Campeão Mundial em Riade pela seleção de sub-20, com Carlos Queiroz 'ao volante', e conhecido sobretudo pelo seu percurso no Sporting, Gil Vicente e Marítimo, na primeira parte desde entrevista abordamos a carreira de Paulo Alves enquanto jogador de futebol, levantando já um pouco o véu sobre início do seu percurso de treinador.
Aqui, neste longo testemunho, o agora treinador de 55 anos não esquece a influência que três treinadores em especial tiveram ao longo da sua carreira: Carlos Queiroz (na seleção e Sporting), Paulo Autuori (no Marítimo) e de Vítor Oliveira no Gil Vicente. Pela seleção A, somou 13 internacionalizações e sete golos apontados.
Em entrevista ao SAPO Desporto recorda os primeiros tempos como júnior do FC Porto a história da mudança para Alvalade - depois de ter sido gorada a sua saída para o Benfica -, as experiências no West Ham e no Bastia, e o final de carreira, enquanto abono de família do Gil Vicente.
VEJA AQUI A SEGUNDA PARTE DA ENTREVISTA
SAPO Desporto: Como é que surgiu o futebol na sua vida?
"Desde muito menino que pressenti que era algo que me corria nas veias. Desde cedo que me foi detetado algum talento e foi dar seguimento à carreira. Consegui como sub-16, jogando no Vila Real, ser internacional, pela mão do professor Carlos Queiroz. E a partir daí a carreira desenrolou-se, com algumas dificuldades também porque tive uma lesão ainda como júnior no FC Porto que foi bastante grave. Nunca desisti, sofri, mas ultrapassei sempre as dificuldades, e pude ainda chegar a um grande e às seleções."
Como é que percebeu que tinha essa relação com a baliza, e com os golos?
"Era alto desde muito novo, e por ser alto até comecei como defesa central. Estamos a falar dos infantis, iniciados, mas desde cedo logo se percebeu que a minha apetência era outra, eram os golos, e fui para ponta de lança, e foi nessa posição que acabei por fazer a minha carreira."
Foi com Carlos Queiroz que conquistou o Mundial de sub-20, na Arábia Saudita, 1989. Que memórias guarda dessa conquista e do trabalho com o professor?
"Comecei a ir às seleções em 1986, e acabámos por ser campeões do mundo em 1989. Deslocava-me para Lisboa para fazer um estágio de dois dias, e o trabalho incidia num determinado processo e repetíamos até à exaustão. A sistematização do trabalho é hoje comum, mas não o era na altura, e o Carlos Queiroz deu início a isso. Chegamos a Arábia Saudita e praticamente jogávamos de olhos fechados. Tínhamos de tal maneira aqueles processos inculcados, aqueles mecanismos de tal maneira trabalhados que os resultados estão à vista. [Os títulos mundiais que Portugal conquistou em 1989 e 1991]. O Carlos Queiroz foi alguém que de alguma forma mudou o paradigma que existia no futebol português, e também a mentalidade. Nós tínhamos o hábito de nos encolher frente às grandes potências, havia um sentimento de inferioridade, contra seleções como a Alemanha, França, Espanha, e o professor mudou isso. Desde muito cedo ele começou a incutir-nos que não tínhamos que ter medo de ninguém. Ganhámos contra o Brasil, a Nigéria, e conseguíamos dividir o jogo com essas equipas e ganhávamos. O professor Queiroz e Nelo Vingada foram de facto os mentores dessas equipas, que depois se veio a chamar de 'Geração de Ouro'. As recordações são magníficas, quer dos treinadores, quer dos meus companheiros, de toda a gente que fez parte dessas conquistas. Volta e meia ainda nos juntamos, e há um carinho muito grande entre todos, de algo que foi para nós um privilégio enorme."
"Nós tínhamos o hábito de nos encolher frente às grandes potências, havia um sentimento de inferioridade, contra seleções como a Alemanha, França, Espanha, e o professor Carlos Queiroz mudou isso"
O professor Carlos Queiroz também trouxe essa mudança de mentalidade, de que era possível competir para ganhar?
"Um tempo antes de irmos ao Mundial, o professor Carlos Queiroz disse que estávamos ali para sermos campeões mundiais na Arábia Saudita. Nós próprios não tínhamos a noção do que podíamos fazer ou atingir. Ele sabia bem o que estava a dizer e a fazer. Ele sabia muito mais do que nós qual era o nosso potencial, e onde poderíamos chegar. Foi um privilégio muito grande, foi algo que ninguém estava à espera. Só tivemos a noção de que éramos campeões nacionais quando chegámos a Lisboa. Quando vimos aquela multidão é que vimos que tínhamos feito algo especial, e as memórias irão ficar conosco para sempre."
