Wolkswagen MK2 de 1989 a postos, material solidário carregado, derradeiros preparativos ultimados, despedidas feitas. Catherine Martins e o companheiro Gonçalo Ferreira seriam, a 17 de fevereiro, uma das mais de 50 duplas portuguesas (a juntar a muitas mais vindas de Espanha) prontas para arrancarem numa aventura única: a edição 2021 do UniRaid. Por culpa da COVID-19 o evento foi adiado para outubro. Mas o propósito continua de pé, para aquela que será já a sua 10ª edição: atravessar Marrocos e rumar às aldeias mais desfavorecidas, tentando oferecer um sorriso a quem mais dele precisa.

"Penso que vai ser uma aventura incrível tanto em termos profissionais, como pessoais. Será uma experiência fantástica. Pelo que me têm dito, será uma experiência que nos vai marcar para sempre e que vamos querer repetir. Vamos trazer bastantes memórias e saber que, por instantes, conseguimos fazer o bem e ajudar pessoas que não têm o que nós temos. E acho que isso é o mais importante para nós", confessa ao SAPO Desporto Catherine, estudante de Serviço Social na Universidade de Trás os Montes e Alto Douro, que admite que o adiamento ditado pela pandemia que afeta o mundo até teve o seu lado positivo.

"Por causa da COVID-19, a proximidade com as pessoas seria sempre outra, quer com os restantes participantes, quer com a população. E o que nos dizem é que a proximidade com as pessoas de lá é inevitável, porque as pessoas sentem essa necessidade e querem estar perto de nós. Estávamos a sentir pena de não irmos poder sentir tanto essa ligação que tínhamos visto e que nos tinham contado de edições anteriores. O adiar do raid poderá ajudar a que possamos sentir mais essa ligação. Temos de aguardar e esperamos que tudo melhore até lá", sublinha.

Aventura, Experiência, Solidariedade e Formação. Os quatro pilares que estão na base do UniRaid

Mas o que é, afinal, o UniRaid? Trata-se de uma grande aventura humanitária de solidariedade, para estudantes com espírito empreendedor, entre os 18 e 28 anos. É uma viagem de 9 dias e cerca de 5 mil quilómetros pelo deserto marroquino em carros com mais de 20 anos, condição obrigatórias para se poder participar. Jovens, carros antigos e material solidário para distribuir a quem mais necessita. São estas, então, as premissas do evento.

Não se trata, pois, de uma prova de velocidade ou de um simples rali. A performance dos participantes é avaliada em cada etapa através da gestão de recursos face a dificuldades. O UniRaid é uma viagem-aventura em que os participantes devem completar as etapas navegando com um 'road book', sem recurso a GPS, ultrapassando todo o tipo de obstáculos, desafios e testes, com o objetivo de atravessar Marrocos de norte a sul e entregar um mínimo de 40 kg de material de solidariedade em aldeias remotas em pleno deserto.

Miguel Agostinho, representante da UniRaid Portugal, explica-nos melhor o conceito. "O UniRaid é um raid formativo e solidário, onde a componente humanitária é bastante elevada. Vamos levar material solidário a zonas remotas, muito a sul de Marrocos. Visa a parte humanitária, mas também formativa. O grande objetivo é levarmos miúdos que estão a estudar, dos 18 aos 28 anos, e tirá-los da sua zona de conforto, colocando-os no deserto com um carro velho, onde têm a certeza que vão ter problemas", sublinha.

A ideia passa, então, por colocar os jovens perante o desafio de enfrentar o deserto com um carro sem tração às quatro rodas, só com tração às duas rodas, velho, com uma mecânica gasta. E os participantes vão tendo de ultrapassar todos esses desafios à medida que vão apreendendo toda uma série de valores, como o espírito de equipa, o trabalho em organização, a capacidade de liderança, etc. "São valores que aprendem confrontando-se com estas situações, naqueles locais, e sem eles não conseguirão ultrapassar esses desafios", acrescenta Miguel Agostinho.

"Temos quatro pilares: Aventura, Experiência, Solidariedade e Formação", remata, fazendo depois questão de frisar que o evento não tem - nem pretende vir a ter - um patrocinador.

