tinha desaparecido dos radares numa região próxima do farol de Casquets, e nunca mais estabeleceu contacto.
Como tudo começou
A boa temporada realizada no Nantes - levava já 12 golos na Ligue 1 - levou o Cardiff City a recrutar Emiliano Sala, naquela que foi a contratação mais cara da história do clube galês (cerca de 17 milhões de euros), oficializada a 19 de janeiro.
Na hora de planear a viagem para o novo clube, Sala decidiu ele próprio marcar o voo, recusando a oferta de transporte do Cardiff. Nesse sentido, acabou por ser Jack McKay, jogador do clube galês e filho do empresário argentino, William McKay, a tratar de toda a viagem - McKay foi o empresário que intermediou a transferência de Sala para a Premier League. O agente revelou aos media britânicos que tinha entrado em contacto com um piloto privado, David Henderson, com quem viajou com muitos dos seus jogadores, "por toda a Europa inúmeras vezes".
Só que Henderson recusou fazer a viagem porque não se encontrava em Nantes "há mais de um ano", conforme explicou ao jornal 'Ouest-France'. O substituto acabou por ser Dave Ibbotson, de 60 anos, cuja licença de piloto não o permitia conduzir aeronaves com passageiros pagantes, segundo revelou o 'The Telegraph'. Por isso mesmo o nome de David Henderson foi registado na sala de embarque como sendo o piloto do avião Piper PA-46-310P Malibu, mas quem realmente pilotava era Ibbotson.
A BBC divulgou recentemente a troca de mensagens de Whatsapp entre Emiliano Sala e Jack McKay, o jogador do Cardiff que tratou do voo.
Sexta-feira, 18 de janeiro
19h43 - Jack McKay: "O meu pai disse-me que vais a casa amanhã. Posso arranjar um avião para te levar diretamente a Nantes e regressar segunda-feira, à hora que te der mais jeito, para que possas chegar e treinar na terça-feira."
19h51 - Emiliano Sala: "Ah, isso é fantástico. Estava agora mesmo a ver se havia voos para chegar a Nantes de manhã."
19h56 - Jack McKay: "Posso arranjar um avião que iria diretamente a Nantes."
19h56 - Emiliano Sala: "Quanto custa?"
19h56 - Jack McKay: "Nada. Se me ajudares a marcar golos não é nada."
19h56 - Emiliano Sala: "Ah, ah, ah, com muito gosto."
20h00 - Emiliano Sala: "Vamos marcar muitos golos."
20h01 - Emiliano Sala: "Quero ir amanhã a Nantes, por volta das 11 da manhã, e regressar a Cardiff segunda-feira à noite, por volta das 21h00, se for possível."
20h05 - Jack McKay: "Tudo bem. Envio uma mensagem quando estiver tudo ok."
Domingo, 20 de janeiro
17h00 - Jack McKay: "Olá, é possível regressares na segunda-feira por volta das 19h00? É que o piloto ainda tem de ir para casa, no norte, depois de chegar a Cardiff."
17h01: Emiliano Sala: "Olá, seria possível às 19h30."
17h03 - Jack McKay: "Sim, essa hora é boa."
17h05: Emiliano Sala: "[foto da bagagem] Podes perguntar se posso levar isto tudo no avião?"
17h06 - Jack McKay: "Sim, claro."
17h07: Emiliano Sala: "Mas isto vai caber no avião?"
17h06 - Jack McKay: "Sim, há espaço no avião para a tua bagagem."
17h12: Emiliano Sala: "OK"
Segunda-feira, 21 de janeiro
16h16 - Jack McKay: "Vou telefonar-te daqui a pouco."
16h23 - Jack McKay: "É a mesma empresa"
16h23 - Emiliano Sala: "OK. Obrigado"
"Parece que está a cair aos pedaços"
No último contacto que fez antes de embarcar, via WhatsApp, Emiliano Sala enviou uma série de áudios para alguns amigos, onde mostrava a sua preocupação com o estado do avião.
"Olá irmãos, como estão, malucos? (...) Bem, estou aqui em cima já no avião, que parece que está a cair aos pedaços. Se dentro de uma hora e meia não tiverem novidades minhas, não sei se vão mandar alguém para procurar-me. Que medo que tenho. Amanhã à tarde já começo a treinar com a nova equipa, vamos ver o que se vai passar aqui", pode ler-se na mensagem divulgada pelo jornal 'Marca'.
