"Mais do que uma equipa de senhoras que jogam futebol, é um estado de espírito! É o convívio, são as partilhas, é uma aprendizagem que vai muito para além das quatro linhas". É assim que Joana Ferreira, de 43 anos, fala do Fut4women, um projeto apoiado pelo Grupo Desportivo Estoril Praia e nascido em 2016 com o objetivo de dar a todas as mulheres - seja qual for a sua idade, profissão ou background - a oportunidade de aprenderem e melhorarem o seu futebol. "Treino todas as quintas-feiras, faça sol, chuva ou vento. E mesmo nas férias tento não faltar a um único treino!", acrescenta Joana, atleta Fut4Women desde Março de 2017.
O SAPO Desporto foi conhecer melhor este projeto que ao todo conta já com cerca de oito dezenas de atletas, que procura proporcionar às mulheres a possibilidade de praticarem o 'desporto rei' numa perspetiva de mero lazer e que tem como fundador e principal mentor Hugo Leal, antigo médio internacional português, com passagens pelo Benfica, FC Porto ou Paris Saint-Germain, que atualmente desempenha as funções de coordenador do futebol de formação do Estoril Praia.
Futebol para todos, seja qual for a idade
Hugo Leal explicou-nos como tudo começou. "Um dia, eu e uma treinadora do futebol feminino estávamos a observar uns treinos de captação para o futebol feminino sénior e apresentou-se uma atleta sobre a qual comento: 'Esta senhora não tem noção do que é já o nível do futebol feminino'. E a resposta de quem estava comigo foi: 'Vocês, homens, têm facilidade para juntar mais nove amigos e ir fazer um jogo de futebol. Nós, mulheres, não'. A verdade é que, não estando associadas a uma equipa, não tinham mesmo", começou por contar.
A partir daí, explica Hugo Leal, não mais lhe saiu da cabeça a ideia de desenvolver algo que pudesse contribuir para dar a volta a essa situação.
"À primeira oportunidade, pensei num projeto que envolvesse, de forma lúdica, homens e mulheres que, já fora de tempo, pudessem fazer uma atividade física ligada ao futebol".
Foi desta forma que nasceu, primeiro, o projeto Fut4All. "Juntamente com um rapaz que estava a trabalhar comigo, comecei a avaliar custos, a pensar em quem poderia estar envolvido e para quem seria destinado. Chegámos ao nome de Fut4all, que nasceu a 4 de novembro de 2014. Já vai fazer 7 anos!", explica Hugo Leal.
Fundado, assim, no final de 2014, o Fut4All procura promover o desporto e o gosto pela prática do futebol. Com o apoio do Estoril Praia, destina-se à prática amadora e lúdica do futebol, recebendo atualmente jogadores de idades compreendidas entre os 22 e os 70 anos, com treinos bissemanais regulares, devidamente coordenados e apoiados por treinador, staff técnico, preparador físico, massagista e nutricionista.
Com o passar do tempo, o Fut4All tornou-se num verdadeiro embaixador do Estoril, promovendo inúmeros eventos de solidariedade social e levando as cores do clube 'canarinho' a vários outros pontos do país e até do estrangeiro. Não sendo vocacionado para a competição, a sua atividade permitiu a integração de atletas com diferentes níveis de talento e de praticantes vindos de todos os quadrantes. Todos passaram a poder usufruir de uma atividade física ligada ao futebol, cada um ao seu ritmo, tirando partido das infraestruturas do clube estorilista.
Contudo, e apesar do sucesso que o Fut4All rapidamente foi atingindo, o projeto não estava a ir totalmente de encontro ao que Hugo Leal havia visualizado. "No primeiro dia tivemos o primeiro treino e eram cinco atletas, só homens. No treino seguinte, três dias depois, já éramos oito e foi sempre crescendo. Mas nunca aparecia nenhuma senhora. Estava a ser mais um Fut4Men do que outra coisa. Estava mais ou menos descontextualizado do que era a minha ideia", relembra Hugo Leal.
Do Fut4All ao Fut4Women
O atual responsável pelo departamento de formação do Estoril Praia não desistiu. "Promovi uma iniciativa que foi o Fut4Family, com as esposas e filhas dos atletas do Fut4all. Chegámos a ter um treino com 128 pessoas! É qualquer coisa de extraordinário. E o sucesso dessa iniciativa começou, então, a trazer alguma pressão por parte de atletas femininas para criar o Fut4Women", conta.
