Domingo, 20 de novembro de 2022. Enquanto o resto do mundo estava de olhos postos no Qatar, para assistir à cerimónia de abertura do Campeonato do Mundo de Futebol e ao jogo inaugural da prova, uma seleção portuguesa que é 'rainha' da sua modalidade fazia História em Leiria.
Num Pavilhão dos Pousos a abarrotar, a Seleção Nacional de andebol em cadeira de rodas vencia os Países Baixos por 18-10 e conquistava a edição inaugural do Campeonato do Mundo e da Europa da modalidade. Um feito inolvidável para os jogadores que integraram a equipa e para o selecionador nacional, Danilo Ferreira.
"Entrámos algo nervosos, admito, mas aos poucos o nervosismo passou e depois a diferença de qualidade veio ao de cima e acabámos por ser campeões europeus e do mundo, algo que ficará eternamente na memória destes atletas", sublinhou o técnico de 45 anos ao SAPO Desporto.
"O Pavilhão estava cheio e houve pessoas que ficaram de fora porque não cabia mais ninguém lá dentro. Estava um ambiente místico, como nunca antes tinha vivido. No fim do jogo fiz questão de agradecer a todo o público, que foi inexcedível no apoio", acrescenta o selecionador nacional. "Foi mágico e inesquecível!"
Não se tratou, longe disso, do primeiro êxito da seleção nacional. Já antes esta tinha alcançado três segundos lugares e um primeiro nas quatro anteriores edições do Torneio Europeu de andebol em cadeiras de rodas, prova que antecedeu o agora recém criado Campeonato da Europa e do Mundo, assim denominado por ser realizado sob a égide da EHF (Federação Europeia de Andebol) e IHF (Federação Internacional de Andebol).
Mas este foi, claramente, o êxito mais significativo, ainda para mais por ter sido alcançado em solo nacional, como nos confessou o internacional português Ricardo Queirós, melhor marcador da competição.
"Claro que jogar em casa trouxe uma pressão extra, mas soubemos lidar com isso. Sabíamos que éramos favoritos, já tínhamos tido outros êxitos no passado e isso também nos ajudou neste percurso", explicou ao SAPO Desporto.
"Foi uma experiência única. Foi muito especial! Numa palavra? Indescritível!", exalta Ricardo Queirós
"Foi algo que jamais sonhei viver e que muito provavelmente não voltarei a viver. Jogar perante todo aquele público foi realmente algo de único", reconhece.
No trilho da glória: o caminho para o sucesso
O êxito em Leiria não surgiu de um dia para o outro. Foi alicerçado num trabalho que já vem de longe e que começou há 12 anos.
"Este trabalho começa em 2010, quando a Federação de Andebol de Portugal cria o projeto 'Andebol for All', um projeto que tem quatro sub-projetos: andebol dentro dos estabelecimentos prisionais, andebol para pessoas com deficiência intelectual, andebol para pessoas com deficiência auditiva, e andebol para pessoas com deficiência motora, que é o andebol em cadeira de rodas", explica Danilo Ferreira.
"Depois, em 2015, formámos pela primeira vez a seleção, para participar na primeira edição do Torneio Europeu. Muitos dos atletas que estiveram envolvidos neste Campeonato do Mundo e da Europa começaram a trabalhar comigo nessa altura", prossegue o técnico.
A preparação, face aos constrangimentos com que sempre se depara uma seleção composta por atletas amadores, foi feita com alguns com a participação (bem-sucedida) em dois torneios e com alguns curtos estágios. A concentração para o Campeonato da Europa e do Mundo deu-se poucos dias antes do início da prova.
"O mais complicado terá sido gerir a ansiedade de alguns atletas. Estávamos a jogar em casa, não temos hábitos competitivos de provas com tanta gente nas bancadas, com tanta visibilidade, e mesmo que nos queiramos resguardar, há um momento que não é possível controlar todas estas emoções", recorda o selecionador nacional.
Portugal começou por bater a Roménia por 21-10. Seguiram-se triunfos sobre os Países Baixos, por 20-10 e sobre a Índia, por 18-13. Nas meias-finais, novo triunfo luso sobre a seleção indiana, agora ainda mais dilatado: 23-11.
E eis que chega o jogo decisivo, num reencontro com os Países Baixos, partida que teve honras de transmissão televisiva na RTP.
Danilo Ferreira admite que a seleção nacional tinha a plena consciência de que se estivesse ao seu nível os Países Baixos não teriam hipóteses e revela que foi isso que procurou transmitir aos seus jogadores.
"Quando os outros são melhores temos de ser realistas e perceber isso, mas quando somos melhores não temos de ter problemas em admiti-lo à partida", sublinha o selecionador português.
"Depois, foi uma questão de gerir a ansiedade e aproveitar o outro 'jogador' que tínhamos na bancada a apoiar-nos", resume.
O triunfo, na final, foi por claros 18-10. Portugal fazia história no andebol em cadeira de rodas. "Pelo nosso historial, éramos um natural candidato à vitória. Só que, também por isso, todos olhavam para nós como a referência e como a equipa a bater. Só com o trabalho brilhante dos jogadores e de todo o nosso staff conseguimos chegar onde queríamos", remata o selecionador nacional.