"Depois de sermos campeões do Mundo em Riade, quando vimos aquela multidão em Lisboa é que percebemos que tínhamos feito algo especial, e as memórias irão ficar connosco para sempre"
Estreia-se na Primeira Divisão pelo Gil Vicente, mas é no Marítimo, sobretudo na última época 1994/95, onde acaba por dar nas vistas e depois é contratado pelo Sporting.
"Fui para a Madeira, ainda emprestado pelo FC Porto, o Marítimo quis muito que eu fosse para lá, na altura um senhor chamado Paulo Autuori, alguém que também foi importante na minha carreira. Vivi lá momentos extraordinários, estive lá três épocas, fomos duas vezes à Taça UEFA [n.d.r. agora Liga Europa]. Fomos à final da Taça de Portugal, contra o Sporting, que infelizmente perdemos. Dois golos do meu amigo Iordanov, que mais tarde conheci no Sporting. Foram, de facto, três épocas extraordinárias, a última então foi excelente. Nas primeiras duas épocas não fui um titular indiscutível, mas deixava tudo em campo. Nunca deixei de fazer tudo o que estivesse ao meu alcance. Na terceira época fui titular, extremamente feliz. Fui pela primeira vez internacional A, e fiz uma época fantástica o que acabou por me proporcionar a transferência para o Sporting na época seguinte."
Depois é que dá a mudança para a Alvalade, como é que surgiu o interesse dos leões na sua contratação?
"É uma história incrível. Eu, inicialmente, era para ir para o Benfica, mas não houve acordo entre os clubes. Acabo por ir para o Sporting porque o Iordanov tem um acidente de viação na Bulgária e tinha que estar um tempo de convalescência e o Sporting precisou de contratar um avançado. Falaram com o Marítimo e chegou-se a acordo para vir para o Sporting. Depois de abortada a transferência para o Benfica comecei a pré-época no Marítimo. Estávamos a fazer pré-época na Suécia, e o Sporting estava em Amesterdão. Como depois os clubes chegaram a acordo, apanhei um avião de Estocolmo para Amesterdão para me juntar ao estágio do Sporting."
"Eu era para ir para o Benfica, mas acabo por ir para o Sporting porque o Iordanov tinha sofrido um acidente de viação na Bulgária"
Como é que se dá depois essa transição para o Sporting, um clube grande, de grande dimensão, mas que vivia um período de grande instabilidade, com a constante dança de treinadores e de até presidentes?
"Eu já conhecia a maior parte dos jogadores, das seleções, e tenho a dizer que era um balneário extraordinário. Pessoas fantásticas como o Oceano, Pedro Barbosa, Pedro Martins, Sá Pinto, Marco Aurélio. Era um grupo espectacular, e nesse ano as coisas até me começaram a correr bem. Cheguei um pouco tarde, mas comecei mais tarde a ser titular e fiz muitos golos também, cerca de 15 em todas as competições. Mas o problema foi o seguinte: em três anos de Sporting tivemos nove treinadores e muitas mudanças de presidentes. Ainda assim era um clube extraordinário, de gente boa, deixei lá muito amigos. Houve um período ou outro em que tivemos mais estabilidade, mas por qualquer motivo as coisas descambavam e, ou se mudava de treinador ou de presidente. O espírito de balneário foi sempre bom e profissional. Mas isso às vezes num clube não chega. Ficou o amargo de boca por não ter sido campeão, tive fases boas e menos boas, mas fica sempre o orgulho de ter representado um grande como o Sporting."
Entre o seu percurso no Sporting, e antes do ingresso da União Leiria, tem a oportunidade de viver duas experiências no estrangeiro, primeiro no West Ham (Inglaterra) e depois no Bastia (França).
"Vim embora do West Ham, porque na altura o Sporting tinha mudado de treinador e o Carlos Manuel quis que eu voltasse. Em Inglaterra as coisas começaram a correr bem, mas a minha esposa estava grávida do meu primeiro filho e isso também pesou um bocadinho. Voltamos para Lisboa para estarmos mais tranquilos e foi um pouco por aí. Mas gostava de ter continuado, ou ter tido mais tempo para desenvolver um trabalho diferente. Falava muito com o José Domínguez, que na altura tinha ido para o Tottenham e eu para o West Ham, e a dinâmica era mais ou menos semelhante. Na altura os clubes ingleses não tinham grande organização, era o futebol pelo futebol. Era jogo, finalização, e em termos táticos era 4-4-2 e siga jogo. Mas de alguma forma isso também era apelativo, era um futebol mais puro. Todos queriam ganhar, mas se não se ganhasse não havia problema nenhum, desde que o ambiente fosse bom. O estádio estavam sempre completamente cheio e as pessoas vibravam com o jogo em si, com as equipas que tivessem mais alma, mais coração, mais disputa, mais entrega. E isso também se ajustava às minhas características. O meu forte era o jogo aéreo, haviam muitos cruzamentos, mas estive lá pouco tempo. O apelo na altura pelo regresso foi maior. Tive esses seis meses no Sporting, e depois no final da época surgiu o interesse do Bastia, e financeiramente era bom para toda a gente, e acabei por me mudar para França."
