Foi precisamente no clube onde pendurou as chuteiras, no Gil Vicente , que Paulo Alves se estreou como treinador. Já com poucas jornadas, para o fim do campeonato, conseguiu 'salvar' o Gil Vicente da despromoção, numa altura em que também por lá andava João Pereira, que recentemente saiu do comando técnico do Sporting.
Nesta segunda parte da entrevista ao SAPO Desporto, o técnico fala sobre a liderança, no papel do treinador e na necessidade de escolher bem os projetos. A última aventura foi em Espanha, ao serviço do Lugo em 23/24. Com muita vontade em regressar ao ativo, o técnico aguarda por um projeto que o entusiasme para que possa dar continuidade ao seu percurso, já tendo deixado a sua marca em vários projetos no futebol português e a nível internacional.
Campeão da segunda divisão por duas vezes, ao serviço dos gilistas e Moreirense, o vila-realense conseguiu ainda chegar à final da Taça da Liga em 2011/12, depois de ter eliminado o SC Braga e Sporting. Recorda com orgulho o trabalho realizado no Beira-Mar, um clube sem recursos e em que não havia dinheiro para pagar ordenados. Somou ainda passagens pelo Irão e a Arábia Saudita.
SAPO Desporto. É precisamente no Gil Vicente onde inicia a sua carreira de treinador, como essa foi transição para técnico e como é que se deu esse convite para assumir a equipa?
"No meu último ano quase não joguei, mas tentava ajudar toda a gente no balneário. Na altura o presidente António Fiúza, uma vez que eu era alguém respeitado pelos jogadores e sócios, convidou-me para diretor desportivo. Apesar da inexperiência, montámos a equipas, mas por volta de março as coisas não estavam a correr bem. Eu nessa altura não estava cá, viajei ao Brasil para fazer prospecção e na altura depois de uma derrota em Alvalade, a direção decidiu que iria dispensar o treinador. Na altura disse-me para antecipar o voo e foi aí que soube que o treinador tinha saído. Mas nunca pensei que ele ia pedir-me para treinar a equipa. Faltavam nove jornadas, e estávamos abaixo da linha de água. Consigo alterar o voo, viajo na segunda-feira. Chego na terça-feira de manhã, a minha esposa foi-me buscar ao aeroporto e ele tinha-me pedido para ir a casa dele. Foi aí que ele falou comigo. 'Eu neste momento não tenho dinheiro, e não quero nenhum treinador, tenho algum receio que se a pessoa não se adapte, vamos complicar isto tudo. Assumes a equipa até final? Fiquei em pânico. Tinha muita ligação ao clube, tinha uma boa imagem, morava na cidade. O presidente Fiúza também era muito direto, 'se vês que não consegues…' 'Presidente, deixe-me pensar um bocadinho', disse-lhe eu. 'Não, tens que dar treino, marquei treino para a tarde'. Então respondi-lhe. 'Vamos fazer o seguinte, vou falar com a minha mulher e já lhe digo alguma coisa'. Fui almoçar com ela e ela disse-me, 'se é algo que gostas, tens que decidir'. A minha vida sempre foi campo, sempre foi relva e então avancei. Já tinha tirado o terceiro nível de treinador, e a Liga também tinha uma alínea, que se os treinadores se comprometessem a tirar o próximo curso para o quarto nível podiam treinar na Primeira Liga. Disse-lhe ao presidente. 'Vamos lá, vamos embora'.
Acertámos a equipa técnica, fomos buscar um treinador de guarda-redes, e fizemos esses nove jogos. Foi difícil aos jogadores aceitarem-me, porque muitos tinham sido colegas meus, eram experientes. Perdermos o primeiro jogo frente à União de Leiria do Jorge Jesus e se o céu estava negro, e nesse dia mais negro ficou, mas eventualmente fomos ajustando. Os jogadores foram-se adaptando, e foi um final de época épico e conseguimos salvar-nos na última jornada de uma forma incrível. Tive primeiro que conquistar aquele balneário, tinha jogado com metade daquela equipa, e no início há sempre muita resistência, mas tive que os conquistar e apelar ao espírito deles. Começamos a criar uma certa mística e acabamos por nos safar. Quem fazia parte daquela equipa era o João Pereira [que começou esta época como treinador do Sporting]."
