É sempre um clique apetecível, especialmente quando a sua equipa ganha. Quando perde, para o adepto mais fanático, ver um cartoon a fazer troça do seu clube pode ser intolerável. Assim é há anos, numa rotina intensificada pela relevância atribuída ao futebol no espaço mediático português: cada vez mais acutilante, visceral e sobretudo mais tóxico.
Luís Afonso e Henrique Monteiro vivem, e de certa forma dependem, dos estilhaços provocados pelo desporto-rei em Portugal. Para a sobrevivência profissional dos dois cartoonistas têm contribuído figuras incontornáveis do futebol nacional como Jorge Jesus, José Mourinho ou Sérgio Conceição.
Um vive especialmente do caos e da palavra, o outro do humor e do desenho. Um tem clube, o outro diz não ter. Mas há algo que os une: a insaciável paixão pela caricatura, pela ironia e pela sátira. Numa palavra só, pelo Cartoon.
Luís Afonso: O criador de um barbeiro inconfundível
Não será um, nem dois, os leitores que ao comprarem o jornal 'A Bola', muitos deles há décadas, os mais fiéis, viram o jornal 180º assim que o compram, antes mesmo de o começar a ler. E tudo porque na última página está uma das tiras mais emblemáticas do mundo desportivo em Portugal: a rubrica 'Barba e Cabelo'. É com um admirável carinho que Luís Afonso, um dos cartoonistas mais respeitados pelos seus pares, nos fala da tira que desde Maio de 1990 se tornou um autêntico ícone do jornal 'A Bola' e da imprensa desportiva.
Sem nome, mas inspirado no barbeiro da terra, a personagem que diariamente - há mais de 30 anos - troca dois dedos de conversa com um cliente muito 'sui generis', é protagonista de uma história que se reinventa a cada dia, mas sempre no mesmo espaço.
"Quando me pediram para criar uma tira à volta do futebol, lembrei-me do barbeiro da minha terra porque era lá que ouvia falar de futebol. Para mim era difícil fazê-la porque não gostava de futebol, ainda hoje não gosto, e comecei a pensar onde é que eu ouvia falar de futebol. Quando ia cortar o cabelo via os homens só a falarem de bola e foi automático. Assim que me desafiaram para criar uma tira lembrei-me logo do barbeiro. Para mim fazia todo o sentido", relembrou Luís Afonso, natural de Aljustrel, no Alentejo, local da famosa barbearia que serviu de mote para milhares de conversas sobre futebol entre dois conhecidos, que acabaram por ficar amigos.
Aliás, uma amizade ficcionada que fazia jus à vida real. Como prova esta especialíssima edição, aquando do falecimento do carismático barbeiro, o verdadeiro, que serviu de inspiração à mítica personagem. Luís Afonso decidiu homenageá-lo, substituindo as personagens fictícias pelas reais, incluindo-se a ele próprio no papel de habitual cliente.
Em 1985, Luís Afonso, que chegou a dar aulas de geografia, já fazia cartoons políticos, e não só, num jornal que morreu antes de nascer. "O Prof. Moniz Pereira fundou um jornal - não chegou a sair o número 1, apenas o 0, que era o 'Ases', ali na zona de Santos, em Lisboa", recordou o também autor do incontornável 'Bartoon', rubrica ainda hoje diária do jornal 'O Público'. Apesar da ideia não se concretizar, o trabalho feito no jornal 'Ases' acabou por não ser em vão.
"Na altura fiz uma série de cartoons, sem palavras, que ficaram na gaveta porque o jornal não chegou a sair. Um dia, almoçava pelos lados da baixa e lembrei-me desses cartoons. Como estava perto do bairro alto fui ao jornal 'A Bola' deixar os meus desenhos". Estávamos em 1989. "Eles gostaram e contrataram-me nessa altura para a 'Bola Magazine'. Falei com o Homero Serpa e depois com o Vítor Serpa (filho). Foi a primeira pessoa que me recebeu lá. Os bonecos foram publicados sem palavras, em página inteira, mas só na Bola Magazine".
O formato serviria de ensaio para o 'Barba e Cabelo', que nasceria pouco depois com ao lançamento d' A Bola ao domingo e, mais tarde, diariamente.
'Henricartoon': Cartoonista, sim, mas sobretudo um desenhador
Mais desapegado a personagens, o espectro de Henrique Monteiro é forçosamente mais alargado. Não há um espaço físico nos seus cartoons, que vivem sobretudo das figuras mais sonantes do espaço mediático do futebol português: Sérgio Conceição, Pinto da Costa, Rui Costa ou Frederico Varandas. Mas também a águia, o dragão e o leão. São subterfúgios constantes para alguém que se confessa um apaixonado pelo futebol.