Também foi revelado que o piloto Dave Ibbotson teve deabortar três tentativas de descolagem e brincou com os amigos no Facebook dizendo que o avião estava "um pouco enferrujado" nos dias que antecederam o voo.
A aeronave, construída em 1984, está registada nos Estados Unidos da América e não em Inglaterra, através de uma empresa com sede em Norfolk. A empresa Southern Aircraft Consultancy cobra aos proprietários cerca de 575 euros por ano para registar as aeronaves na Autoridade Federal de Aviação, o que significa que é mais difícil para os proprietários serem identificados. Há três anos, o avião Piper PA-46 Malibu, que pode transportar seis passageiros, foi entregue ao Reino Unido, desde Espanha, pelo piloto David Henderson.
Em declarações ao 'The Telegraph', especialistas da aviação dizem que a aeronave monomotor não deveria ter arriscado o voo naquelas condições atmosféricas, com a formação de gelo. "Já é uma viagem bastante arriscada para se fazer numa aeronave monomotor, especialmente no inverno e mais ainda à noite. Também há problemas de congelamento. É estranho voar por cima da água com um só motor durante uma noite de inverno, porque se o motor falha, o avião cai na água", afirmou o ex-piloto Alastair Rosenschein.
Em sentido inverso, o instituto de meteorologia britânico garantiu à BBC que as condições climatéricas em que o avião viajou não eram adversas. "Havia alguma chuva mas nada muito intenso. E a velocidade do vento também não era má, entre 25 a 30 quilómetros por hora", explicou.
Informações contraditórias
Se por um lado o Cardiff deu conta que Sala recusou o transporte do clube e preferiu deslocar-se pelos próprios meios, há quem garanta que o jogador não queria viajar no Piper PA-46 Malibu. Maximiliano Duarte, amigo de Sala, revelou à 'America Noticias' que o futebolista "não quis entrar naquele avião" e "foi obrigado" a viajar no mesmo, apontando o dedo ao representante do jogador, William McKay.
"Há uma grande verdade por detrás de tudo isto e há um culpado. Porque Emiliano nunca decidiu viajar naquela avioneta. São obrigações que existem, que como jogador profissional tem de aceitar", referiu Maximiliano Duarte, acrescentando que recomendou o amigo a não viajar, visto que não estavam reunidas as condições de segurança necessárias.
Como se processaram as buscas?
A primeira ronda de buscas foi iniciada na noite de 21 de janeiro pelas autoridades britânicas, com especial foco pela Polícia de Guernsey, ilha localizada na parte britânica do Canal da Mancha. Na altura, o chefe de operações da 'Channel Island Air Search', John Fitzgerald, afirmou à imprensa inglesa que existiam poucas possibilidades de algum dos ocupantes da aeronave estar vivo.
Três dias depois, a polícia de Guernsey decidiu sair de cena, após 24 horas de buscas continuas, com "80 horas de voo divididas entre três aviões e cinco helicópteros, assim como dois botes salva-vidas e navios". "Revimos toda a informação que nos foi disponibilizada e tomamos a decisão difícil de terminar as buscas. A possibilidade de sobrevivência é, nesta altura, extremamente remota", pode ler-se num comunicado publicado nas redes sociais pela polícia de Guernsey. Durante esse período, as equipas de resgate fizeram buscas em cerca de 1 700 m2, em terra e mar, junto às ilhas do Canal, onde o avião terá perdido o contacto.
A segunda ronda de buscas, que encontrou os destroços do avião, começou no dia 3 de fevereiro e esteve a cargo da Blue Water Recoveries, uma empresa especializada contratada pela família do jogador e com a ajuda de alguns donativos. David Mearns, especialista em buscas subaquáticas, explicou que a sua equipa, formada por sete pessoas, apoiadas pelo navio FPV Morven, iria trabalhar em estreita colaboração com a Agência de investigação a acidentes aéreos do Reino Unido (AAIB), que também decidiu efetuar buscas subaquáticas, depois de terem sido encontrados numa praia de França, perto de Surtainville, dois assentos de avião.
Nesse domingo à noite, a AAIB anunciou ter encontrado o avião onde seguia Emiliano Sala, no fundo do Canal da Mancha. Os destroços foram encontrados a 67 metros de profundidade e estão dispersos por várias zonas, sendo que as únicas imagens existentes foram obtidas através de uma câmara remota.