"Na altura os clubes ingleses não tinham grande organização, era o futebol pelo futebol. Era finalização, e em termos táticos era 4-4-2 e siga jogo"
E no Bastia, de que recorda dessa experiência?
"Um futebol diferente, muito mais apoiado na força e no físico. As coisas começaram a correr muito bem, fiz logo um golo na estreia. Contudo, quando sai o treinador, no mês de dezembro, o polaco Henryk Kasperczak, que gostava muito de mim, as coisas mudam. O substituto dele foi o Laurent Fournier, que tinha sido treinado pelo Artur Jorge no PSG. O trabalho físico aumentou, eu nessa altura fui saindo da equipa. Apesar de ter contrato, era impossível para mim ficar porque não me enquadrava. Era muito treino sem bola, era terrível. Cheguei a acordo para vir embora, e é aí que eu assino pela União de Leiria."
Como foi esse regresso a Portugal, para voltar a um clube na Primeira Divisão, e vestir a camisola da União de Leiria?
"No Leiria, na primeira época, as coisas não correram muito bem. Dada a carga física em França, acabei por ter uma pubalgia. Fiz uma boa segunda volta em Leiria, não fiz muitos golos, embora não fosse muito aposta, na altura com o Manuel José. Ele jogavam com três centrais e dois avançados, que normalmente naquele sistema tinham que ser rápidos que era algo que eu não era. Os avançados eram o Derlei [que passou pelo Sporting e FC Porto] e o Duah, e mais tarde o Petar Krpan que também passou pelo Sporting. No final desses dois anos, vim para o Gil Vicente onde fiz mais quatro épocas, as duas primeiras foram extraordinárias, com o Vítor Oliveira que foi um treinador que me marcou muito. Na minha carreira tive muitas lesões, muitos problemas físicos, e acabei por fazer uma última época que já não queria fazer, mas que o presidente Abílio Martins quase impôs que eu ficasse naquele balneário. 'Não há problema nenhum, se não jogas, não jogas, mas quero que fiques no balneário'. Eu já não conseguia... os meus joelhos, os meus pés cheios de entorses. Mas ainda fiz essa época no Gil Vicente."
Com foi trabalhar com o Vítor Oliveira?
"As duas primeiras épocas, antes da despedida, fiz com o Vítor Oliveira e foram espectaculares. Ele tinha um jeito muito direto, muito claro, e conseguia tirar o melhor de todos. Ele sabia melhor o meu estado físico do que eu. Ele brincava muito connosco. Eu gostava dos treinos com bola, mas sem bola era mais complicado. Às vezes chegava a meio do treino e ele mandava-me para banhos e massagens. E eu dizia-lhe. 'Oh Mister, deixe-me treinar mais um bocadinho, isto está a correr bem'. 'Não, não, vai à tua vida, porque se te cai uma peça do joelho, já não há peças para isso'. Nós começávamo-nos todos a rir com o jeito dele, mas a verdade é que chegava ao domingo e estava impecável fisicamente e normalmente fazia sempre golos. E em duas épocas fiz para aí 30 golos. Umas das minhas melhores épocas, e já em final de carreira."
"Eu dizia ao Vítor Oliveira. oh Mister, deixe-me treinar mais um bocadinho, isto está a correr bem'. 'Não, não, vai à tua vida, porque se te cai uma peça do joelho, já não há peças para isso'"
Alguma história em especial que se lembre com ele?
"Eu estava a jogar, ia fazendo golos, estava bem, e nós íamos jogar com o Sporting, o meu antigo clube, e queria fazer esse jogo. Só que nós não estávamos bem, estávamos na luta para não descer. Eu percebi que durante a semana que se calhar não ia jogar, que ia tirar. Mas eu sinceramente, naquela fase já não estava preocupado com isso. Queria jogar, mas se não jogasse não iria fazer um' bicho de sete cabeças', mas eu pressenti que ia sair. Vamos para estágio, e ele não me dizia nada. O jogo era à noite, e na altura do lanche, estávamos num hotel em Braga, chamou-me. Eu nunca o tinha visto nervoso, ele tomava as decisões de uma forma direta, não era pelas costas de ninguém, ele era sempre espectacular. Ele estava ali a divagar, e eu disse-lhe: 'Oh mister, vai-me tirar não é?'. 'Sabes como é, o Manuel é um pouco mais rápido, a ver se fechamos um bocadinho e vamos no contra-ataque. E eu disse-lhe. 'Faça como quiser, não tenha problemas'. E ele ficou aliviado com aquilo, pensando que ia ser injusto. Então eu disse-lhe que íamos é tentar ganhar o jogo. 'Se tiveres que entrar, entras'.