"Há jogadores que eu sabia que podia dar um grito, não havia problema nenhum, o João Pereira era um deles"
Muito se tem discutido sobre a liderança, e o papel do treinador. Como é a sua?
"É um assunto complexo porque estamos a liderar 25 pessoas, cada um com as suas expetativas, objetivos pessoais, uns mais extrovertidos, outros mais reservados, e isso é complicado porque estamos no domínio das relações humanas. Há jogadores que eu sabia que podia dar um grito, não havia problema nenhum, que ele vai na mesma. O João Pereira era um desses. Mas há outros que lidam mal com aquilo, e é um problema. Os treinadores têm que ter essa capacidade para discernir o que têm pela frente. As lideranças não se aprendem em livros, podemos ler muito, adoptar esse estilo, mas algo que é fundamental é sermos autênticos, e ter uma mensagem clara. Liderar é o reflexo daquilo que é a nossa capacidade de influenciar um grupo tão disperso. Eu sou um treinador exigente, os jogadores têm que ter compromisso, com a equipa e com o treinador, mas para isso tenho que os respeitar. Isto não quer dizer que vá ser justo com todos, mas respeito-os nas alegrias, tristezas, nos fracassos, nas angústias, porque eu passei por tudo isso e sei o que é. Eu muitas vezes digo, eu sei o que é falhar um golo em frente à baliza. Mas exijo respeito de volta, pelas escolhas, pelas decisões e nada disso pode pôr em causa o líder. Um treinador está ali para escolher, para decidir, para definir o que se tem que fazer. Assumo sempre aquilo que acontece, porque no fundo o treinador é sempre o responsável.
VEJA AQUI A PRIMEIRA PARTE DA ENTREVISTA
Ainda sobre a sua saída do Moreirense, em 2022/23, depois de ter conseguido subir de divisão. Sente mágoa por não continuado à frente do projeto?
Não há aqui mágoa nenhuma. Aquilo que fiz, fi-lo com o máximo de profissionalismo, adorei trabalhar com aqueles jogadores, e até hoje os jogadores continuam a enviar-me mensagens, porque foi de facto um ano extraordinário. É só sobre isso que eu posso falar. Quando cheguei o clube 'ardia por todo o lado', e eu já disse isso, pensei que iria ser um falhanço épico. Quando cheguei haviam jogadores a querer ir embora, jogadores a chorar à minha beira, e portanto quando se fala em psicologia e liderança fiz o trabalho que tinha que ser feito, aglutinando toda a gente, mudando o rumo a um clube que esteve muitos anos habituado a estar na primeira liga. Cheguei e tive que ajustar tudo, quem ia ficar, quem não ia, quem é que se iria contratar, e fez-se uma época em que se bateu todos os recordes. O [Gonçalo] Franco foi vendido [para o Swansea], o Alan é grande jogador, o Ofori é grande jogador, o Kodisang foi fantástico, o André Luís é grande ponta de lança, mas a verdade é que antes disso, o Famalicão não quis o Ofori, o SC Braga não quis o Kodisang, o Alan estava na segunda liga do Brasil e não jogava, o Franco estava já há uns anos no clube e não se conseguia afirmar, e não contava para o 'totobola' que foi o que me disseram. E o que é facto é que hoje são grandes jogadores e são. Mas de facto foi preciso ajustá-los, desenvolver-lhes o potencial, e neste momento são peças chave do Moreirense neste momento.
Teve um choque de realidade depois das suas passagens pelo Nassaji Mazandaran do Irão e pelo Ohod Club da Arábia Saudita.
No Ohod, eu entrei na pré-época, o projeto parecia interessante, mas o presidente chegou lá um dia, e foi o meu interprete que me disse, que era meu adjunto, e ele disse que a Câmara local tinha ficado de dar uns terrenos para fazer um estádio novo e não lhe deu, e ele transmitiu que não iria pagar mais os ordenados, e ele disse 'se quiserem ficar fiquem, senão quiserem ficar não fiquem, mas não pago mais nada'. Ainda fiquei mais 15 dias... Era um clube muito popular, só que o que aconteceu representa muito o que é o Irão. Não há uma organização definida, os clubes vivem em função das pessoas que têm muito dinheiro. O presidente do clube era um construtor em Teerão, mas que era dessa cidade onde era o clube, mas não lhe fizeram a vontade e ele tirou o tapete, e acabei por me vir embora, porque de facto começaram a atrasar os pagamento. Na altura também comecei a ter convites, e acabe por assinar pelo Penafiel.