"Não queremos fazer disto nada comercial. É apenas por amor a poder ensinar, ajudar, mostrar certas e determinadas coisas"

"Não temos qualquer patrocinador, não estamos ligados a ninguém, somos uma instituição sem fins lucrativos, apesar de termos até já tido algumas solicitações a esse nível de divulgação. Não queremos fazer disto nada comercial. É apenas por amor a poder ensinar, ajudar, mostrar certas e determinadas coisas e levar com que os pais dos jovens que participam nos liguem, depois, a agradecer, porque os filhos regressam, de facto, diferentes. E isso é gratificante", frisa.

"A única coisa que me poderia levar a aceitar um patrocínio ligado a uma empresa seria para fazer uma saída de Portugal ao nível do que é feito no Dakar, com um palanque, porque os jovens participantes iam adorar, e iam sentir-se 'inchados'", diz Miguel Agostinho, meio a brincar, meio a sério, afirmando ser esta "a menina dos seus olhos".

Como tudo começou?

A edição de 2021, entretanto adiada para outubro devido à COVID-19, será já então a 10ª do evento. É um projeto ibérico, que nasceu da ideia de um colega espanhol de Miguel Agostinho, com base na história do lendário explorador da Antártida Ernest Shackleton, que ficou preso no gelo e teve de levar toda a tripulação de volta à Europa. Demorou 4 meses, mas conseguiu chegar de volta a Inglaterra sem perder ninguém, baseando-se numa série de valores que, agora, estão também na génese do UniRaid.

“Tentou-se conjugar isso com um carro velho, poucas condições, pelo deserto, em locais completamente inóspitos, utilizando apenas a capacidade humana em superar desafios”, explica o responsável português do evento.

“Para participar é preciso força de vontade, para começar, mas é preciso ser estudante, arranjar um carro velho, com mais de 20 anos, e ter uma capacidade muito grande de preparar tudo, arranjar patrocínios, fazer um ‘business plan’ de tudo o que vão precisar. E aqui começa logo a formação. Têm de preparar um plano para poderem participar, para levar às várias empresas que os possam ajudar a pagar os custos da inscrição, participação, preparação do carro, etc.”, acrescenta.

Uma preparação que, em tempos de pandemia, admite Catherine Martins, se torna mais complicado, mas não tem corrido mal. "A angariação de patrocínios até tem corrido bem, apesar de algumas dificuldades  de início, porque estamos neste projeto numa altura de pandemia e ouvimos muitos nãos com a desculpa de que 'não sabemos o dia de amanhã. Dou-te o dinheiro hoje e amanhã posso não ter para aquilo que preciso'. Mas, por outro lado tivemos pessoas que nos deram a mão logo, que nos ofereceram dinheiro e bens e continuam a oferecer, dando mais e mais apoio e disponibilizando-se para oferecer outras coisas ou contactarem elas mesmas outras empresas", conta a estudante de Serviço Social.

O espírito de camaradagem e entreajuda é fundamental no UniRaid
O espírito de camaradagem e entreajuda é fundamental no UniRaid O espírito de camaradagem e entreajuda é fundamental no UniRaid créditos: UniRaid

Pedro Magalhães, um 'veterano' nestas andanças, já com três participações no currículo, também falou com o SAPO Desporto sobre a questão da angariação de patrocínios.

"Arranjar patrocínios é sempre difícil, porque temos várias necessidades. A parte monetária, para o carro, o material solidário, e depois até comida, enlatados para comer ao longo do dia. E, claro, para pagar a gasolina, que ainda é bastante combustível para fazer cerca de 5 mil quilómetros. Mas é um processo que passa por contactar muitas empresas e saber ouvir muitos nãos. Chegámos a ter alturas em que tínhamos 300 e-mails enviados e para aí 20 respostas. Foi importante o apoio de entidades que nos são mais próximas, como a nossa Universidade. E as autarquias também acabam por ajudar de alguma forma, como as empresas locais", explica.

Gosto pela aventura, paixão por carros e vontade de ajudar

O que leva, então, tantos jovens a abraçarem um evento tão desafiante como o UniRaid e, muitas vezes, a repetirem a experiência? Pedro Magalhães explica-nos que é um misto de três fatores.

"O que nos leva a arriscar e mesmo a repetir é, primeiro, a aventura. Acho que todas as pessoas que participam têm esse espírito de aventura e de querer ajudar.

"O que nos leva a arriscar e mesmo a repetir é, primeiro, a aventura. Acho que todas as pessoas que participam têm esse espírito de aventura e de querer ajudar. E são amantes do desporto automóvel, claro. No meu caso o que me leva a participar é um pouco isso tudo. Gosto de aventura, gosto de carros e gosto, principalmente, de poder fazer a diferença. E volto por isso mesmo", esclarece.

