"Não quero saber se é difícil, apenas se é possível!". É este o lema com que Nuno Vitorino se apresenta. Bem-disposto, ótimo conversador, com opiniões bem vincadas sobre aquilo em que acredita, é um exemplo de superação e de como o desporto pode ser um veículo de afirmação pessoal para todos.
Depois de um acidente com uma arma de fogo, numa brincadeira com um amigo, o ter deixado tetraplégico quando tinha 18 anos, entrou numa piscina como etapa do processo de reabilitação. Mas acabou por chegar à seleção nacional de natação adaptada. Tornou-se no quarto melhor atleta do mundo na sua especialidade e participou nos Jogos Paralímpicos de Atenas, em 2004. Anos mais tarde sentiu o chamamento do surf, criou uma associação destinada a promover o Surf Adaptado e contribuiu para o desenvolvimento de uma modalidade que estava então ainda a dar os primeiros passos no mundo. Em outubro último, em Bristol, trouxe para Portugal mais um título, ao vencer o campeonato britânico de surf adaptado.
Tem 43 anos. Mas não parece. Nada mesmo. "Vou contar um segredo: o cloro conserva. Tantos anos na piscina serviram para alguma coisa. E o sol também ajuda…", diz meio a brincar, meio a sério.
Um rapaz como qualquer outro, um acidente, e dois momentos que o fizeram aceitar a realidade e tornar-se num campeão
Nuno Vitorino começou a praticar desporto aos seis anos. "Nasci em 1977 e aos seis anos comecei a fazer natação, porque não venho de famílias ricas e era a única atividade que me conseguiram colocar naquela altura. Não havia as actividades extracurriculares que há hoje na escola", recorda. Era, diz, um rapaz normal, como tantos outros nascidos naquela era. "A minha vida era muito ir à escola, fazer os trabalhos e brincar nas ruas. Naquela altura podia-se brincar na rua, às pedradas… parti a cabeça 12 vezes, por isso acho que tive uma infância muito feliz", diz entre risos.
"parti a cabeça 12 vezes, por isso acho que tive uma infância muito feliz"
Dos 12 aos 18 anos praticou bodyboard. "Fui trabalhar para conseguir comprar material, porque não havia as 'Dechatlons' que há hoje. Antigamente era tudo muito mais caro", lembra. Mas, aos 18 anos, a sua vida iria mudar.
"Sem querer, um amigo dispara uma arma que não sabia que a arma estava carregada, e deixa-me tetraplégico. Foi em 1995. Éramos dois jovens inocentes, que estavam a ver uma arma. Ele disparou e acertou-me no pescoço". É assim que Nuno recorda o momento, com a naturalidade de quem percebe que não é aquele momento que define o que ele é.
"Quando me vêem na rua o que salta à vista é que eu estou numa cadeira de rodas. Mas aquilo que eu tento demonstrar é que mexo os braços", sublinha.
O processo de reabilitação, recuperação e de encarar a realidade foi longo. “Passei dois anos após esse acidente em que tive de reaprender a viver. E quando digo viver não é respirar. É coisas simples, como comer, sair de um sofá para ir para uma cadeira de rodas, calçar umas meias…vestir…Houve um período de adaptação, claro que ninguém fica alegre por deixar de andar, mas percebi que era algo com o que tinha de aprender a viver”, explica.
Ao fim desses dois anos, a primeira conversa que iria marcar a sua vida. Com uma médica. “Ela disse-me concretamente: ‘Nuno, esquece. Nunca mais vais voltar a andar. Estás a perder tempo. Otimiza aquilo que mexe, nunca vi um tetraplégico a mexer tão bem as mãos. Vive com isso’. Claro que no momento lhe chamei, por dentro, todos os nomes que podia. Mas foi a partir daí que aprendi a viver com isso”. Nuno parou, então, de tentar recuperar o que não era recuperável e começou a viver com o que tinha.
"Queres andar por aí a fazer cócegas à água como as velhinhas, ou queres realmente ser um dos melhores atleta de mundo?"
Em 1998, a segunda conversa marcante. “Voltei às piscinas como forma de recuperação. E um treinador passou por mim e perguntou-me: ‘Queres andar por aí a fazer cócegas à água como as velhinhas, ou queres realmente ser um dos melhores atleta de mundo?' E pronto, integrei a seleção nacional de natação adaptada e tornei-me na altura no quarto melhor atleta do mundo. Fui aos Jogos Olímpicos de Atenas, em 2004”.
O adeus à natação e o chamamento do Surf
Em 2006 abandonou a carreira de alta competição na natação. E foi então o Surf entrou na sua vida. "Pensava eu que estava livre dos treinos e dessas coisas. Mas, em 2009, estava em Carcavelos, senti o chamamento para voltar à água e pronto. Aventurei-me no surf, com os meus amigos. De início nem tudo correu bem, mas começámos logo a estruturar como podíamos fazer melhor", conta.