No Sapo desde 2009, Henrique é cartoonista de profissão, embora veja em si sobretudo um desenhador, desprendido do ponto de vista criativo de um espaço físico ou de personagens-tipo.
"Não sou bem um cartoonista, sou mais um desenhador. O meu talento não está propriamente em arranjar ideias para um cartoon, o meu talento está mais no traço, e é isso que chama a atenção das pessoas para verem o meu trabalho. Gosto de partir da criação de personagens já existentes e gosto que não sejam todos iguais, é um bocadinho aborrecido. Apesar de reconhecer que pode ser uma boa forma de trabalhar o cartoon. Gosto muito de criar, de desenhar, de evoluir no meu traço, e o Sapo tem-me proporcionado essa liberdade e é das coisas que mais prazer me dá", afirma Henrique, que há uns valentes anos beneficiou da atenção e generosidade dos seus colegas do 'Expresso', quando trabalhava como rececionista e estafeta no jornal do grupo Impresa, em 1993.
"Costumava fazer um desenhos na secretária e o pessoal passava lá, jornalistas e editores, engraçaram com os meus desenhos e convidaram-me para começar a fazer ilustrações no 'Expresso'. E começou aí, estive lá 10 anos a fazer ilustração, mas passei por outras publicações, como o DN, Jornal Económico, Diário Económico, Jornal I, assim sucessivamente. Agora faço isto a tempo inteiro, é a minha profissão".
Ver um Benfica-Sporting ou uma corrida de carros? Uma corrida de carros
Parece impossível fazer uma tira diária sobre o futebol português há mais de três décadas sem se ser apaixonado por futebol, não parece? Pois bem, cá temos Luís Afonso para nos provar o contrário.
"Fui sempre um adepto dos motores. Por exemplo, temos um Benfica-Sporting. Se à mesma hora der uma daquelas corridas estúpidas, por exemplo da 'Nascar', em que vão andar ali às voltas, eu não consigo ver o dérbi. Não me interessa. É mais forte do que eu. Ao princípio começo a dividir a atenção, mas depois o meu interesse recai tanto naqueles gajos que andam ali às voltas, que esqueço o jogo", confidenciou o cartoonista de 59 anos, que vive mergulhado no desporto rei por força do seu trabalho.
"Muito do interesse da malta no futebol tem a ver com o facto dos miúdos jogarem. Eu nunca gostei de jogar futebol, não tinha qualquer interesse. Jogava mal. Não sei se jogava mal porque não tinha interesse ou se não tinha interesse porque jogava mal", riu-se Luís Afonso com a pergunta levantada pelo próprio deixada sem resposta. "Eu sou aquele gajo que olha para a final do Euro 2004 e estava completamente na boa, estava a malta a roer as unhas e eu até achei piada. Vi a final do Euro 2016, também. Se me pusessem um medidor de tensão arterial, a minha tensão estava igual, estou a barimbar-me, honestamente".
"Sou apaixonado por futebol e por um clube dos três grandes"
Como do sol para a lua, Henrique Monteiro não esconde o gosto pelo futebol e assume que tem uma inclinação clubística. "Tenho uma grande paixão por um dos clubes, mas não tenho qualquer relação com pessoas envolvidas no futebol português. Faço um esforço para ser o mais isento possível e o mais justo possível. Mas sei que isso no futebol é muito difícil, é um desporto de paixão. Como consolo tenho o facto de já ter sido acusado de ser do FC Porto, do Benfica e do Sporting. É a prova de que malho nos três", gracejou.
O processo criativo: Quanto tempo demora a fazer uma caricatura? A ideia é imediata?
É uma dúvida que qualquer apreciador de caricaturas, sobretudo estas de que falamos, gostava de ver esclarecida. No fundo, destrinçar o processo de criação de um cartoonista. E aqui, uma vez mais, o método diverge entre os dois. Mas há um ponto de contacto: o peso da experiência. A cadência rotineira da criação há décadas dá calo. Um calo que lhes permite, quase de forma inconsciente, ligar o botão automático. A criatividade nem sempre é a mesma, mas a repetição, desde que apurada com a devida dose de criatividade, ajuda a salvar os dias menos brilhantes. Por exemplo, quando a caricatura incide sobre um jogo de futebol.
