Numa época em que o 'espartilho' determinava as formas e o ideal de beleza feminina, o papel das mulheres na sociedade inglesa era de quase total submissão e de dedicação em exclusivo à manutenção do lar e da educação dos filhos.
Apesar do papel secundário da mulher no final do século XIX, a expansão das universidades femininas a partir de 1870 e o incentivo à pratica desportiva como manutenção de saúde permitiu a muitas mulheres da classe média e alta praticar várias modalidades adaptadas como ténis, ciclismo ou criquete. Já o futebol era muitas vezes desprezado pelas elites por ser encarado como um jogo violento e conotado à classe operária.
No entanto, em 1894 surgiu um anúncio num jornal londrino a 'convocar' 30 jovens do sexo feminino com o intuito de forma um 'team' de futebol. Com o interesse crescente da modalidade, os primeiros treinos arrancaram na zona de Alexandra Park, a norte de Londres, com as potenciais jogadoras a dar corpo ao nascimento do primeiro clube de futebol exclusivo para mulheres.
E foi em 1895 que nasce o British Ladies Football Club tendo como principal patrocinadora Florence Dixie, aristocrata escocesa e filha mais nova do Marquês de Queensbury. No entanto, o projeto tinha em 'Nettie Honeyball' a sua principal referencia dentro e fora do campo. Descrita na altura como sendo uma jovem de olhar duro e personalidade forte, vinda da classe média, o nome 'Nettie Honeyball' era o pseudónimo de Mary Hutson, uma ativista feminista que queria provar que as mulheres podiam ter o mesmo tipo de actividades que os homens. Com o jogador do Tottenham J.W. Julian como treinador, o British Ladies F.C. começou a realizar treinos regulares com 'Nettie Honeyball' enquanto capitão de equipa.
Em declarações ao jornal'Daily Sketch' em fevereiro desse ano, 'Nettie Honeyball' dá voz à manifesta vontade das mulheres em provar que não são inferiores ao homens, e que podem ter um papel mais activo em vários sectores da sociedade.
"Fundei o clube com o objectivo de provar ao Mundo que as mulheres não são essas criaturas ornamentais e inúteis que os homens "pintam". Devo confessar que é minha convicção de que em todos os assuntos os sexos estão profundamente divididos (...) e desejo a chegada de um tempo em que as mulheres se possam sentar no Parlamento e que tenham voz na gestão de todos os assuntos…", afirmou 'Nettie Honeyball'.
Um mês depois, a 23 de março de 1895, a visão de Mary Hutson e Florence Dixie materializava-se com um 'match' entre dois 'teams' representativos do norte e sul de Londres e constituídos exclusivamente por mulheres. Mesmo contra as proibições da época, e perante uma plateia de cerca de 10 mil curiosos, as equipas de futebol feminino defrontaram-se em Crouch End Athletic Ground naquele que é reconhecido pela FIFA como o primeiro jogo de futebol feminino, embora haja registos na Escócia de um jogo de futebol disputado em 1892.
Com a vitória do Norte sobre o Sul por 7-1, as críticas nos jornais da época dividiram-se nas análises. Grande parte da mentalidade vitoriana não conseguiu digerir as jogadoras equipadas com blusas, bonés e calças, e numa altura em que o 'espartilho' era lei, o 'match' acabaria por ser arrasado pela crítica preconceituosa e machista da época.
No jornal 'Standard', a guarda-redes da formação vencedora do Norte de nome Grahm foi muito elogiada pelo repórter. Já a 'correspondente mulher' do jornal 'The Guardian', mostrou enorme entusiasmo ao afirmar que, "Só posso dizer que a impressão que a partida deixou na minha mente é que o espetáculo foi muito lindo. Não há nada desagradável em ver uma mulher chutar uma bola".
No entanto, o Bristol Mercury e Daily Post arrasaram a iniciativa ao exclamar que, 'as mulheres não podem jogar futebol", e que mesmo se conseguissem fazê-lo, não seria 'um desporto adequado ao sexo feminino"
Já o 'Daily Sketch', que um mês antes tinha entrevistado 'Nettie Honeyball' escreveu que, "Os primeiros minutos foram suficientes para demonstrar que o futebol feminino (...) está totalmente fora de questão. Um futebolista requer velocidade, disciplina, habilidade e coragem. Nenhuma destas quatro qualidades se viram no sábado. Na maior parte do tempo as senhoras vaguearam sem rumo pelo terreno de jogo num trote sem graça".
Mas é no relato do correspondente do jornal 'Sportsman' que surge uma curiosa afirmação: "É certo que os homens correm mais e rematam com mais força, (...) mas para além disso não acreditamos que a mulher futebolista desapareça na sequência de uns quantos artigos escritos por senhores sem qualquer simpatia pelo jogo nem pelas aspirações das jovens mulheres. Se a mulher futebolista morrer, morrerá a dar luta".
Mesmo com a maioria das críticas adversas, o clube continuou a realizar alguns jogos nos meses seguintes e a percorrer o seu caminho em prol da igualdade apesar de ter terminado dois anos depois e realizado cerca de cem jogos de exibição.
Anos mais tarde, o futebol praticado por mulheres voltaria a surgir em Inglaterra por causa da I Guerra Mundial devido ao envio de milhares de homens ingleses para trincheiras, mas isso já é outra história.
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