E a experiência na Arábia Saudita, como é trabalhar com jogadores com uma cultura completamente diferente?
Penso que eles podem ter 10 estrangeiros, mas na altura quando estava lá só podiam jogar 6. É um país que não tem dificuldades aparentes, e o jogador árabe não tem aquela mentalidade profissional que nós temos em Portugal . Imaginemos que eu marcava um treino às cinco horas, metade do grupo aparecia às cinco e vinte, cinco e meia. Já vinham equipados de casa, vinham lá ao fundo, a falar uns com os outros, e eu olhava para o relógio e dizia-lhes: 'Isto era para começar às 17h'. E eles como uma atitude, do género, ok, nós já vamos. Para um treinador habituado a exigência, profissionalismo, a ter uma determinada organização. Ou te ajustas, ou vais ter muitos problemas.
"O jogador árabe não tem a mesma mentalidade profissional, marcava treino às 17, apareciam às 17h30."
Na Arábia Saudita há quatro clubes grandes, em Jeddah, o Ittihad e o Al-Ahli, e em Riade, o Al Hilal e o Al Nasssr. E nesses clubes esse problema não se coloca tanto. Mas num clube pequeno, numa cidade muito religiosa como é Medina, mais para o interior, mas um bocadinho longe dos grandes centros, era muito difícil impor-lhes o profissionalismo, porque não lhes está no sangue. Eles não percebem porque é que são suplentes e porque é que não são convocados. Tentava-se explicar através dos intérpretes, tens que melhorar isto ou aquilo, mas eles abanavam a cabeça e não percebiam. Na altura tinha três brasileiros, um senegalês, um rapaz da Síria. Os jogadores estrangeiros tinham outra mentalidade, mas num grupo de vinte e tal era muito pouco. E também de facto, a nível de qualidade, a equipa não era das melhores, tanto que acabou por descer de divisão nesse ano. Mas não durou muito a aventura.
O que retirou dessas experiências, em diferentes realidades?
Qualquer experiência nos engrandece, nos amadurece. Falei dos treinadores que foram referências para mim, mas há muitos outros também com quem aprendemos muitas coisas, e muitas coisas que não se deve fazer. Foi bom ter essas experiências, conhecer outras culturas, outras cidades. Encontrei um país muito diferente do que tinha encontrado em 1989, já mais aberto, muito mais evoluído a nível de infraestruturas. Riad é uma cidade fantástica, com todas as condições. As equipas têm grandes complexos desportivos, evoluíram de uma forma extraordinária.
Como correu a sua experiência ao serviço do Lugo, em Espanha, nos escalões secundários, na Primera División RFEF [terceira liga espanhola] em 23/24, precisamente o seu último trabalho?
Ainda não consegui digerir isso. Fui para uma realidade num clube com uma dimensão bastante considerável, que tinha estado cerca de 15 anos na segunda liga, que tinha descido e queria regressar. O projeto foi apelativo e aceitei. Mas encontrei uma equipa completamente esmagada em termos psicológicos pela tal pressão de subir à segunda divisão de uma forma direta, mas as coisas não começaram bem. Podemos ter os melhores métodos de treinos, mas se mentalmente não estamos bem, e se não há um compromisso coletivo não vamos conseguir. Eventualmente fui-me apercebendo do que se estava a passar e fui conseguindo resolver as situações. Retirei-lhes a pressão, cheguei-lhes a dizer que a responsabilidade era minha e começamos a ter resultados. Ganhámos, depois empatámos, voltámos a ganhar e no último jogo em que estive à frente da equipa fomos ajudar ali perto de Valência e ganhámos. No regresso, na viagem de 10 horas de autocarro até Lugo, já se sentia entusiasmo, tínhamos conseguido um compromisso coletivo entre todos, as coisas estavam a correr bem, venho depois de fim de semana ao norte, aqui a Portugal, a viagem também é curta, ligam-me e dizem que a direção estava reunida e que iriam trocar de treinador, e eu fiquei completamente embasbacado, nem queria acreditar.
