O relógio ainda não marca as dez da manhã e já se ouve o zumbido da máquina de cortar cabelo na pequena barbearia do centro do Porto. O espaço é um postal vivo da história azul e branca: paredes cobertas de cachecóis, camisolas assinadas e fotografias com figuras ilustres que ali passaram. Atrás da cadeira, de tesoura na mão e olhos brilhantes, está o senhor Manuel, 72 anos, portista de corpo e alma.

“Fechei muitas vezes a barbearia só para ir às Antas. Os clientes já sabiam: em dia de clássico, aqui não se cortava cabelo. Cortava-se era a respiração no estádio”, recorda, com um sorriso maroto.

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A paixão atravessa décadas. Viu Madjer inventar o calcanhar em Viena, vibrou com Jardel e ainda hoje se emociona a falar de João Pinto. Mas domingo, admite, vai estar com a mesma ansiedade de sempre: “É contra o Benfica. Isto não é só futebol, é história, é identidade. E agora com o Farioli, tenho esperança numa equipa jovem, atrevida. Vai ser duro, mas em casa temos de mandar nós.”

Enquanto fala, entra na barbearia o senhor Joaquim, cliente habitual, que não perde a deixa: “Ó Manuel, cuidado com o Mourinho… esse homem já ganhou tudo! O Porto que se cuide.” O barbeiro olha de soslaio e, entre risos, responde logo: “Aqui não há Mourinho que valha, no Dragão quem manda somos nós.”

A poucos quarteirões dali, o ambiente é outro. Dona Rosa, cabeleireira de 68 anos, atende clientes num salão que cheira a laca e conversa fiada. A cada canto, há uma nota vermelha: uma águia bordada num pano, um cachecol escondido por trás do balcão. “Aqui é território hostil, mas eu nunca escondi o meu amor pelo Benfica”, dispara, sem papas na língua.

Ela, que já cortou cabelos de portistas ferrenhos, não perde a oportunidade para provocar: “Olhe, muitos saem daqui arranjadinhos mas cabisbaixos depois dos jogos. Este domingo vai ser igual. Com o Mourinho no banco é que vai ser, carago. Ele sabe mexer-se nestes jogos grandes.”

Do lavatório, uma cliente interrompe, rindo: “Ó Rosa, o italiano vai contar uma historinha ao teu Mourinho... não te fies que vais ganhar desta vez” A cabeleireira ergue a tesoura e sentencia: “Raios me partam se não levamos os três pontos connosco..."

Entre os dois espaços, separados por ruas mas ligados pela paixão ao futebol, respira-se a verdadeira essência de um clássico que divide cidades, famílias e até cadeiras de cabeleireiro. Manuel ajeita o bigode, confiante de que o Dragão vai impor a lei da casa. Rosa retoca o cabelo de uma cliente, convicta de que Mourinho vai ensinar a diferença.

Domingo, quando Farioli e Mourinho desenharem estratégias à beira do relvado, no Porto haverá muito mais do que 90 minutos em jogo: estará a tesoura contra o secador, a lâmina contra o pente — e um país inteiro colado à paixão de um clássico eterno.