Abro o email de trabalho, entre várias mensagens ainda por ler, espreito uma proposta da Sara Silva. Ela faz parte da LLYC, uma empresa global de consultoria de comunicação, e sugere-me entrevistar os atletas que fazem parte da nova campanha da Rexona, cujo mote é "tenho mais para dar".
Este projeto quer inspirar os portugueses a desafiarem os seus próprios limites. Rui Silva (andebol), Filipa Martins (ginástica), Irina Rodrigues (lançamento do disco) e Jorge Pina (pugilismo/atletismo) são os atletas que contam, através de vídeos promocionais, o que os fazem avançar a barreira da superação. Com participações em Jogos Olímpicos e carreiras desportivas de sucesso, estes quatro atletas falam de obstáculos e adversidades. Mas eu precisava de saber mais.
Combinadas as datas com três (Rui, Jorge e Irina) dos quatro atletas, comecei as entrevistas, todas em dias diferentes, através de videochamadas, herança positiva da pandemia. O que começou por ser uma entrevista 'normal' passou a testemunho, de testemunho passou a um ensaio. Este é um ensaio sobre a pressão no desporto.
Irina Rodrigues, campeã nacional no lançamento do disco entre 2011 e 2019 e presença regular em campeonatos da Europa e do Mundo, foi a atleta mais sincera, até porque se mostrou muito sensível aos temas relacionados com a saúde mental. Palavras honestas, diretas e sem medos.
Irina Rodrigues, que tem conjugado a sua carreira como lançadora com o curso de Medicina na Universidade de Coimbra, cujo mestrado concluiu em julho deste ano, partilhou mais detalhes sobre a lesão que a colocou num avião de volta para Lisboa antes de iniciar a participação dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, em 2016.
"Precisei de apoio psicológico e psiquiátrico. Acho que foi o momento mais difícil dos meus 32 anos de vida. Senti aquilo que nós chamamos em medicina da desesperança. Senti muita falta de fé, muita falta de sonhos, tive aquela sensação que estava dentro de um poço e não sabia bem onde é que estava a corda para subir. Sorte que tive o apoio do meu namorado da altura, que nunca me deixou ficar sozinha, tive o apoio do psicólogo da federação e do meu psicólogo desportivo, que foi fazendo terapia comigo. Era um processo, realmente eu estava mal. A partir dali, do fundo do poço, eu só podia olhar para cima e tentar subir. Havia aqui muitos fatores de risco para uma depressão e eu estive em depressão, é um facto. Eu tive uma depressão".
Percebi que precisava da ajuda de um psicólogo neste momento para decifrar o que estes atletas, habituados à pressão do mais alto nível, me estavam a dizer. Jorge Silvério integra a equipa técnica da seleção portuguesa de futsal e Jorge Braz já veio dizer que o papel deste profissional é muito importante. Para o selecionador de futsal, há uma tendência para falar de “falta de mentalidade” quando há insucesso, mas depois “não se faz nada para mudar”.
Fala-se cada vez mais em burnout, depressão, ansiedade, stress... O desporto não é exceção. Estes problemas sempre existiram, mas nunca se escreveu tanto sobre eles como agora.
"Há mais holofotes virados para as questões mentais, logo, é normal que os atletas falem mais deste tema. Começou-se a desabafar mais durante a Covid-19, o que levou a que atletas icónicos também falassem, o que torna mais fácil para outros atletas".
O psicólogo Jorge Silvério já ajudou na composição de vários artigos no SAPO Desporto, em trabalhos como a ansiedade e violência no futebol, assim como problemas nas camadas mais jovens desta modalidade, o ataque a Alcochete ou a desistência de Simone Biles nos Jogos Olímpicos de Tóquio.
"A pressão é um privilégio. Sem pressão não existe desporto profissional. Se aspiras a ser o melhor, tens de aprender a lidar com a pressão e a lidar com esses momentos". Lembrei-me desta frase de Novak Djokovic, em 2021, antes de disputar os Jogos Olímpicos de Tóquio, ao ouvir o que os atletas me iam contando.
"É um dos atletas icónicos que falei há pouco e tem toda a razão. Há poucas profissões com uma avaliação como a do desportista. Os que tem competições semanalmente correm mais risco de sofrer com a pressão, até pelos treinadores nas sessões de treino. Esta pressão pode acabar com carreiras".