Mas o que é, afinal, o andebol em cadeira de rodas e como surgiu?
Oficialmente, o andebol em cadeira de rodas surgiu no Brasil, em 2005, chegando progressivamente à Europa em 2006. Danilo Ferreira conta-nos, contudo, que a modalidade já havia sido jogada antes em Portugal.
"Em Portugal, em 1989 houve um jogo de andebol em cadeira de rodas. Mas nós cá temos um problema, que é: fazemos muito, mas escrevemos pouco. E não ficou o registo próprio desse jogo. Depois, em 2004 a Federação estabeleceu um protocolo com várias associações locais de forma a tentar dinamizar um projeto na modalidade, mas faltou dinheiro. Até que em 2009, com a alteração da lei de bases do desporto e da educação física, que obriga a que as vertentes do desporto com e sem deficiência estejam integradas nas federações, a Federação de Andebol de Portugal, através do Professor Joaquim Escada, que é o coordenador e o responsável de tudo isto, criou o tal projeto do Andebol for All", recorda o selecionador nacional.
O Andebol em cadeira de rodas é praticado por pessoas com as funções motoras comprometidas ao nível dos membros inferiores, fruto de lesão medular, amputação, sequelas de poliomielite ou outras disfunções que as impeçam de correr e saltar como um indivíduo sem lesões. Pode ser praticado nas vertentes de quatro jogadores (ACR4) ou seis jogadores (ACR6) - a mais comum - e é uma modalidade mista.
"Na Europa é obrigatório existir sempre uma mulher em campo e três na equipa", explica Danilo Ferreira."Em torneios e provas europeias joga-se sempre 6 contra 6, embora em Portugal se jogue por vezes em 4 contra 4. As balizas deixam de ter 3 metros por 2 e passam a ter 3 metros por 1,70 de altura".
As grandes diferenças ficam-se por aí. A ideia foi equiparar ao máximo o andebol em cadeira de rodas ao andebol de 7.
"O campo é igual, as linhas são iguais, a bola usada é a utilizada pelas seniores femininas no andebol de 7. Procurou-se ao máximo fazer o 'transfer' das regras. Por exemplo, no andebol de 7 temos de calcar a linha na reposição da bola, aqui temos de colocar as rodas da frente como referência. Em termos de violação da área restritiva é idêntico e tudo o resto também, desde os bloqueios, à dinâmica do drible. ", vinca o selecionador português.
"Foi feito um trabalho excelente para equiparar ao máximo as regras, de forma a que houvesse o mínimo possível de alterações em relação à modalidade formal".
"Se virmos a final do Europeu e Mundial, vemos um jogo de andebol normal, com cruzamentos, bloqueios, entradas de pivô, defesas à zona ou defesas mistas…", reforça.
Como os atletas diferem entre si no seu grau de deficiência, existe um sistema de pontos que avalia a funcionalidade do jogador em campo. Um sistema que tem como objetivo dar mais oportunidade de prática aos jogadores com menos funcionalidade. As classes são 1; 2;3 e 4, sendo que a cada jogador é atribuído um valor de acordo com a funcionalidade de volume de ação nos diversos aspetos do jogo. Os jogadores com menor funcionalidade recebem pontuações mais baixas.
Neste momento, em Portugal existem perto de 150 atletas federados na modalidade. "Antes da pandemia iam nascer mais três ou quatro equipas; vamos agora voltar à carga e acredito que esta visibilidade e estes sucessos recentes irão trazer um ainda maior crescimento", avança Danilo Ferreira.
O campeonato nacional tem 12 equipas, divididas em duas zonas: norte e sul. Há Taça de Portugal e Supertaça, numa estrutura semelhante à de tantas outras modalidades.
Danilo Ferreira: a 'descoberta' do andebol em cadeira-de-rodas depois de uma carreira como andebolista
E como chegou Danilo Ferreira a selecionador nacional de andebol em cadeira de rodas, depois de uma respeitável carreira no andebol de 7?
"Comecei a praticar andebol aos 14 anos, no FC Gaia. Depois representei o FC Porto nas camadas jovens, representei também dois anos o Francisco de Holanda, fiz parte da seleção que campeã da Europa de sub-18, voltei ao FC Porto e era o capitão quando o FC Porto voltou a ser campeão, 31 anos depois. Fui capitão da seleção nacional de sub-21 que foi 3.ª no Mundial de juniores, joguei ainda no Maia e fiz seis épocas no V.Setúbal, onde deixei de jogar quando o clube suspendeu a modalidade, em 2006", recorda.
Após deixar de jogar, afastou-se do andebol. Mas quis o destino que a reencontra-se, agora nesta vertente da modalidade em cadeira de rodas.
"Depois, estive três anos em que não quis saber nada de andebol e, em 2009, quando estava a tirar a licenciatura em educação especial e reabilitação, na disciplina de desportos adaptados percebi que não havia ainda andebol. Falei com o presidente da federação de então, que era o Luís Santos, e ele disse-me que estavam precisamente a preparar-se para lançar a modalidade, com o Professor Joaquim Escada. Falei com o professor e foi assim…até hoje estou aqui, ao lado dele, neste projeto", conta.