Pedro participou pela primeira vez na edição de 2018. "Soube do evento um pouco por acaso. Estava a estudar na universidade, estávamos em exames e estava envolvido noutro projeto que também tem uma componente humanitária e demos uma entrevista para uma página que também estava a fazer uma entrevista sobre o UniRaid. Conheci o projeto e de imediato quis participar. Estava com outro colega que também resolveu fazer logo nesse ano uma equipa e nesse ano acabámos por ser 3 equipas só da Universidade de Aveiro", recorda.

Desde então, no seu Nissan Sunny de 89, já lá vão três participações e muitos momentos marcantes. "Era um carro que tinha o motor queimado, foi preciso arranjar o motor, arranjar praticamente tudo o resto para o meter a andar. Mas até tivemos sorte. Uma das equipas que foi connosco no primeiro ano, por exemplo, só conseguiu ir com o terceiro carro que arranjou", lembra.

O Nissan Sunny de 1989 de Pedro Magalhães
O Nissan Sunny de 1989 de Pedro Magalhães O Nissan Sunny de 1989 de Pedro Magalhães créditos: Pedro magalhães

O primeiro ano foi, conta Pedro Magalhães, inesquecível. "Tínhamos a noção do relato de outros que já tinham feito o raid antes, mas acaba sempre por ser surpreendente, algo que não se consegue transmitir em fotos ou vídeos. Desde o início, a viagem é marcante. Mal passamos de um continente para o outro é transformador. Tudo é diferente. As pessoas, os comportamentos, as casas, as paisagens. Os participantes acabam por conhecer o mundo e isso é um dos pilares do UniRaid. Mas o que mais surpreende é quando chegamos ao interior e vemos as condições em que as pessoas a quem vamos dar o material vivem. É aí que entendemos que estamos mesmo a fazer a diferença e que estamos a tornar a vida daquelas crianças um bocadinho melhor. Mas fica, claro, o sentimento de que não estamos a mudar o mundo. Nem de perto nem de longe. Nem sequer o impacto que aquela região merecia. Estamos apenas a dar um pequeno contributo.", salienta.

Já para Catherine Martins é também esta parte solidária a que mais a entusiasma para a sua primeira participação. "Para mim, a parte solidária atrai-me muito. Estou a tirar um curso de Serviço Social e a minha parte é a parte solidária. Para o meu companheiro será mais o rali em si. Ele gosta de carros, de aventura, mas claro que que a parte solidária também o move. Entregar bens a pessoas que precisam, que não têm aquilo que nós temos, bens que provavelmente iriam acabar no lixo...foi por isso que decidimos participar, principalmente para ajudar!", garante.

Para esta edição, a equipa de Cathrine e do companheiro Gonçalo encontrou já um patrocinador de Leiria que lhes vai dar uma série de colchões que a organização vai tentar encaixar nos carros de apoio. São 30 colchões que darão para entregar em certos locais onde fazem bastante falta. "Nem que seja no tejadilho com umas cintas, vamos conseguir levá-los", garante Miguel Agostinho.

"Foi uma grande parceria com uma empresa de Leiria. Conseguimos também roupa com uma jovem que arranjou tecidos e está ela mesmo a fazer roupas para nós levarmos às crianças, temos já brinquedos, peluches, e também muito material escolar, que angariámos na universidade. Mas ainda temos muito tempo para angariar mais coisas", acrescenta Catherine Martins.

De facto, entre o material solidário e humanitário que o UniRaid consegue fazer chegar até essas aldeias mais remotas de Marrocos há um pouco de tudo: material escolar, de papelaria, material de merchandizing de campanhas que já passaram e que em Marrocos acabam por dar sempre jeito, porque estão em perfeitas condições. "É obrigatório levar um mínimo de 40 kg de material solidário, mas todos acabam sempre por levar mais. Há quem leve mais de 100 kg", sublinha Pedro Magalhães

A título de exemplo, nos anos anteriores, os participantes do UniRaid fizeram entrega de fornos solares em áreas desérticas desprovidas de lenha, equiparam uma plantação de palmeiras com sistema de irrigação por gotejamento alimentado a energia solar, criaram e equiparam salas de informática em várias escolas localizadas em áreas remotas do deserto e entregaram cadeiras de rodas para pessoas com mobilidade reduzida, entre vários outros exemplos.