Rui Silva, jogador de andebol do FC Porto e capitão da seleção portuguesa, foi o primeiro atleta que entrevistei para esta reportagem. Antes de passar às perguntas, recordei-lhe que tinha estado em sua casa. Na altura, vivia com o colega de equipa António Areia, ele que foi um dos protagonistas da rubrica do SAPO Desporto, o 55 perguntas a... O Rui ajudou-me na produção desse vídeo (podem vê-lo nos últimos minutos e bloopers). Estávamos em 2016, ano seguinte à morte inesperada do seu pai. Cinco anos depois, Alfredo Quintana morria também de forma inesperada.
"Para ser melhor atleta temos de ser melhores pessoas e essa parte é um pouco deixada de lado porque exigem demasiado dos atletas. Passei por momentos difíceis, senti mais motivação e consegui ganhar força para dedicar a alguém, fazer com que a vida tenha mais significado, Apesar de não estarem presentes queria superar-me porque sabia que estava num momento mais em baixo. Acaba por ser uma força extra, até porque eram duas pessoas envolvidas no meu trabalho. Foi o meu pai que desde cedo acreditou em mim e infelizmente não pôde ver presencialmente alguns dos meus êxitos. Com o Quintana tinha objetivos enquanto grupo. Neste tipo de situação ganhamos uma força extra e conseguimos atingir coisas inexplicáveis, coisas que nunca conseguiríamos".
O FC Porto encontra-se a disputar a presente edição do campeonato português na condição de pentacampeão em andebol.
No desporto, a desistência não é bem vista. Entendo que na alta competição haja muita competitividade, daí o nome, mas que mensagem estaremos a passar aos encarregados de educação e também às crianças, seja dentro ou fora do desporto? Uma questão que Jorge Silvério fez questão de sublinhar como tema central desta entrevista.
"No mundo do desporto, de facto, quando se fala em desistir, não é bem vista na maioria das vezes, principalmente no alto rendimento. É preciso ter algum cuidado com a mensagem que passamos, principalmente aos jovens atletas, quer no desporto, quer fora, É importante que estejamos atentos à leitura que os jovens fazem do que acontece no desporto: a pressão, fatores psicológicos, saúde mental... para depois passar as mensagens corretas aos nossos jovens".
Foi a primeira vez que entrevistei Jorge Pina, a quem o jornalista Pedro Miguel Marques entrevistou recentemente para a reportagem Cegar para aprender a ver. Para o antigo campeão nacional de boxe, esse momento deu-se quando perdeu a visão enquanto treinava na luta pelo título mundial. Nas suas próprias palavras, foi aí que aprendeu a ver verdadeiramente. Exemplo de como o desporto pode ser veículo de transformações positivas, tal como me contou.
"Onde há vontade não há limitações. Tenho de saber até onde posso ir e aceitar as dificuldades. Tive de deixar de fazer boxe por causa da minha limitação (visual), aceitei a minha limitação. O que posso fazer para me apaixonar de novo? Fui para o atletismo, tive um problemas nas costas. Não posso correr mais, o que posso fazer para ser feliz? Peguei numa bicicleta. É ir à procura de algo que me dê satisfação. Se quero ser um bom atleta, tenho de ir atrás desse sonho. mas será que consigo? Eu tive de deixar fazer boxe, mas hoje ainda sou apaixonado por boxe. Tenho de reencontrar-me em algo que me dê felicidade e amor. Não devemos guiar-nos apenas pelo que os nossos pais querem que sejamos: um jogador de futebol ou uma bailarina. E eu? O que preciso para me sentir bem?"
Os sinais de ansiedade e depressão podem ser difíceis de detetar, é por isso que a avaliação tem de ser contínua, começando pelas pessoas próximas do atleta. Não sou eu que o digo, mas sim o psicólogo habituado a estes diagnósticos.
"Há um conjunto de sinais que são importantes, quer na depressão quer na ansiedade. É importante que os elementos próximos afectivamente do atleta estejam atentos e procurar ajuda dentro das pessoas especializadas, que atualmente são muitas. A utilização do termo depressão caiu um pouco no exagero, porque basta estar mais triste para estar em depressão. Atenção, depressão é uma coisa bem complicada e grave, temos de ter em atenção quando usamos esta palavra. É normal que no dia-a-dia sintamos tristeza, bem diferente de depressão".