Isto estava a acontecer depois de termos dado a volta aquilo, depois de uma boa série de resultados, e até hoje não percebi o que é que aconteceu, ninguém me explicou. Desloquei-me até Espanha, rescindi o contrato, mas lá passa-se algo que não acontece em Portugal, mas devia acontecer. Não se discutem valores, mas nesse ano o treinador já não pode treinar mais nessa época na competição. Foi uma surpresa para toda a gente, para os adeptos, que fizeram sentir a sua indignação nas redes sociais, para os jogadores. A Liga era bastante aberta, porque sobe uma equipa de forma direta, acabando por subir o Desportivo da Corunha, e depois outras quatro equipas iriam jogar os playoffs, e nós podíamos perfeitamente ter chegado a essa fase. E uma vez lá, tudo podia acontecer. Foi uma pena, guardo essa mágoa, porque acredito que podíamos ter feito ali qualquer coisa de interessante.
Em relação ao presente e ao futuro, gostaria de voltar ao trabalho em Portugal, ou estrangeiro?
Já tive algumas oportunidades para regressar ao trabalho, recentemente surgiu uma hipótese para África, mas entendi que não estava dentro desses parâmetros, mas terá que ser um projeto que me motive, que me estimule, no sentido de regressar. Obviamente que quanto mais cedo melhor, vamos ver o que é que o futuro diz.
"No Beira-Mar não haviam salários, mas ganhámos muitos dos jogos"
Teve que se medir bem essa vontade de querer voltar ao activo?
Já tive situações que aceitei exatamente por querer trabalhar, e por estar envolvido, e por vezes não pensamos bem nas consequências que podem advir. Houve algumas coisas que correram mal que foi um pouco por aí, por querer trabalhar e por vezes abraçam-se situações… Não há muitos milagres. Os treinadores podem ser os melhores do mundo, mas senão tiverem as condições certas, se as coisas não estiverem ajustadas de forma a haver sucesso, nenhum treinador consegue ter sucesso em determinados contextos. Quero ver se não cometo esse erro novamente.
Com a temporada a decorrer, tem problemas em assumir assim uma equipa a meio da época?
Já fui campeão duas vezes na segunda divisão, também já consegui ir a uma final da Taça da Liga [em 2011/12 com o Gil Vicente] em que eliminámos o Braga e o Sporting, mas continuo a dizer que um dos meus melhores trabalhos foi no Beira-Mar. Também entrei a meio da época, foi a última época em que o clube esteve nas ligas profissionais, e nós nunca recebemos, não houve salários, não houve nada, havia apenas um investidor que foi a pessoa que me convenceu a ir para lá e conseguia suprir as despesas inerentes aos jogos e à logística. Mesmo sem salários e com um plantel muito limitado, de 13 e 14 jogadores, raramente tivemos 18 na ficha de jogo. Mesmo assim fizemos uma série de resultados incríveis, tudo isto com base num compromisso e numa ligação entre entre todos. Fomos claros na mensagem, dissemos: 'É assim, podemos fechar portas, ou por outro lado, sabemos que não há dinheiro até ao fim, mas eventualmente poderá haver dinheiro para a próxima época'.
Criámos esse compromisso, essa ligação entre todos. Eu estava sempre atrás dos diretores. 'Veja lá, meta comida em casa deste jogador'. Não havia salários, mas ganhámos muitos dos jogos. E o que aconteceu, no final da época, é que aqueles mais titulares [saltaram para outros projetos]. O Vítor Oliveira levou jogadores para Chaves, o Alan assinou dois anos pelo Nacional, o Chaparro assinou pelo Estoril, o Manafá acabou por ir para o FC Porto. Conseguimos de uma situação que era muito complicada, sem muitas vezes local para treinar, valorizar uma série de jogadores. Ninguém vai olhar para isto, não há medalhas, mas continuo a dizer que foi dos trabalhos mais incríveis que eu fiz. No Penafiel, também entrei a meio, o clube tinha descido, as coisas também estavam muito más, mas acabámos por fazer uma série de 20 e tal jogos sem perder. No Beira-Mar não havia condições, mas no Penafiel não, na questão dos salários, estava tudo certo. Não tenho problemas nenhuns em assumir esses compromissos.
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