Na sua última participação, em 2020, Pedro Magalhães  e a sua equipa partiram com um projecto um bocadinho diferente. Uma tentativa de tornar o mundo "um pouco mais brilhante". Estudante de Engenharia Eletrónica e Telecomunicações da Universidade de Aveiro, criou o projeto Lampe. A ideia consiste numa lanterna que as crianças de aldeias remotas em Marrocos possam carregar na escola e levar para casa, tanto para terem iluminação durante o caminho a pé, como também para poderem estudar à noite.

E os carros? Há um pouco de tudo...

Mas, num rali, ou num raid como este, por mais importante que seja a vertente humanitária, claro que os carros são fundamentais. E Miguel Agostinho conta-nos que há um pouco de tudo, cumprindo sempre a obrigatoriedade de terem, pelo menos, 20 anos.

"Há um pouco de tudo a nível do tipo de carros. Já encontrámos de tudo. Os carros que nós pretendemos que participem são carros ligeiros de passageiros, têm de ter mais de 20 anos…o objetivo é que o carro seja velho, com uma mecânica gasta, e que nós saibamos que por muita preparação que eles façam, não estão preparados para aquele ambiente. Pretende-se que o próprio carro, por si só, já seja um obstáculo", começa por exemplificar.

Depois, dá alguns exemplos: "Os carros que vão são do mais variado, de gama baixa – Opel Corsa, Citroen AX, Citroen Saxo, Renault Clio, Renault 5, Nissam Micra…até Fiats Panda. Carros pequenos, que não pesam muito, com mecânica simples, em que qualquer chave de parafusos, alicate e arame consegue resolver. O objetivo é esse. Coisas que não tornem demasiado complicadas, porque carros com eletrónica no deserto dão problemas fatais. Já apanhámos também BMWs 316, BMW serie 3 antigo, cortado atrás, Audi A3, já apanhámos uma Citroen C4, de caixa atrás, adaptada, que não é propriamente um carro ligeiro, a diesel, e que como era muito pesado, assim que chegava às dunas e à areia atascava completamente e era um martírio", lembra.

"Tentamos limitar de alguma forma os carros a 1400 de cilindrada, porque há muitos participantes que querem ir para ali como se fosse efetivamente um rali, mas a velocidade ali não conta. Aquilo é um Raid e com muita velocidade chega-se muito depressa, mas chega-se muito depressa a pouco lado, enquanto se forem com companhia e em grupo vão chegar muito mais longe", sublinha.

Catherine Martins e Gonçalo Ferreira preparam o seu Wolkswagen MK2 de 1989 para o UniRaid
Catherine Martins e Gonçalo Ferreira preparam o seu Wolkswagen MK2 de 1989 para o UniRaid Catherine Martins e Gonçalo Ferreira preparam o seu Wolkswagen MK2 de 1989 para o UniRaid créditos: Catherine Martins e Gonçalo Ferreira

"O nosso carro é um Wolkswagen MK2 de 1989, comprado pelo Gonçalo em Ourém. A preparação do carro está a ser feita com precaução, face às exigências do deserto. Arranjámos uma nova ventoinha, por causa do sobreaquecimento, mudámos alguns filtros, estamos a mudar a suspensão. Os pneus também têm de ser outros, mudámos alguns vidros, pusemos as grades em cima. É um processo longo…às vezes estamos a tratar de uma coisa e encontramos outra que tem de ser melhorada", explica Cathrine Martins.

Uma classificação...diferente

Sendo, ainda assim, uma prova de automobilismo, por muito diferente que seja e onde a velocidade acaba por ser o menos importante, há uma classificação. Mas uma classificação, estabelecida pela organização, bem diferente daquela a que estamos habituados a ver noutras provas.

"Temos uma classificação, para que possam sentir que estão também a participar num raid", começa por explicar Miguel Agostinho. "É uma classificação feita por nós com base numa série de parâmetros. O tipo de organização que fazem, perdas de tempo, o tempo que percorrem a fazer as etapas, as falhas. É uma classificação feita por ordem decrescescente, em que vão sendo descontados pontos, por exemplo, se eles saírem da rota do 'roadbook' – porque é tudo sem GPS – e vamos aplicando penalizações. Quem tiver menos penalizações é quem tem melhor classificação".

A parte solidária e humanitária, claro, também conta para essa classificação. "Depois a parte solidária também tem valores. Quem tiver mais material para entregar também é beneficiado e ao longo da prova vai havendo uma série de fatores que também podem beneficiar ou prejudicar em função das próprias atuações deles", conclui.