No caso de Henrique, a ideia surge no decorrer do jogo. "Claro que temos de esperar pelo resultado final. Mas começo logo a ter ideias para os dois cenários - em caso de derrota, em caso de vitória. Se um clube ganhar temos um cartoon, se perder será outro completamente diferente. Temos aqueles 90 minutos para pensar em vários cenários e consoante o resultado atacamos o que melhor se ajustar.
"Quando estava cá o Jesus, pura e simplesmente nem sequer via os jogos. Sabia que o Jesus ia ser entrevistado no fim e não precisava de mais nada. Era uma maravilha"
Com Luís Afonso é diferente. "Muitas vezes espero pelas conferências, chega-me para fazer a rubrica. Com o Jesus era assim, se o Mourinho vier para cá será igual. Com o Sérgio, muitas vezes também funciona assim", contou.
"O dia está tranquilo (2 de abril de 2024), para além do dérbi o Pinto da Costa falou ontem, a CMVM suspendeu às ações ao FC Porto, isso já dá para trabalhar. Se o dérbi não der nada, hoje estou na boa", disse em jeito de piada o cartoonista de 'Barba e Cabelo', também autor da famosa 'Mosca', do jornal da manhã da RTP1.
"Há alturas em que o cartoon aparece e quase sei de antemão que vai ter boa visibilidade, aceitação, e há outras alturas em que estou a fazer o desenho e sei que vai ser uma barraca"
No geral, diz Henrique, assim que a ideia surge, a caricatura não demora mais do que uma hora a estar pronta. "Do ponto de vista técnico, os computadores vieram facilitar muito a nossa vida. E como já tenho muitos anos disto, normalmente um desenho demora trinta minutos, quarenta minutos, uma hora no máximo". Ou seja, depende do cartoon - se é mais elaborado, menos, se tem mais ou menos personagens.
"Existem muitas brancas, embora ao longo dos anos tenho vindo a conseguir tornear a falta de ideias. Pelo facto de ir buscar coisas que normalmente resultam, modifico ideias passadas, mas não estou sempre em forma, claro que não. A parte boa é que amanhã vou fazer outro. Se há um mau cartoon, temos sempre a possibilidade de fazer um bom cartoon no dia a seguir", lembrou o autor do 'Henricartoon', concordando com a efemeridade dos tempos modernos.
Pinto da Costa, Jorge Jesus, Sérgio Conceição, José Mourinho. O que é que um cartoonista pode querer mais?
Em comum, há a convicção de que o futebol português é, sem dúvida, um terreno fértil para qualquer cartoonista. "Mourinho, Jesus. Pagaria para voltar o Sousa Sintra, era genial. O Jorge Gonçalves... o Sporting teve uma série deles. O Sporting agora está bem representado, o segredo é falar pouco, e se for um gajo correto, dá-me ideia que sim, as coisas correm melhor, mas para mim é pior!", riu-se Luís Afonso, antes de falar de Pinto da Costa.
"É um tipo que convive bem com as vitórias, a imagem dele resiste bem às vitórias, aquele humor, aquela ironia funciona bem com o triunfo, é como aquela sobremesa que cai bem após a refeição. Mas estas refeições que tem consumido - resultados péssimos - aquela ironia já é uma ironia que não vai lá, não funciona. Nos tempos áureos, quando o FC Porto ganhava tudo, aquilo era quase uma brincadeira. E para nós era um fartote. Agora o ângulo é diferente".
Uma ideia corroborada por Henrique. "Quando existem personagens como o Jorge Jesus ou o Sérgio Conceição, para o cartoonista o trabalho está muito facilitado. Basta quase produzir de forma caricaturada o que eles disseram para o cartoon resultar" (...) Neste momento o mundo do futebol está delicioso para um cartoonista, as coisas acontecem de tal maneira que chega a ser difícil escolher o que fazer em cada dia."
O poder do cartoon: Interrogar ou opinar?
Para os dois cartoonistas, o conteúdo da mensagem tem objetivos diferentes. Luís Afonso valoriza a reflexão, enquanto Henrique Monteiro tem como principal intenção o de fazer rir quem vê os seus cartoons.