"Os meus amigos desafiaram-me a fundar a Associação Portuguesa de Surf Adaptado e abrimos o surf a todas as pessoas com deficiência. Foi um pouco por tentativa e erro, porque no mundo também ainda havia pouca coisa. Fomos conversando com o Brasil, Costa Rica, EUA para perceber como podíamos trabalhar o surf adaptado e levar pessoas com deficiência para dentro da água", recorda.
Esta entrada nesse mundo foi, confessa, feita de forma até algo inconsciente. "Fomos desbravando caminho, à medida que a modalidade se ia desenvolvendo no mundo, e fomos também contribuindo para esse desenvolvimento, com a ajuda da própria Federação Portuguesa de Surf (FPS), até porque, como todas as federações, a isso é obrigada por decreto do Governo de 2012, tendo de englobar competitivamente o desporto adaptado. A Federação percebeu, então, que tinha atletas capazes de competir e não apenas participar. Ou seja, lutar por finais e por medalhas. E começou a desenvolver esse projeto de alto rendimento no surf adaptado", explica Nuno Vitorino.
Mas o que é, afinal, o Surf Adaptado
O SAPO Desporto foi tentar perceber um pouco melhor, junto da Federação Portuguesa de Surf, o que é o Surf Adaptado e qual a sua realidade neste momento, o nosso país.
"É o Surf praticado por pessoas com deficiências motoras, visuais e psicológicas. Neste momento a ISA [International Surf Association] só tem classes para deficientes motores e visuais", explica-nos Fernando Aranha, presidente da FPS.
"A sua importância tem crescido com o aparecimento gradual de novos atletas, com bons resultados, e a sua popularidade torna expectável o aparecimento de mais atletas federados. Não temos o número de praticantes ao certo, porque muitos não estão federados, mas tem vindo a crescer e já existe em Portugal um número de associações que trabalha essa área", prossegue o líder fedarativo.
"A alta competição não é para todos, é para os atletas que chegam lá e acreditam que vão ganhar isto"
Nuno Vitorino acrescenta mais alguns dados. "O surf adaptado em Portugal divide-se em recreação, terapêutico e competitivo. A nível do recreativo, neste momento, estamos a falar de cerca de mais de 5.000 participantes que já experimentaram em Portugal. No terapêutico estamos a falar de 10 atletas que utilizam o surf como forma reabilitação e no competitivo estamos a falar de quatro/seis atletas de nível mundial. Porque a federação de surf tem isso na sua génese: quando um atleta vai, não vai para competir, vai para ganhar. E tem mesmo de ser assim. A alta competição não é para todos, é para os atletas que chegam lá e acreditam que vão ganhar isto", frisa.
Nuno acredita mesmo que o Surf Adaptdo - ou 'parasurf', como começa agora a ser chamado - acabará, mais tarde ou mais cedo, por se tornar modalidade paralímpica, tal como o Surf o passará a ser modalidade olímpica já nos próximos Jogos Olímpicos. "Não tenho a mínima dúvida de que o Surf adaptado vai chegar aos Jogos Paralímpicos. Num prazo de 10 / 12 anos ou talvez antes. Em França, em 2024, sabemos que não vai acontecer, mas em 2028, que é provável que seja em Los Angeles, acredito que aconteça. Já houve até uma candidatura, mas na altura tínhamos de passar por vários processos. Agora está bem encaminhado e acredito que seja apenas uma questão de haver mais atletas e mais países. Já não vai ser para mim, mas vai acontecer", garante.
Título no campeonato britânico de surf adaptado, em outubro, no regresso à competição
Para já, o sucesso dos surfistas portugueses nesta vertente do surf tem sido assinalável e são já vários os resultados dignos de registo alcançados, de acordo com dados facultados pela FPS.
Nos Europeus de 2019, os primeiros de sempre, nos homens Nuno Vitorino foi primeiro na categoria AS 5 Assist, com outros dois surfistas (Camilo Abdulá e Nuno Maltez) a conquistarem igualmente medalhas, enquanto Marta Paço se sagrou campeã europeia feminina na categoria ASVI (surfistas com deficiências visuais).
Antes, Nuno Vitorino tinha já conquistado o bronze no Mundial de 2018, com Marta Paço a seguir-lhe o exemplo na edição de 2019, em que Nuno foi quarto classificado.
"Enquanto estiver a ganhar sei que estou no caminho certo"
E, recentemente, em outubro, em Bristol, nos Campeonatos Britânicos de Surf Adaptado, mais um título para Nuno Vitorino. Foi a prova que marcou o regresso à competição, interrompida pela COVID-19, e acabou por ser um título com um sabor diferente, confessa. "Teve um sabor agridoce. Foi amargo por um lado, porque sei que não estavam lá todos os atletas com quem gostava de competir. Mas, por outro lado, teve o sabor doce de pensar ‘Estou de volta!’ E enquanto estiver a ganhar sei que estou no caminho certo", sublinha.