Momentos que marcam

Mas, claro, o mais importante é mesmo a vertente humanitária. E as reações que se vão obtendo de quem recebe algo que não esperava e que pode fazer a diferença nas suas vidas. Reações bem marcantes, algumas delas gravadas para sempre na memória de quem as presencia. Como aquela que Miguel Agostinho nos contou, de quando um dos participantes entregou uma garrafa de água a uma criança e ela, em troca, tinha um bocado de pão embrulhado na camisola, partiu o pão e deu metade do pão que tinha. "O participante, literalmente e automaticamente, desatou a chorar perante o gesto da criança", recorda Miguel.

"Um dos participantes entregou uma garrafa de água a uma criança e ela, em troca, tinha um bocado de pão embrulhado na camisola, partiu o pão e deu metade do que tinha"

Ou quando o Pedro Magalhães entregou uma bicicleta a um miúdo e este, antes de pegar na bicicleta, lhe deu um abraço. "O Pedro ficou completamente derretido, a namorada desatou a chorar. Nós que estávamos ali a volta começámos a chorar também, com a emoção, enquanto toda a gente batia palmas", lembra Miguel Agostinho.

O Pedro também recordou ao SAPO Desporto esse momento marcante.

"Essa história tem muito significado para nós. Desde o início, a bicicleta era uma bicicleta velha, de família, que decidimos levar, e havia todo um significado. Para aqui não valia nada, ninguém dava valor, e fizemos o esforço de a levar porque achávamos que iria fazer alguém feliz. Mas embora já estivéssemos à espera daquele momento, acabou por me marcar, a mim e a todos os que lá estávamos. Porque aquela criança estava lá no meio de nada, mesmo no meio de nada, e a sua reação foi fantástica. Ela nem queria acreditar. Tem aquela reação do 'Mas isto é mesmo para mim'? E quando transpomos essa realidade para a nossa, que é muito consumista, e pensamos que algo que não tinha qualquer valor cá tem tanto valor cá, é realmente transformador", aponta.

"Temos uma máxima no UniRaid Portugal que é tentar roubar um sorriso a uma criança. E é um desafio que levamos todos os anos"

"Temos uma máxima no UniRaid Portugal que é tentar roubar um sorriso a uma criança. E é o desafio que nós levamos todos os anos. Tentar roubar um sorriso às crianças, porque é muito difícil pôr aquelas crianças a rir. São crianças que riem pouco, onde impera a lei do mais forte, onde o tio bate no sobrinho, o pai bate no filho, o mais velho no mais novo, e as crianças não têm grandes motivações para rir. Eles não vivem, sobrevivem. E quando estamos ali conseguimos transmitir aquelas crianças alguma esperança, não só pelo que lhes levamos, que lhes pode ser útil, mas porque criamos alguma empatia. Fazer sorrir uma criança é das coisas mais gratificantes que temos no UniRaid", remata Miguel Agostinho.

Um nível de participação exponencial e uma edição de 2021 adiada, mas que vai para a frente...e já se pensa na de 2022

À medida que as edições do UniRaid se vão sucedendo, o interesse vai crescendo. A primeira equipa portuguesa participou há cinco anos. No ano seguinte já participaram 5, depois 20 e, no ano passado, participaram 52 só portuguesas (num total de 122 equipas, no geral). A nível de participantes, claro, o dobro, visto que são dois em cada carro. E, para a edição 2021, mesmo com a pandemia da COVID-19, o número cresceu ainda mais, como conta Miguel Agostinho.

Em 2020 foram 52 as equipas portuguesas a participar no UniRaid...apra a edição 2021 o número já supera as 80
Em 2020 foram 52 as equipas portuguesas a participar no UniRaid...apra a edição 2021 o número já supera as 80 Em 2020 foram 52 as equipas portuguesas a participar no UniRaid...apra a edição 2021 o número já supera as 80 créditos: UniRaid

"Este ano, mesmo tendo em conta a COVID, que já nos levou a uma alteração das datas para outubro, já vamos com um nível de inscrição na ordem das 80 equipas, só portuguesas, ou seja, já superámos as inscrições do ano passado. Claro que há ainda pessoas renitentes, preocupadas, mas estamos preparados para avançar, porque queremos ainda mais ir ajudar aquelas pessoas. Porque as pessoas que nos costumam dar lá apoio logístico – mecânicos, pessoas do catering, quem monta os acampamentos - estão, também elas, desde março sem rigorosamente ninguém. Fomos o penúltimo evento que aconteceu em Marrocos no ano passado. Houve  o UniRaid, depois houve uma prova francesa, o '4l Trophy', e depois disso estão completamente parados e precisam de ajuda", sublinha.