Eu penso que o Sporting é campeão nesse ano, e estamos a perder 1-0 ao intervalo. Ele lança-me ao intervalo, empatamos o jogo e fiz um golo. O Sporting era uma equipa dos diabos, festejamos no balneário, e não falamos mais sobre o assunto. O campeonato foi continuando, fui jogando outra vez não, ele já não me precisava de me dizer nada, até que faltavam para aí umas quatro jornadas para acabar, e nós ganhámos em Alverca. Ganhámos o jogo, e safamo-nos de descer de divisão. E ele no jogo seguinte fez a palestra. 'Eu vou contar aqui uma coisa, o Paulo não se vai importar'. E eu a pensar...o que é que ele vai contar. 'Alguns de vocês ficam doidos por não jogar, e aqui esta homem, que foi internacional, tem uma carreira atrás dele, e ele é que me disse: 'Não se preocupe mister, faça como você entender'. E vocês agora têm que o ajudar!'. Ele não se esqueceu daquilo, e eu naquele dia nem cabia no balneário, fiquei inchado. Era um prazer enorme treinar com ele. Era um treinador extremamente simples, extremamente objetivo, e claro. A carreira dele falou com ele. Carlos Queiroz, Paulo Autuori e Vítor Oliveira foram de facto três pessoas que me marcaram imenso, sem desprestígio por outras pessoas. Mas essas três pessoas estão muito na base da minha formação desportiva."
É precisamente no Gil Vicente que inicia a sua carreira de treinador, como essa foi transição para técnico e como é que se deu esse convite para assumir a equipa?
"No meu último ano quase não joguei, mas tentava ajudar toda a gente no balneário. Na altura o presidente António Fiúza, uma vez que eu era alguém respeitado pelos jogadores e sócios, convidou-me para diretor desportivo. Apesar da inexperiência, montámos a equipas, mas por volta de março as coisas não estavam a correr bem. Eu nessa altura não estava cá, viajei ao Brasil para fazer prospecção e na altura depois de uma derrota em Alvalade, a direção decidiu que iria dispensar o treinador. Na altura disse-me para antecipar o voo e foi aí que soube que o treinador tinha saído. Mas nunca pensei que ele ia pedir-me para treinar a equipa. Faltavam nove jornadas, e estávamos abaixo da linha de água. Consigo alterar o voo, viajo na segunda-feira. Chego na terça-feira de manhã, a minha esposa foi-me buscar ao aeroporto e ele tinha-me pedido para ir a casa dele. Foi aí que ele falou comigo. 'Eu neste momento não tenho dinheiro, e não quero nenhum treinador, tenho algum receio que se a pessoa não se adapte, vamos complicar isto tudo. Assumes a equipa até final? Fiquei em pânico. Tinha muita ligação ao clube, tinha uma boa imagem, morava na cidade. O presidente Fiúza também era muito direto, 'se vês que não consegues…' 'Presidente, deixe-me pensar um bocadinho', disse-lhe eu. 'Não, tens que dar treino, marquei treino para a tarde'. Então respondi-lhe. 'Vamos fazer o seguinte, vou falar com a minha mulher e já lhe digo alguma coisa'. Fui almoçar com ela e ela disse-me, 'se é algo que gostas, tens que decidir'. A minha vida sempre foi campo, sempre foi relva e então avancei. Já tinha tirado o terceiro nível de treinador, e a Liga também tinha uma alínea, que se os treinadores se comprometessem a tirar o próximo curso para o quarto nível podiam treinar na Primeira Liga. Disse-lhe ao presidente. 'Vamos lá, vamos embora'.
Acertámos a equipa técnica, fomos buscar um treinador de guarda-redes, e fizemos esses nove jogos. Foi difícil aos jogadores aceitarem-me, porque muitos tinham sido colegas meus, eram experientes. Perdermos o primeiro jogo frente à União de Leiria do Jorge Jesus e se o céu estava negro, e nesse dia mais negro ficou, mas eventualmente fomos ajustando. Os jogadores foram-se adaptando, e foi um final de época épico e conseguimos salvar-nos na última jornada de uma forma incrível. Tive primeiro que conquistar aquele balneário, tinha jogado com metade daquela equipa, e no início há sempre muita resistência, mas tive que os conquistar e apelar ao espírito deles. Começamos a criar uma certa mística e acabamos por nos safar. Quem fazia parte daquela equipa era o João Pereira [que começou esta época como treinador do Sporting]."
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