"O Euro 2004 foi um pesadelo que aconteceu aqui em Portugal. Na preparação, durante e após, fiz sempre crítica do Euro 2024. Lembro-me de questionar: 'Mas precisamos daqueles 10 estádios para quê?' Infelizmente, o tempo deu-me razão. E ainda por cima não ganhámos o europeu. Foram os gregos. Justiça divina"
"Tento questionar. Não só no futebol, mas também. O consumidor de futebol por norma não pensa. Não está habituado a refletir e estes grandes movimentos de sentir a pátria, o hino, a bandeira, retiram qualquer componente de massa crítica, não precisamos de carneirada. Aquilo que no Euro 2004 acharam maravilhoso, de cantar o hino, colocar a mão no peito, as bandeiras nas janelas, isso tudo, não faz qualquer sentido. São as mesmas pessoas que depois não pagam impostos e atiram lixo para o chão, passam à frente dos outros nas filas, enfim. Nós somos melhores cidadãos se nos respeitarmos uns aos outros, não é pelas bandeirinhas".
Henrique Monteiro, no seu estilo mais descontraído, olha sobretudo para a piada que pode fazer com determinado acontecimento. A sátira está lá, a crítica também, mas o foco está essencialmente no humor.
"Eu utilizo o cartoon para ter piada, mais do que para refletir. Embora haja cartoons que também servem para isso, sobre a guerra, por exemplo, situações desagradáveis do mundo, mas uso-os sobretudo para que tenham piada, é isso que tento. Gosto de imaginar a reação das pessoas ao ver a ideia e privilegio sempre a parte da piada, a leveza do cartoon, mais do que ser um cartoonista interventivo, que levante perguntas", confessou Henrique.
"Não gosto de textos compridos, já fiz alguns com mais texto, mas gosto de cartoons de consumo rápido. Ponho o menos texto possível. Gosto de simplificar as coisas. Gosto que as pessoas se riam pelo desenho em si, não pelos textos compridos. É mais o meu género.
A atração pela catástrofe, pelo insólito: "Vivo para ser surpreendido"
São os ingredientes indispensáveis para um bom cartoon: a tragédia, o caos, o 'fora da caixa'. É sobretudo disso que vive o cartoon. Luís Afonso, um assumido desapaixonado por futebol, delicia-se com as hecatombes futebolísticas, mesmo quando se trata da seleção. E é parte desse sentimento que entrega de alma e coração ao seu barbeiro, companheiro do dia-a-dia.
"Se o FC Porto, Benfica ou Sporting forem eliminados por uns desgraçados do Chipre ou outra coisa qualquer, é sempre um bom dia para o barbeiro"
"Este barbeiro é um cínico. Tanta estar do contra. A parte do barbeiro que é minha - embora ele não me represente na totalidade - é a de puxar pelas equipas mais fracas. É por isso que se o FC Porto, Benfica ou Sporting forem eliminados por uns desgraçados do Chipre ou outra coisa qualquer, é sempre um bom dia para o barbeiro. Também é giro se um dos três grandes eliminar um Bayern de Munique ou que Portugal ganhe à França. Eu achei piada termos ganho à França, na França. Acho isso muito giro. Aquele pontapé do Éder. E seria ainda mais bonito se o pé tivesse batido na relva e tivesse saído um tufo de relva. Há um gosto pela catástrofe, acaba por ser, quanto mais estranho melhor", garantiu Luís Afonso, antes de recordar o episódio recente com Sérgio Conceição, num desacato em Espanha após assistir a um jogo do seu filho mais novo.
"Por exemplo, no fim-de-semana passado estava a trabalhar e nunca pensei fazer uma coisa com um jogo de sub-9. Às vezes ainda é surpreendido. Se fosse agora, dia 1 de abril, aquilo tinha todas os ingredientes para ser um gozo do caraças. Era o Sérgio Conceição ter ido discutir com um árbitro no fim de um jogo de sub-9. Era mentira de 1 de abril. Mas não, estávamos em Março."
"Vivo para ser surpreendido. Aquelas coisas fantásticas do minuto 92, do Kelvin, o Benfica perdeu dois dias depois com o Chelsea, no último minuto, e depois com o Vitória de Guimarães. Às vezes há coisas... depois o Jesus, todo aquele lado de tragédia, ajoelhar-se, tudo aquilo, há uma componente cénica que faz as coisas ganharem sentido"
"O Sporting, por exemplo, tem uma atração incrível para o abismo. O filme do Woody Allen, o 'Match Point' (2005), é uma boa imagem. Aquela história da bola que bate na rede - ou vai para um lado, ou vai para o outro - para o Sporting a bola vai sempre para o lado errado da rede, é incrível", realçou o cartoonista.