A logística, para montar um evento desta dimensão e com estas características, claro, não é fácil. Todos os anos os percursos são diferentes, até para que quem já participou possa ter outro tipo de desafios, e procura-se também evoluir um pouco no grau de dificuldade. Dependendo do número e do tipo de participantes – mais ou menos experientes – criam-se alternativas de percurso para aumentar um pouco as dificuldades.

"Nas primeiras etapas os participantes sentem-se um pouco violentados, porque têm de se confrontar com uma série de dificuldades em que nós não ajudamos rigorosamente nada. Chegam ao final das etapas exaustos, já fora do horário para comer, porque ficaram bloqueados no percurso. E chegam ao final dos primeiros dias a dizer que não foi para aquilo que vieram. Aceitamos as críticas – é propositado – para que eles aprendam a organizar-se, percebem que eles têm as soluções, ajudam-se uns aos outros, conseguem ultrapassar as dificuldades e à terceira etapa já não há ninguém que não chegue a horas de comer, tomar banho e descansar, porque têm todas as essas condições nos acampamentos. Tudo é montado previamente, há uma logística muito grande. E é engraçado ver como de um dia para o outro passam de pessoas frustradas a pessoas agradecidas pelo que estão a aprender e a viver", explica Miguel Agostinho.

O UniRaid aproveita algumas das pistas e percursos usados pelo antigo Rali Dakar - daí ser apelidado por muitos como o 'Dakar dos Estudantes', o que implica seguir rotas que passam muito perto de zonas de conflito, como a fronteira com a Argélia, ou com o Saara Ocidental. Mas está tudo alinhavado com as autoridades locais, garante o organizador.

"Todo o processo de UniRaid começa muito antes. No final de cada raid já estamos a preparar o seguinte. Tudo é programado com muita antecedência, quer a nível de itinerários, quer a nível de locais preconcebidos, de acordo com o que as autoridades combinam connosco. Todas as autorizações são pré-preparadas, mesmo a nível do sul, onde pode existir mais preocupação, pois passamos muito perto da fronteira com a Argélia. As fronteiras têm conhecimento das nossas passagens, até passamos em zonas onde geralmente é proibido passar, mas nós conseguimos uma autorização especial. A segurança é bastante grande. Nos acampamentos, em algumas zonas, temos até alguns militares, temos polícia e temos sempre apoio das autoridades marroquinas ao longo do evento", frisa Miguel Agostinho.

A organização da edição 2021, em plena pandemia, trouxe naturalmente ainda mais condicionantes. "De início começámos por limitar o número de inscritos para metade, mas como adiamos para outubro e, pensando positivo, que as coisas aí estarão melhor em termos de controlo da pandemia, alargámos novamente essas inscrições, embora estejamos preparados para, a partir do momento em que não estejam reunidas as condições para a segurança de todos – participantes, organização e, claro, representantes locais - voltar a adiar", garante Miguel Agostinho. Ainda assim, para fevereiro de 2022 também já está a ser preparada e programada a edição seguinte do UniRaid. "Em outubro vamos fazer um duplo trabalho", acrescenta. A aventura, a paixão e a ajuda humanitária não podem parar...

Um novo projeto, uma nova aventura: UniRaid Europe

E não param mesmo. Até porque para agosto está já previsto uma espécie de 'spin off', com o UniRaid, a experimentar outras paragens. De Veneza a Atenas durante 12 dias por estradas e pistas de montanha. "Era uma coisa que andávamos a pensar fazer há algum tempo, a pedido de vários antigos participantes. Será uma viagem turística e de aventura na mesma linha do UniRaid original. Vai funcionar nos Balcãs, com os mesmos princípios. Vamos entregar material solidário na Albânia, que é o país mais necessitado em termos de ajuda humanitária. Vai iniciar em Veneza e vai passar por dez países até à Grécia, Atenas. Vai decorrer de 5 a 15 de agosto", explica Miguel Agostinho.

"Foi uma evolução que andávamos a preparar há algum tempo. Uma espécie de upgrade que pretendemos de futuro tornar regular: um evento em fevereiro, outro evento em agosto", conclui. As crianças, que assim vão poder sorrir ainda mais com os UniRaids, certamente agradecerão...