Foi no passado dia 31 de março que Bernardo Tavares conseguiu o que, à partida, parecia impossível: conduzir o PSM Makassar ao título de campeão da Indonésia, 23 anos depois do último. Diante do Madura United, a equipa orientada pelo técnico português venceu por 1-3 e, ainda com duas jornadas por disputar, assegurou matematicamente o primeiro lugar da competição, com 13 pontos de vantagem para o então 2.º classificado, o Persib.
É o sétimo título do Makassar, clube mais antigo do país (tem 107 anos), e o sexto da carreira de Bernardo Tavares. Em 2017 vencera ao serviço do New Radiant, das Maldivas, o campeonato, a Taça do Presidente e a Taça da Liga; em 2018 sagrou-se campeão com o Benfica de Macau; e na época seguinte junto ao currículo a Liga de Goa pelo Churchill Brothers, da Índia.
"Todas as vitórias são saborosas. Felizmente, já tive várias na minha profissão. Mas esta foi, sem dúvida, a mais surpreendente", começa por dizer Bernardo Tavares ao SAPO Desporto. E explica porquê.
"No ano passado o clube tinha acabado em 14.º, quase desceu de divisão, por isso, conseguir ser campeão com uma equipa que praticamente toda a gente apontava como forte candidata a descer, foi impensável", enaltece.
"Quando peguei na equipa, em maio do ano passado, os melhores jogadores tinham saído e praticamente todos os clubes tinham os seus plantéis formados. Não conseguimos contratar nenhum jogador da primeira liga, só de camadas jovens e da segunda liga. Houve muito pouco tempo para trabalhar", continua.
Condenado à descida no arranque da época, a verdade é que o Makassar, clube sediado na ilha de Sulawesi, fez uma campanha impressionante, terminando a Liga indonésia com 75 pontos, mais 12 do que o Persija Jakarta, contabilizando 22 triunfos, nove empates e apenas três derrotas – um recorde na prova. Chegou ainda à final da AFC Cup (correspondente à Liga Europa), perdendo na final para o Kuala Lumpur, da Malásia.
"A diferença de orçamentos para outros clubes como o Persija, o Persib ou o Bali United é abismal. Eu atrevo-me a dizer que o PSM Makassar é um clube de tostões e o Persija é um clube de milhões. Por exemplo, o treinador do Persija [Thomas Doll] chegou a treinar o Borussia Dortmund e tem na sua equipa jogadores internacionais pela República Checa, alemães… São outros pergaminhos. Costumo dizer na brincadeira que os sacos de dinheiro não ganham jogos. Às vezes ajudam, e muito, mas só por si não ganham jogos", considera.
Bernardo Tavares teve à sua disposição um plantel predominantemente jovem, formado maioritariamente por jogadores indonésios, mas também com dois nomes que atuaram em Portugal: o brasileiro Éverton Nascimento, que representou o Marítimo entre 2017 e 2019, e o cabo-verdiano Yuran Fernandes, que alinhou no Torreense e no Estrela da Amadora. Na base do sucesso, diz o técnico, esteve a "humildade".
"Foi preciso passar para os jogadores e para os adeptos a noção de que esta iria ser uma época muito complicada. E tivemos de perceber que era necessário adotar um estilo de jogo que se adequasse às características dos nossos jogadores, que são rápidos, mas não muito fortes tecnicamente. Por isso, o que fazíamos era dar a bola ao adversário, apostando mais nas transições. E assim fomos ganhando", explica.
"Somos a equipa que teve, em média, menos posse de bola na liga, mas também a que criou mais oportunidades. Sinceramente, não me lembro de nenhum campeonato, na Europa ou fora, em que o campeão tenha sido a equipa com menos posse de bola. Atrevo-me a dizer que aquilo que fizemos esta época é um caso de estudo", enaltece Bernardo Tavares.
Num país com mais de 17 mil ilhas, das quais cerca de 6 mil são habitadas, o PSM Makassar conseguiu superar o enorme desgaste causado pelas viagens entre os jogos – chegou a participar em três competições – e conseguiu igualar o recorde de 75 pontos no campeonato indonésio. Sempre com os adeptos do seu lado.
"Mesmo nos jogos à porta fechada [por questões de segurança], havia milhares de adeptos a formarem um cordão humano no trajeto até ao estádio. Não podiam assistir aos jogos, mas faziam questão de estar ali só para apoiar a equipa. As pessoas começaram a acreditar que era possível e com toda a gente a remar para o mesmo lado, tudo se torna mais fácil", notou.
