
António Palavra e o Luís Vieira já ultrapassaram a barreira dos 50 anos. Mas a idade é só mesmo um número que não trava a sua capacidade de superação, companheirismo e paixão pelo desporto. Têm 52 e 51 anos, respetivamente, e conheceram-se nas águas de um rio português.
Desde esse primeiro encontro, a canoagem uniu-os numa amizade com uma missão comum: desafiar os limites. No verão passado tornaram-se nos primeiros portugueses a participar — e completar — a Yukon 1000 a prova mais exigente do mundo na modalidade. Agora preparam-se para, neste domingo, abraçar mais uma aventura noutra prova épica: a Loire 725, em França. São 725 km a percorrer em canoa, em autonomia parcial, numa das grandes maratonas fluviais do planeta.
A Loire 725, a "maior prova da Europa"
A Loire 725 é, pois, o desafio que se segue. E as expetativas são altas, para uma prova que é bastante dura. "Esperamos remar cerca de 16 horas só no primeiro dia, por isso é fundamental que o barco seja estável, diferente de um barco puramente de competição em linha", começa por nos explicar Luís Vieira. "O barco que vamos usar é um protótipo que ajudámos a desenvolver em parceria com a eliokayaks, uma marca portuguesa já muito reconhecida internacionalmente", prossegue.
"O objetivo é mesmo esse: dar o nosso máximo para chegar o mais longe possível na maior prova da Europa"
O objetivo é andar entre os da frente, embora tenham a noção de que vencer a prova não será nada fácil. "Gostaríamos muito de ganhar, claro, mas sabemos que para isso tudo tem de correr bem e temos de estar mais preparados que os outros", reconhece o canoísta. "Vamos entrar nesta prova focados, conscientes dos desafios, mas com a vontade de ir o mais longe possível. O objetivo é mesmo esse: dar o nosso máximo para chegar o mais longe possível na maior prova da Europa", sublinha.
A preparação, essa, não foi fácil. António e Luís tiveram de treinar maioritariamente separados. Ainda assim, conseguiram juntar-se na Estónia para fazer parte dessa preparação. "Encontrámo-nos lá, treinámos juntos um dia e depois competimos numa prova. Foi uma experiência fantástica. O barco portou-se muito bem, ajudou-nos a alcançar um excelente desempenho: ficámos no top 15 entre 3000 atletas e em 4.º lugar na nossa categoria. Foi também muito útil para testar vários pormenores técnicos", resume Luís Vieira.
A aventura inesquecível no Yukon 1000
Há quase um ano, António Palavra e o Luís Vieira embarcaram naquela que foi, dizem, a sua maior aventura até à data. E escreveram um pedaço de história da canoagem portuguesa na prova de canoagem mais longa do mundo — com mil milhas percorridas em total autonomia, durante cerca de 7 dias
"O Yukon 1000 é a prova que mais significado teve para nós, não só pela sua dimensão física, mas também pela complexidade da preparação que exigiu", lembra Luís. "O rio tem poucos pontos de acesso — cinco ou seis no máximo — e sabíamos que, se algo corresse mal, teríamos de remar até a esses locais para pedir ajuda ou esperar vários dias no meio da natureza. Uma experiência completamente diferente de tudo o que tínhamos feito até então: estar tão isolados, dependentes apenas de nós próprios", esclarece.