'Estava a ligar para combinar um encontro consigo. Queria dar-lhe um murro, depois vai cada um à sua vida'
O recato digital de Henrique Monteiro, com pouca paciência para as redes sociais, permite-lhe distanciar-se do eco do seu trabalho. Até hoje, não se recorda de ter sido pressionado por algum clube. Ameaçado muito menos. Questionado sobre o cartoon recente da sua autoria, intitulado 'A Família', Henrique relativiza a carga da mensagem, no seu entender meramente humorística e sem qualquer intenção de ofender.
"Esse em concreto da 'Família' foi adequado, não achei muito exagerado, mas é possível que caso algum deles veja não fique propriamente radiante, não é?"
"A minha ausência nas redes sociais pode estar relacionada com isso, com algum recato, mas não me preocupa muito. No meu blog tenho os comentários moderados. Esse cartoon foi puxadinho, mas não acredito que as pessoas vão poder tempo a chatearem-se com ele. Geralmente não penso nisso porque não sou um cartoonista com aquela vontade de provocar uma reação intempestiva, nas pessoas de quem eu faço o cartoon. Esse em concreto da 'Família' foi adequado, não achei muito exagerado, mas é possível que caso algum deles veja não fique propriamente radiante, não é?"
"Lembro-me de ser acusado de ser assalariado do Benfica. Chegou um fax ao jornal 'A Bola' a acusar-me de eu receber dinheiro do Benfica"
Já Luís Afonso, assim de rompante, lembra-se de uma ou duas histórias em que chegou a ser ameaçado e até acusado de ser corrompido.
"Já fui chateado por adeptos dos três grandes", garante. Lembro-me de ser acusado de ser assalariado do Benfica. Chegou um fax ao jornal 'A Bola' a acusar-me de eu receber dinheiro do Benfica. Um tipo que estava numa repartição de finanças e em vez de estar a trabalhar para os contribuintes, usou o Fax da repartição e mandou um FAX a dizer que tinha provas que eu era assalariado do Benfica.
Do FC Porto, por exemplo, um adepto ligou para 'A Bola'. A telefonista passou-me a chamada e ele disse que me achava muita piada, que queria marcar um encontro comigo e eu sem perceber nada. 'Mas diga lá, disse-lhe eu'. E do lado de lá ouvi: 'Queria marcar um encontro consigo para lhe dar um murro. Pronto, depois cada um vai à sua vida'. Tinha gozado com o FC Porto nessa semana, nem me lembro do que foi", relativizou Luís.
"Recordo-me também de ter gozado muito o facto do Benfica ter perdido o Jardel para o FC Porto e alguém da direção do Benfica não ter gostado e ter dito que a situação não era bem assim." Algo que não atrapalha o carismático cartoonista, de consciência tranquila com o seu trabalho.
"Eu marro com todos, dou porrada em todos. Permite-me desconstruir as narrativas, são eles que me apontam o caminho. Durante muito tempo o FC Porto foi o clube menos alvo de coisas, porque ganhava tudo. O Sporting e o Benfica entretinham-me durante anos... o Vale e Azevedo, o Vilarinho, o Vieira, enfim. O Sporting era quase todos os dias. O FC Porto este ano tem sido mais massacrado porque só tem feito asneiras nos últimos tempos".
O último cartoon
Para os dois cartoonistas, sabem-no, haverá de chegar o dia em que a caneta ficará na gaveta. Mas não para já. E tão pouco pensam nisso.
"O SAM [Samuel Carvalho, que fazia o 'Guarda Ricardo'] entregava os sete cartoons ao fim-de-semana para a semana toda. Na última semana entregou os sete, já com o último - apesar de só ele saber que seria o último. E o último cartoon dele é o chefe a dizer para o Guarda Ricardo: 'Ricardo, que projetos tens?' E ele diz: 'manter-me vivo'. 'E não será um projeto demasiado ambicioso?', perguntou-lhe o chefe", recorda-nos Luís Afonso a despedida genial de SAM, sem esconder o desejo de fazer algo parecido quando chegar a sua vez.
"Mas para isso é preciso saber que se vai morrer e preparar a coisa. Nunca pensei nisso, no fim. Para já não. Vou fazendo, assim, usando o gerúndio, que é um tempo tão associado ao Alentejo. É isso, vou fazendo..."
Quase com contornos poéticos - e o que é a vida senão um pedaço fragmentado de poesia? - Henrique Monteiro projeta o fim da sua arte num futuro longínquo.
"Provavelmente vai ser no derradeiro arfar da minha existência, já que não me imagino a viver sem desenhar. Não sei qual será o cartoon, mas presumo que o traço esteja muito tremido".
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