Um título agridoce, entre a tragédia e uma festa sem precedentes
A temporada de sonho do PSM Makassar acabou por ficar, inevitavelmente, marcada pela tragédia ocorrida no dia 1 de outubro de 2022, no Estádio Kanjuruhan, em Malang, na ilha de Java, que provocou 135 mortos e centenas de feridos.
Na sequência de uma invasão de campo após o jogo entre o Arema, que jogava em casa, e o Persebaya Surabaia, houve um confronto com as autoridades, que responderam com o uso de gás lacrimogéneo, sendo esta uma das causas apontadas para o elevado número de mortos e feridos, pois causou a debandada de pessoas num estádio sem as vias de escoamento adequadas.
"Nós estávamos em estágio, íamos jogar contra o Barito no dia a seguir, e lembro-me de estar a ver na televisão e nas redes sociais todo aquele caos. Foi um terror, não há outra forma de descrever. O futebol não é isto. Aqui no clube tentámos sempre passar a mensagem de que estas situações não podem voltar a acontecer", sublinha.
Na altura, o Arema contava no seu plantel com os portugueses Abel Camará e Sérgio Silva, além do preparador físico João Paulo Moreira: "Falei com eles sobre o que aconteceu e depois passado alguns meses voltámos a defrontar-nos para o campeonato, e realmente há uma equipa antes e depois da tragédia."
As competições de futebol na Indonésia pararam durante dois meses, tendo retomado no início de dezembro, com os jogos a realizarem-se à porta fechada. Foi neste contexto que a equipa de Bernardo Tavares conquistou um título que lhe escapava há 23 anos, num estádio sem adeptos.
"Aqui o futebol é uma loucura. E estamos a falar de um país que tem ‘só’ 280 milhões de pessoas. Os estádios normalmente estão cheios. Mas depois da tragédia de 1 de outubro muitos jogos passaram a realizar-se à porta fechada, por questões de segurança. O jogo em que fomos matematicamente campeões foi um deles, era considerado de alto risco. Foi um pouco frustrante não podermos festejar com os nossos adeptos. Mas celebrámos depois em casa, com milhões de pessoas nas ruas", revela o técnico.
Com o título conquistado na antepenúltima jornada, a cidade de Makassar passou as últimas semanas num clima de grande festa: "A euforia é enorme, também por ser um título que ninguém poderia prever. Aliás, todas as pessoas previam o contrário."
Indonésia, o país das 17 mil ilhas
Com passagens por equipas de Bahrain (como adjunto), Omã, Maldivas, Macau e Índia, Bernardo Tavares foi construindo grande parte da carreira no continente asiático – esteve ainda em África, mais concretamente na Tanzânia. No entanto, o convite para rumar ao PSM Makassar surgiu após uma breve passagem pela Finlândia, onde comandou o HIFK.
"Já acompanhava o futebol na Indonésia à distância, porque na altura estava lá o Eduardo Almeida [ex-treinador do Arema] e lembro-me de assistir a alguns jogos. No início de abril deixei por opção o HIFK, pois não me identificava com algumas opções da direção, e poucos dias depois estava a receber o convite para trabalhar no Makassar", conta o treinador luso, que chegou a ser abordado por outro clube da Indonésia, mas antes de assinar pelo atual campeão.
"Sempre me fascinou a Indonésia, quer pela paixão dos adeptos, quer pelas massas que move. Além disso, tem bons jogadores e um bocadinho do futebol de rua, que em Portugal, por exemplo já não existe. Se se conseguir organizar e criar melhores infraestruturas nalgumas zonas, acho que pode ser uma potência do futebol asiático nos próximos anos", vaticina.
"O PSM Makassar é um clube de tostões, em comparação com outros clubes na Indonésia, que são clubes de milhões. Mas costumo dizer na brincadeira que os sacos de dinheiro não ganham jogos"
E desengane-se se pensa que os clubes indonésios não exigem resultados. "Até acontece mais vezes do que em Portugal. Há clubes que esta época mudaram quatro e cinco vezes de treinador. Eles não têm muita paciência", começa por dizer o treinador de 42 anos, que, apesar de tudo, não sentiu essa pressão na pele.