Os desafios que aí enfrentaram foram muitos: a gestão da fadiga extrema ou a privação de sono por remarem não só de dia, mas também parte da noite. "Passávamos cerca de 18 horas dentro do caiaque, e ainda assim era preciso arranjar energia para montar o campo, cozinhar e descansar o melhor possível", recorda. "Do ponto de vista físico, estávamos preparados e tivemos acompanhamento especializado, mas foi esta luta constante contra o cansaço e a exaustão mental que mais nos marcou.".
António Palavra concorda. "Para mim, o pior momento era o final de cada dia. Saía muitas vezes sem energia, com frio, e tínhamos de montar todo o acampamento. O melhor momento era quando me conseguia enfiar no saco-cama e adormecer rápido. Mas depois vinha o pânico quando o despertador tocava, pois tínhamos de nos vestir, desmontar tudo e avançar, sem perder tempo — cada minuto conta numa prova destas", conta.
"Já estávamos muito cansados quando o GPS deixou de funcionar. Acabámos por navegar sem saber exatamente onde estávamos."
"O momento mais crítico foi no final do segundo dia. Já estávamos muito cansados quando o GPS, do qual eu era responsável, deixou de funcionar. Acabámos por navegar sem saber exatamente onde estávamos. Isso levou-nos a andar por um canal com corrente mais lenta e o dia estava a acabar", relembra.
No fim, o resultado foi notável - um 3.º lugar - e a satisfação foi enorme. "Quando olhámos um para o outro, sentimos a conquista, porque não há público, não há multidão, apenas nós e o diretor da prova. É uma emoção partilhada, silenciosa, que vem de dentro", explica Luís Vieira. " É a sensação de missão cumprida — uma emoção intensa, mas discreta. Para mim, o dia mais emotivo foi o anterior ao final, quando fizemos muitos quilómetros e comecei a sentir que estava a acabar. Quando cortámos a meta, a emoção já estava um pouco diluída. Na minha cabeça, a prova já tinha terminado", acrescenta António palavra.
Mas, afinal, como tudo começou?
António Palavra começou a remar aos 14 anos. Antes disso, praticava vela. Curiosamente, a canoagem não foi amor à primeira vista. "Experimentei porque ofereciam lanche, então nem precisava de ir a casa. A Federação organizou uma formação na minha zona e, entre estarmos na água o dia todo e não termos de sair para comer, acabámos por nos deixar cativar. Aos poucos, fui-me apaixonando pela modalidade", conta-nos. "Comecei por causa do lanche, é verdade… mas fiquei por tudo o resto".
Luís Vieira é natural de Torres Novas, onde passa o rio Almonda e onde havia um projeto da Direção-Geral de Desportos que levava um molde de caiaque aos clubes de natação. "O meu irmão, mais velho do que eu, decidiu construir uma dessas canoas em casa. E conseguiu. Começámos a remar no rio Almonda, ainda muito poluído na altura, mas isso não nos impedia de nos divertirmos. Tínhamos também feito as nossas próprias pagaias. Tinha cerca de 12 anos e fui muito feliz nesses primeiros momentos", resume.
Conheceram-se depois nos anos 90, em contexto de treino em Águas Bravas, no rio Paiva. Cada um treinava de forma independente, mas partilhavam o gosto comum pela adrenalina da água mexida. Um amigo em comum — colega de Luís na escola e meu companheiro de treino de António — acabou por os apresentar.

"A ideia de formar uma dupla surgiu naturalmente, mas concretizou-se por necessidade no contexto do Yukon 1000. Já remávamos juntos, conhecíamo-nos bem e partilhávamos a mesma mentalidade, tanto no treino como na vida", explicam-nos. "Numa prova como o Yukon, em que o cansaço e a pressão são extremos, a confiança e o conhecimento mútuo são essenciais. Já tínhamos vivido muitas experiências intensas, em vários pontos do mundo, e essa base ajudou-nos a enfrentar o desafio — e a superá-lo em conjunto."
A idade que é só mesmo um número
Tanto António como o Luís já passaram dos 50 anos. Mas o ‘peso’ da idade é algo a que não ligam verdadeiramente.
"Na minha cabeça, quando treino com os mais jovens, não sinto que tenha 52 anos. Obviamente que noto que o corpo já não responde da mesma forma. Tenho de treinar de forma mais cuidada, dormir melhor, alimentar-me melhor. Quando se é jovem, pode-se treinar menos e o impacto do treino é maior — essa parte gostava de manter. Mas, quando estou na água, focado na remada e no plano da prova, não sinto a idade a pesar. O segredo é mesmo estar presente no momento e concentrado no que temos de fazer", confidencia-nos Luís Vieira.
"A idade acaba por influenciar menos do que se pensa, pelo menos neste tipo de provas. Embora, claro que, quando treino com os jovens no clube, sinto alguma frustração porque, com o passar do tempo, já não consigo acompanhar o ritmo deles", reconhece.
No dia-a-dia, a cabeça está sempre com 14 anos!
António aponta, por seu lado, a importância da experiência que a idade confere. "Os anos dedicados a este tipo de desafios e o espírito de sacrifício são uma enorme vantagem", frisa, antes de atirar: "No dia-a-dia, a cabeça está sempre com 14 anos!".
Fundamentais são também os apoios que vão encontrando.
"A sponsorização que temos recebido, especialmente da Heróis Betano, tem sido extraordinária e tem-nos dado a tranquilidade necessária para focar no que realmente importa. São parceiros incríveis e têm estado ao nosso lado em tudo o que precisamos. Estas provas têm custos elevados, sobretudo nas deslocações, mas o que muitas vezes não se vê é o custo da preparação. O investimento não é apenas para o dia da prova, mas para todo o período de preparação, que pode durar entre 12 e 16 semanas", lembra Luís Vieira.
"Independentemente do que o futuro nos reserve, é fundamental que iniciativas como a Heróis Betano continuem a apoiar o desporto amador em Portugal", conclui.
E António termina: "Esperamos retribuir esse apoio com bons resultados e prémios. Sentimos, sem dúvida, o peso da responsabilidade de representar esta camisola."

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