Ricardo Queirós, o goleador
O SAPO Desporto conversou também com Ricardo Queirós, o melhor marcador do Campeonato da Europa e do Mundo realizado em Leiria. O jogador de 31 anos contou-nos a sua história.
"Comecei por jogar basquetebol em cadeira de rodas, mas o clube lançou o andebol um ano depois e eu percebi imediatamente que gostava muito mais do andebol do que do basquetebol. Até pela essência do jogo, porque o basquetebol é mais um desporto de choque e o andebol é mais fluído", explica.
"Tive um acidente em pequeno, mas felizmente não estou sempre em cadeira de rodas. Tenho apenas algumas limitações. Tive um acidente quando era muito novo, fui atropelado e esmagado da cintura para baixo", recorda.
"Não tinha background de andebol, ao contrário de outros colegas, como o nosso capitão , o João Jerónimo, que jogou andebol federado. Eu não tinha essa experiência, apenas tinha jogado na escola. Comecei a jogar na APD (Associação Portuguesa de Deficietes) Porto, equipa que começou por baixo, mas agora lutamos regularmente pelos títulos, sobretudo, com a APD Leiria", continua.
Ricardo foi uma das estrelas em Leiria e destaca o "espírito de camaradagem muito grande" dentro da Seleção, que diz ter sido "preponderante" quer na preparação, quer depois na competição.
"Só fui o melhor marcador porque tínhamos uma equipa que contribuía para a minha forma de jogar e para eu fazer golos", sublinha Ricardo Queirós.
Quanto ao futuro, não sabe até quando poderá jogar, mas espera conseguir prolongar a carreira ao máximo. "A longevidade no andebol em cadeira de rodas é ainda difícil de prever. Claro que a capacidade física é sempre crucial, mas os Países Baixos, por exemplo, tinham jogadores de 50 e poucos anos a bater-se connosco. Vou trabalhar para que me consiga manter no topo o máximo possível. Sei que a data de parar vai chegar, mas quero que chegue o mais tarde possível", conclui.
E agora, que futuro para o andebol em cadeira de rodas e para a seleção nacional? Jogos Paralímpicos são o sonho de todos
Já sobre o futuro do andebol em cadeira de rodas, Ricardo Queirós, Danilo Ferreira e todos aqueles que estão ligados à modalidade partilham o mesmo sonho: vê-la chegar aos Jogos Paralímpicos.
"Temos um sonho, que é fazer do andebol em cadeira de rodas uma modalidade paralímpica. No início, toda a gente olhava para nós e dizia ‘estes tipos são completamente loucos’, mas hoje já é uma realidade muito próxima", garante Danilo Ferreira.
"Está já previsto que para 2028 o andebol em cadeira de rodas entre no quadro paralímpico. Vamos ver se se concretiza", revela-nos o selecionador nacional.
Paquistão, Índia, Brasil, Chile, Uruguai, Paraguai, Portugal, Espanha, França, Itália, Noruega, Hungria, Roménia, Países Baixos, Eslovénia, Nova Zelândia ou Japão são alguns dos países onde o andebol em cadeira de rodas já é uma realidade. O que falta, então, para que a modalidade se torne tão enraizada como o já é, por exemplo, o basquetebol em cadeira de rodas?
"O que falta é termos, como já está a acontecer, as competições mundiais e europeias mais regulares, para que possamos reunir os requisitos exigidos pelo Comité Paralímpico Internacional. As pessoas, os comités e as federações estão a trabalhar nisso e vamos ver quando chegaremos a bom porto", explica Danilo Ferreira.
Ricardo Queirós também quer ver esse objetivo ser alcançado. "Espero que a modalidade continue a crescer a olhos vistos, até chegar ao topo. E o topo será ser considerada modalidade paralímpica. Porque a partir daí terá tudo para crescer ainda mais, visto que isso trará muito mais visibilidade e muito mais apoios, o que será benéfico", garante.
Enquanto tal não acontece, Portugal vai procurar manter-se como uma referência. "Não vamos poder ser campeões sempre, não é possível, mas queremos estar sempre a lutar do quinto lugar para cima, a nível mundial", frisa Danilo Ferreira. "Depois, falta-nos então o título que seria o fechar com chave de ouro de tudo isto, que era sermos campeões Paralímpicos. O objetivo é esse e é para aí que caminhamos, mas temos de perceber como é que nos vamos posicionar, porque os outros países vão crescer. O responsável espanhol, por exemplo, falou comigo no final deste Europeu e Mundial e disse-me: 'Olha, aproveita bem, porque da próxima vez ganhamos nós'."
"Quando se fala desta modalidade, toda a gente fala em Portugal e perguntam como nós fazemos. E é aí que nos queremos manter. Sempre com a mesma humildade e vontade de ajudar, partilhando a nossa experiência. Mas também sempre com a mesma ambição", termina o selecionador nacional.
Os resultados, para já, não deixam dúvidas: no mundo do andebol em cadeira de rodas quem manda é mesmo Portugal.
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