Foi, assim, a partir do Fut4ALL que nasceu, a 4 de abril de 2016, o Fut4Woman, projeto que estendeu a aposta e o compromisso do Estoril no apoio e divulgação do futebol feminino à comunidade da região, contrariando estigmas e ideias feitas de que 'o futebol não é para senhoras'.
"No Estoril Praia não vemos, de todo, o futebol como algo só para homens. Somos, provavelmente, um dos clubes em Portugal que mais atletas femininas tem no futebol e os números do Fut4Women contribuem ainda mais para isso. Temos uma Academia exclusivamente feminina dos 6 aos 15 anos, depois temos equipas sub-15, sub-17, sub-19 e a equipa sénior. Por isso, no Fut4Women o mais curioso não será termos senhoras a jogar futebol, até porque esse estigma já está ultrapassado. O mais curioso será elas nunca terem praticado futebol e começarem a fazê-lo aos 33, aos 42 anos de idade...", salienta Hugo Leal.
"Aqui nenhuma mulher tem de ter medo de brilhar. As nossas portas estão abertas para todas aquelas que queiram ser felizes a jogar com a nossa camisola".
Palavras que se podem ler numa publicação da página oficial do Fut4Women no Facebook. E, de facto, há espaço para todas.
"Temos connosco um vasto lote de gente, com atividades profissionais muito distintas, o que permite que cada uma traga qualquer coisa para o grupo. Temos elementos da claque do Estoril, temos mães e filhas, temos pessoas com altos cargos em grandes empresas, temos gente mais humilde, temos gente mais gordinha, mais magrinha, temos gente com 69 anos, gente com 23, e este misto, esta variedade, é uma das coisas mais simpáticas do projeto", assinala o responsável.
Um grupo repleto de pessoas diferentes, mas com uma paixão comum: jogar futebol
O que leva, afinal, mulheres vindas de meios tão distintos, com vidas tão diferentes e idades tão díspares a juntarem-se duas vezes por semana para treinarem futebol? Falámos com algumas atletas para perceber.
Sandra Gonçalves, psicóloga de 50 anos, é atleta Fut4Women desde o primeiro dia do projeto. Chegou com a irmã, seis anos mais nova. "Andávamos à procura de um sítio onde aceitassem mulheres que nunca tivessem sido federadas, sem percurso anterior como atletas, e enviámos emails para vários clubes. Mas todos nos responderam que não tinham qualquer projeto nesse âmbito, à exceção do Grupo Desportivo Estoril Praia, que nos enviou um email a dizer que estava a lançar um projeto mesmo ajustado a mulheres que gostassem de jogar futebol, numa lógica de prática desportiva e aprendizagem", conta.
Sandra e a irmã deixaram-se conquistar ao primeiro dia. "Fomos com a ideia de ir uma vez por semana, porque somos casadas, com filhos. Mas mal saímos do primeiro treino virámo-nos uma para a outra e dissemos: 'Vimos os dois dias, não é?’ Bastou um treino para ficarmos convencidas", recorda.
Inês Sousa, outra das futebolistas 'às ordens' de Hugo Leal no Fut4Women, destaca a diversidade das atletas. "Somos uma equipa com mulheres de diferentes idades e diferentes áreas, umas com mais jeito do que outras, mas todas sempre com muito empenho, espírito de equipa e boa disposição. Não discriminamos ninguém. Muito pelo contrário! Ficamos muito contentes sempre que aparecem novas colegas e sentimos falta quando alguém se vai embora", sublinha.
Um aspeto também destacado por Sandra Gonçalves. "Todas as mulheres aqui têm alguma particularidade. Não estão presas a conformismos sociais e seguem as coisas que gostam e que lhes dão prazer. Acabamos por ter um grupo com vivências muito diferentes, carreiras muito distintas, e o que une o grupo é este espírito de fazer algo em equipa, partilhar experiências, desenvolvermos as nossas capacidades, criar sinergias e fazer desporto", explica.
Tudo isso levou à composição de um grupo coeso, onde predomina, sempre, a boa disposição. "Damos muitas gargalhadas", acrescenta Sandra. "E se uma de nós se magoa e cai, o jogo pára todo. Vamos todas ver se está bem. É um espírito um bocadinho diferente daquilo que se vê no futebol em geral. Por exemplo, eu tenho asma e às vezes deixo de conseguir respirar. As minhas colegas nunca me deixam para trás. Dizem-me 'descansa um bocado e depois volta, que nós compensamos'. Ou seja, aceitamos as dificuldades e os desafios de cada uma de nós".