Segundo o comunicado da Agência de Investigação de Acidentes Aéreos, as imagens captadas em vídeo revelam que um corpo estará no meio dos destroços do Piper PA-46-310P Malibu. "Tragicamente, no vídeo recolhido pelo ROV [veículo submarino de controlo remoto], um dos ocupantes é visível entre os destroços. A AAIB está agora a considerar os próximos passos, em colaboração com os familiares do piloto e do passageiro e a polícia", informa a nota enviada pela AAIB, sem dar ainda informações sobre a identidade do corpo.
Esta quinta-feira, dia 7, a AAIB anunciou que conseguiu recuperar "com êxito o corpo visto previamente nos destroços" do pequeno avião, apesar das "condições adversas". "A operação correu com a maior dignidade possível, e as famílias foram informadas de todo o processo", acrescentou a agência.
Com as previsões meteorológicas a piorarem nos próximos dias, as autoridades decidiram encerrar a operação de resgate. Cabe agora aos médicos legistas e à polícia determinar a identidade do cadáver. A AAIB informou que foi impossível tirar o avião do fundo do Canal da Mancha, mas que as imagens serão usadas na investigação. Um relatório preliminar será divulgado daqui a duas semanas.
O que acontece ao dinheiro da transferência?
Emiliano Sala tinha sido contratado pelo Cardiff ao Nantes por um valor histórico: 17 milhões de euros, a transferência mais cara do clube da Premier League. Ainda as autoridades britânicas estavam à procura do avião desaparecido e já se adivinhava uma batalha judicial, entre Nantes, Bordéus (que detinha uma percentagem do passe do avançado de 28 anos) e o Cardiff.
Nesse sentido, o pagamento da primeira parcela da transferência, que devia ter acontecido dia 21 de janeiro, no valor de seis milhões de euros, não se consumou. A imprensa inglesa escreve que o emblema galês não iria pagar pela transferência até estar totalmente esclarecido acerca do acidente. Até porque o clube da Premier League tinha-se oferecido para tratar da viagem mas o jogador recusou.
Mehmet Dalman, presidente do Cardiff, fez questão de esclarecer que nunca disse que o clube não iria pagar ao Nantes. "Nunca dissemos que não o íamos fazer. Vamos pagar, mas quando chegar o momento certo para isso", acrescentou. Já o Nantes, na voz de Waldemar Kita, presidente do clube, disse que poderia recorrer aos tribunais para reclamar os seus direitos.
"Não quero falar de dinheiro, numa altura em que estamos a viver esta situação dramática. Agora não vamos reclamar nada mas logo veremos o que fazer", disse o dirigente à imprensa francesa, a 26 de janeiro.
Mas esta quarta-feira o emblema francês terá dado instruções ao seu departamento jurídico para começar a diligências, de modo a receber os 17 milhões de euros. Caso o clube galês não cumpra com o contratualizado, o FC Nantes levará o caso à FIFA. A rádio BBC, no País de Gales, noticia que o clube francês fixou um prazo de dez dias para os executivos do Cardiff pagarem os primeiros cinco milhões de euros antes de avançar com uma ação legal.
Outro emblema francês interessado na questão é o Bordéus. Os 'girondinos' reclamam 50 por cento do valor da transferência, uma vez que detinham metade do passe do avançado de 28 anos, de acordo com o jornal 'Presse Océan'. O Bordéus queria receber já a metade dos seis milhões, referentes a primeira tranche da transferência de Sala do Nantes para o Cardiff. Ao todo, o clube terá direito a 8,5 milhões de euros.
A homenagem sentida do Nantes. E do Cardiff
O Nantes-Saint-Etiénne, da 22.ª jornada da liga francesa, realizado no passado dia 30 de janeiro, ficou marcada pela homenagem sentida a Emiliano Sala. A primeira partida dos ‘canários’ desde o desaparecimento do avançado foi interrompida aos nove minutos - numa referência ao número que Sala utilizou na camisola nas últimas três épocas ao serviço do emblema gaulês, antes de acertar a transferência para os galeses do Cardiff – para que os presentes o pudessem homenagear.
Durante o minuto de interrupção, adeptos, jogadores, equipas técnicas das duas equipas e o árbitro aplaudiram o futebolista, sendo que o treinador do Nantes, Vahid Halilhodzic, estava visivelmente emocionado e com lágrimas nos olhos. De resto, todos os atletas do Nantes envergaram o nome 'Sala’ na camisola, depois de já terem utilizado camisolas com uma imagem do jogador durante o aquecimento.
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