A isto, segue-se uma declaração importante de Irina Rodrigues sobre o tema.
"Eu estava a fazer o luto daquela lesão e ficava triste todos os dias, assim foi durante duas semanas, não era normal. Então falei com o meu psicólogo desportivo que me aconselhou a pedir ajuda a um psiquiatra e eu comecei a tomar um antidepressivo. Da mesma forma que pus um gesso no perónio para sarar, também tomei um antidepressivo para tratar a minha depressão. É isto que as pessoas, às vezes, têm um pouco de dificuldade em admitir. Eu não tenho. Porquê? Para já, porque a depressão não me define, a depressão é um estado, eu estive doente, não estou. Peçam ajuda, não tenham medo de falar sobre o que estão a sentir".
Irina Rodrigues disse-me que pensou em "desistir várias vezes", mesmo estando consciente de que "estava a passar por um processo difícil".
"Na vida temos o livre-arbítrio e, naquele momento negativo, eu tive a possibilidade de escolher se continuava ou se parava e nenhuma das opções era certa ou errada. Também temos que saber parar e eu sei que a minha carreira vai acabar um dia, mas naquela altura não quis tomar essa decisão, estando toldada pelo sentimento depressivo em que estava. Não permiti que esse sentimento de desistência me fizesse sair daquilo que eu creio que é o meu propósito. Eu sinto que nasci para lançar o disco. Eu tenho talento e eu gosto de lançar o disco. Já houve fases em que eu não gostava, fazia-o por obrigação e ia para o treino como muita gente vai para o trabalho, porque me pagavam. A ansiedade existe em todo o lado. Quando estás num desporto de alto de rendimento, em que a pressão é tão elevada, em que tens que estar bem naquele dia do ano, depois de ter estado a treinar durante 11 meses, claro que há risco de depressão pós-ansiedade. Isto requer muito apoio mental, trabalho de um psicólogo ou terapeuta que ajude a lidar com as emoções do atleta que vai competir a alto nível, de forma constante. E não se fala muito disto na comunidade desportiva porque ainda se associa muito a doença mental à fraqueza".
Apesar das várias tentativas e do tempo esperado, não consegui entrevistar Filipa Martins, ela que disputou recentemente os Mundiais de Ginástica na Antuérpia e foi da cidade belga que trouxe uma vaga para os Jogos Olímpicos de Paris.
"Há atletas que querem estar focados na prova e não querem que nada os distraia, tal como as consequências de uma publicação nas redes sociais. Com alguns atletas com quem trabalhei nos Jogos Olímpicos mais recentes a estratégia passou por não estar nas redes sociais, para estarem concentrados na sua tarefa".
Esta última declaração de Jorge Silvério serviu também para lhe perguntar sobre a sua opinião dos mental coaches, uma nova corrente motivadora, em nada semelhante com o trabalho dos psicólogos, e que apregoam frases como "Se visualizarmos com força os nossos sonhos/objetivos realizar-se-ão"
"Caiu-se no extremo. É preciso cuidado com esta confusão, porque estamos a passar uma mensagem errada, nada se consegue sem trabalho. Não é só pensar positivo. Qualquer pessoa se pode intitular mental coach, depois de uma formação de poucas horas. Antes de recorrer à ajuda dos mental coach, informem-se, porque já se viram maus exemplos".
Nove em cada dez crianças inquiridas num estudo da Unicef Portugal consideram que as atividades desportivas aumentam a sua confiança e 78% dizem que tem um impacto positivo na redução da ansiedade. Divulgado na véspera das comemorações do Dia da Criança, o inquérito, realizado em colaboração com a Direção-Geral da Educação (DGE), pretendeu avaliar o impacto das atividades desportivas no bem-estar emocional e psicológico das crianças.
Atletas, treinadores de alto rendimento e seleções nacionais têm agora acesso facilitado a apoio na saúde mental, beneficiando de um protocolo entre o Instituto Português do Desporto e Juventude (IPDJ) e a Cruz Vermelha Portuguesa (CVP). O acordo tem como suporte a vasta rede de profissionais da Cruz Vermelha a nível nacional, com cerca de 150 estruturas e 200 psicólogos em todo o país.
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