Para essa coesão, espírito de grupo e amizade que se vai formando contribuem, também, as regras implementadas por Hugo Leal. "Temos um regulamento que, entre outras normas, dita a existência de jantares mensais 'obrigatórios', que fazem parte do bem-estar deste projeto. Quem falta tem uma penalidade. E temos um hino, que já cantámos publicamente, feito por nós", explica o antigo futebolista.
Causas de solidariedade sempre presentes
Assim, as amizades vão crescendo. "Tornámo-nos mesmo amigas umas das outras e essa relação saiu para fora do campo. Quando uma está com um projeto de solidariedade, todas vamos ajudar. Se alguma está com um problema, todas vamos ajudar", destaca Sandra Gonçalves.
As causas de solidariedade social têm estado, pois, sempre muito presentes dentro do projeto. "Temos feito várias coisas a esse nível, porque sentimos que temos muito poder juntas. Quando foram os fogos de Pedrógão comprámos cabazes de comida e fomos distribuir. Também já conseguimos enviar um contentor com bens para a Guiné e juntamo-nos muitas vezes para enviar material escolar para Moçambique", prossegue Sandra.
Hugo Leal também destaca este papel social. "Com o dinheiro que vamos juntando através de atividades que vamos desenvolvendo, por exemplo no 'Dia do Estorilista', com a venda de alguns produtos e bolos, já tivemos oportunidade de ajudar muita gente. Sempre que somos solicitados temos procurado ajudar, até porque temos gente de vários meios – temos connosco uma funcionária da fundação Helpo, por exemplo - e vamos fazendo os possíveis para contribuir. O que não falta aqui é voluntariado e vontade de ajudar", garante.
Resistir em tempos de pandemia
Nem a pandemia de COVID-19 travou o projeto. Numa fase de extrema dificuldade e isolamento social, com o relvado fechado, as 'Fut's' juntaram as suas competências e, aos domingos, via Zoom, foram partilhando o seu 'Know-how' profissional e cultural. Mantiveram, assim, a proximidade social, partilhando os seus conhecimentos profissionais em diferentes áreas, como a informática, a engenharia, o desporto, a psicologia, o marketing ou a gestão.
Os treinos também não pararam, ainda que à distância, conduzidos por Hugo Leal. "Mantivemos treinos com vídeos diários de actividades sugeridas pelas próprios atletas, para que fossem sendo feitas em casa. Foi uma iniciativa extraordinária e foi sem dúvida um registo que nos manteve unidos e manteve um dos propósitos do projeto, que é as pessoas não estarem isoladas e sentirem-se parte de algo. Chegámos a ter 76 famílias a participar numa sessão de treino!", conta Hugo Leal.
Trabalhar com atletas sem hábito de treino, não só de futebol mas mesmo de desporto, não é fácil, mas é um desafio no qual Hugo Leal acredita estar a ter sucesso. "O principal desafio inicial passou pela adaptabilidade que os técnicos que estão envolvidos neste projeto tiveram de ter. Tiveram de perceber as valências, as limitações e os objetivos de cada uma", explica.
E o papel de Hugo Leal e restante equipa técnica não se fica pelo treino. "Em cada um de nós, treinadores neste projeto, há um misto entre treinador, psicólogo e amigo, numa percentagem de 33.3% de cada. É importante saber que exercício é ou não exequível, mas é fundamental perceber que haverá gente que aparecerá com maior ou menor motivação, com maior ou menor desgaste, e há que encontrar forma de que os treinos sejam bons para toda a gente", sublinha.
Competir não é o objetivo, mas…
A ideia inicial, quer do Fut4All quer do Fut4Women, passava simplesmente por treinos, não envolvendo qualquer tipo de jogo, fosse contra outras equipas, fosse entre os próprios atletas. Seria apenas uma sessão para a atividade física e a bola era só uma desculpa.
Porém, aos poucos, começou a surgir o 'bichinho' da competição. "Fomos desafiados para um primeiro jogo, na Futt4All, e depois de terem 'provado' não quiseram outra coisa. Atualmente já terminamos todos os treinos com ação de jogo. Nas senhoras também e aí o processo até foi bem mais rápido. Começaram logo a pedir para acabarmos o treino com ação de jogo e a perguntar se, eventualmente, havia alguém com quem pudéssemos jogar", conta Hugo Leal.