"No início da época não havia muitas expetativas, o objetivo era garantir a manutenção. Senti sempre um grande apoio da estrutura, de tal forma que em janeiro renovei o meu contrato até 2026. Nessa altura, o título ainda não estava garantido, mas o trabalho estava lá. Se houve alguma pressão, foi algo que incutimos em nós próprios", nota.
Comunicar num idioma novo e desconhecido, revela, "nunca foi um problema". "Tenho comigo um tradutor que faz parte da equipa técnica, eu falo em inglês e ele traduz para indonésio para os jogadores que não percebem inglês. Além disso, ando sempre com o computador ou com quadros para explicar alguma tática ou dar-lhes alguma indicação num desenho. A imagem vale mais do que mil palavras", diz.
Com uma população de 1,5 milhões, a ilha de Sulawesi, onde está sediado o Makassar, situa-se a cerca de 1700 quilómetros da capital Jacarta, em Java. Num campeonato composto por 18 equipas distribuídas por várias ilhas da Indonésia, são muitos os quilómetros percorridos dentro do mesmo país ao longo da temporada – até porque o PSM Makassar é o único representante da sua ilha na Liga indonésia.
"Essa é, provavelmente, a principal diferença que senti em relação a outros países. Acaba por ser muito desgastante", atira Bernardo Tavares. "O clima é o que se imagina: muito calor e humidade. A ilha de Sulawesi não é tão desenvolvida como Bali ou Java, mas também não tem tanta poluição", ressalva.
Makassar, que chegou a estar na posse de portugueses entre 1512 e 1665, é a maior cidade da ilha e um poço de culturas e religiões, com predominância para a muçulmana. "O Ramadão foi um dos desafios a ter em conta durante os treinos do plantel”, lembra o técnico luso.
Quanto à gastronomia, "primeiro estranha-se, depois entranha-se". "Cada ilha tem a sua identidade e os seus pratos típicos, um bocadinho como as diferentes regiões de Portugal”, diz o treinador. Ainda assim, há um prato que lhe vem à memória. "Eles têm uma sopa típica a que chamam de Coto, que não é mais do que carne de vaca cozida com gordura, condimentada com várias especiarias e ervas. É o ex-libris gastronómico desta ilha", refere.
Uma viagem ao passado na Coreia do Norte e um possível futuro em Portugal
Bernardo Tavares já percorreu meio mundo, mas foi na Coreia do Norte, país que conheceu quando o Benfica de Macau jogou na casa do campeão e do vice-campeão norte-coreanos durante a fase de grupos da AFC Cup, em 2018, que viveu uma das experiências mais singulares da carreira.
"É outra realidade. Não podíamos deslocar-nos para lado nenhum sem um norte-coreano a inspecionar-nos. Tínhamos previsto fazer uma pequena caminhada junto ao hotel antes do jogo e mal saímos veio logo ter connosco um segurança com uma metralhadora a dizer que não podíamos sair", conta.
“Não me lembro de ter visto uma pessoa na rua com cores alegres, todos vestiam roupa preta, castanha, verde escuro… Por outro lado, é um país bastante limpo e organizado", aponta. Pelas ruas há grandes painéis com imagens do ditador Kim Jong-un e da sua família, que se iluminam à noite, a partir das 21h00, quando as ruas ficam sem iluminação.
A viagem, ainda que insólita, acabou por correr bem ao Benfica de Macau, que bateu o vice-campeão Hwaebul, por 3-2, um ‘bis’ de Carlos Leonel. "O estádio estava cheio de adeptos, mas, como seria de esperar, nenhum era nosso", diz. Já na visita ao campeão norte-coreano, 25 de Abril, a equipa macaense foi goleada por 8-0.
Com a renovação de contrato até 2026, o futuro de Bernardo Tavares passa por continuar o trabalho iniciado há quase um ano no PSM Makassar. Ainda assim, o treinador prefere pensar "dia a dia". "No futebol tudo muda rapidamente. Quando a bola não entra, é sempre mais fácil mudar o treinador. Prefiro não traçar planos muito à frente", sublinha.
O regresso a Portugal, onde ainda não teve grandes oportunidades, é uma possibilidade. "Claro que gostava de voltar, mas os desafios que tive até agora [em Portugal] não me deixaram boas recordações. Não quero trabalhar num projeto onde o diretor A, B ou C vem para os jornais dizer que é para subir de divisão, mas que depois não cumpre em coisas fundamentais, como pagar salários", explica.
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