Aí, contudo, surgiu um problema. "Não havia projetos idênticos ao nosso, o que não permitia equilíbrio ao nível do confronto. Mas, entretanto, começámos a fazer jogos com a Academia do Estoril, com as meninas mais novas e, posteriormente, nasceu uma equipa em Oeiras com um projeto com o mesmo registo do nosso e já tivemos alguns eventos e ações de convívio com jogos. Isso trouxe-nos novos desafios, porque a competitividade desperta sempre algo no ser humano e é algo de que elas gostam e querem manter. Mas temos de fazer essa gestão entre aquele que é o nosso objetivo principal e esta necessidade sã que o ser humano tem de competir", ressalva o ex-futebolista.
O futebol não é para elas? Quem disse!?
Ter mais ou menos jeito para jogar à bola em nada impede, então, que as senhoras encontrem no Fut4Women espaço para todas. Hugo Leal diz que há um pouco de tudo entre as histórias das atletas que treina neste projeto. "Temos histórias de mulheres que levam famílias para a frente como mães divorciadas, outras que têm de fazer das tripas coração para levarem uma verba suficiente para a subsistência da casa. Há um pouco de tudo. Há estrangeiras que se estão a adaptar à sociedade e há cultura portuguesa", enumera.
Os benefícios, reconhecem as atletas, são evidentes, como o sublinham as jogadoras com quem o SAPO Desporto conversou. "A nível físico melhorei significativamente a minha capacidade respiratória. A minha relação com o desporto é: se não for divertido e não me der prazer, começo a olhar para o relógio para ver quando acaba. Aqui não tenho essa perceção. O facto de ter pessoas à minha espera para jogar é motivador", destaca Sandra Gonçalves.
"O Fut4Women é muito mais que futebol, técnicas e estratégias de jogo. Dá-nos estratégias e técnicas para a vida, desafia-nos a acreditar, a ir mais além, a superar, a dar o tudo por tudo e a não desistir."São aprendizagens que levamos para além das quatro linhas", acrescenta Joana Ferreira.
Já Inês Sousa destaca o escape ao stress do dia a dia que o Fut4Women lhe traz. "São momentos de desligar das responsabilidade do trabalho e de algumas de mãe. De desfrutar de momentos de desafio, de muito companheirismo e de alguma brincadeira. No fim, saímos cansadas, mas com o espírito de dever cumprido", reforça.
O Fut4Women permite, pois, que mulheres com o mesma paixão pelo futebol se encontrem e consigam praticar a modalidade. "Felizmente, o futebol feminino já tem mais visibilidade, mas ainda está muito longe do futebol masculino", aponta Inês. "Através do Fut4women podemos passar uma mensagem de empoderamento a todas as meninas, mulheres e até meninos. A mensagem de que não se devem nem podem limitar e que, muito pelo contrário, todos têm o direito a jogar futebol", sublinha ainda Joana Ferreira.
A importância do Estoril para o projeto...e palavras de gratidão a Hugo Leal
Fundamental para que isso possa acontecer é o apoio dado pelo Estoril Praia. "A dimensão do Estoril será a ideal para um clube que quer ter este tipo de iniciativas. Nós, no Estoril, para além dos valores que temos apregoado e cumprido na formação, temos depois uma envolvência com as pessoas que participam nestas iniciativas e, para o clube, isso tem uma grande importância, pois acaba por envolver a comunidade local, atraindo mais gente para estar dentro da esfera estorilista. É uma forma de o clube cumprir a sua missão social, enquanto fundação sem fins lucrativos", explica Hugo Leal.
As atletas do Fut4Women são prova dessa envolvência com o Estoril Praia. Todas elas se deixaram conquistar pelo clube e chegaram já mesmo, no Dia da Mulher, a subir ao relvado com os futebolistas da equipa principal.
"Só tenho que parabenizar o Estoril Praia e o Hugo Leal pela ousadia em terem um projeto como este, que para o clube não tem qualquer retorno financeiro. O retorno reflete-se na qualidade de vida e no bem estar das atletas. E, sem o Hugo, nada disto seria possível. Tenho uma enorme gratidão pelo seu exemplo de vida e pela mensagem extraordinária que nos passa em cada treino", faz questão de afirmar Joana Ferreira. Palavras que resumem na perfeição o que significa, para as atletas, o Fut4Women.
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