Um título para o qual faz questão de dividir o mérito com muitos outros que o apoiam, ainda para mais com as condicionantes atuais. "Há também uma palavra que tenho de deixar a todo o meu staff, a todos os que fazem parte da minha equipa e à Federação Portuguesa de Surf. E, neste momento tão conturbado, também às embaixadas, de Portugal em Inglaterra e de Inglaterra em Portugal, que tudo fizeram para conseguirem que eu fosse competir. Tive de fazer todos os testes e ficar em isolamento como todos os outros atletas, porque não sou diferente de um Miguel Oliveira, por exemplo, apenas tenho menor visibilidade e percebo isso porque são desportos diferentes. Mas tenho o mesmo acompanhamento e o mesmo reconhecimento por parte do governo. E isso só posso elogiar", acrescenta.
A COVID-19, naturalmente, veio afetar a vida de Nuno Vitorino, sobretudo a nível da alta competição (conta até que estava a poucas horas de participar no seu primeiro heat nos Mundiais de 2020, em fevereiro, na Califórnia, quando a prova foi interrompida e teve de regressar a Portugal). Mas Nuno salienta que, para quem tem uma deficiência física até terá sido mais fácil lidar com a situação.
"Veio limitar e restringir a nossa liberdade, mas montei um ginásiozinho e todos os dias treino em casa. Faço cerca de 4 toneladas de peso em carga diariamente e quando posso ir para a água vou para a água, quando tenho alguém que vá comigo e sei que é seguro. Se calhar, para as pessoas com deficiência não é tão difícil de entender como o é para o resto da sociedade. Qualquer pessoa com deficiência passou certamente meses no hospital. Já estamos habituados a estas realidades", lembra.
O segrego do sucesso dos portugueses no desporto adaptado e paralímpico
E é talvez por essa força e capacidade de superação pela qual têm de passar, aliada à luta que têm de travar numa sociedade portuguesa ainda não totalmente preparada para os receber, que reside, para Nuno Vitorino, a explicação de tantos e tantos êxitos alcançados ao longo dos anos por atletas portugueses com deficiência.
"Temos tantas barreiras que, muitas vezes, para nós competir acaba por ser a parte mais simples"
"O segredo é simples. É a sociedade. Temos tantas barreiras que, muitas vezes, para nós competir acaba por ser a parte mais simples. Tenho que subir degraus, tenho a calçada portuguesa, tenho de escolher um restaurante a pensar se vou ou não conseguir entrar lá, ou estacionar perto. Tudo isto vai criando barreiras, sejam físicas ou mentais, que como imaginam também são muitas. Portanto competir, para nós, atletas paralímpicos, é o mais fácil. Não estamos num país e numa sociedade tão inclusiva como a de outros países. Só agora estão a ser dados pequenos passos. E começa com pequenos pormenores, como termos agora uma secretária de estado que é cega. Logo, é alguém que vive por dentro o problema", explica.
"Mas nós, pessoas com deficiência, também temos culpa nisso. Porque por muitos anos nos acomodámos. Não tínhamos voz, nem queríamos ter voz. Por isso, esta é uma palavra que deixo às pessoas com deficiência: ergam-se, formem-se, porque ninguém lhes vai dar nada e isto tem de começar por elas. Não podem ficar sentados no sofá e não fazer nada. Têm de ir à luta, entrar nos movimentos associativos e políticos e tentar mudar a coisa por dentro. Porque críticos temos muitos, mas pessoas nesses movimentos, são muito poucas. Eu só tenho voz porque sou alguém no desporto. Temos de usar o que temos ao nosso dispor e ser os melhores no mundo disso. Se eu fosse um entregador de piza ia ser o melhor entregador de piza do mundo, se fosse mecânico ia ser o melhor mecânico do mundo. E enquanto atleta o meu objetivo é ser o melhor do mundo", acrescenta.
O orgulho de ser uma inspiração para os outros
Para além dos treinos, Nuno trabalha na Câmara Municipal de Lisboa, dá aulas na Universidade Lusófona e na Escola Superior de Desporto de Rio Maior e é frequentemente convidado a participar em palestras.
"Dou aulas a futuros treinadores, de várias modalidades. Capacito treinadores para poderem trabalhar com atletas com deficiência. Na Universidade Lusófona, onde dou aulas, tudo o envolve desporto adaptado passou por mim. Desde boxe, patinagem ou surf, que é o que dou mais, porque é o que sou mais experiente”, explica.
Além de tudo isto, gosta de sentir que pode ajudar outros, com o seu exemplo.
“As pessoas aprendem mais pelos exemplos, do que propriamente pelas palavras. E ter um exemplo como alguém como eu, ou alguém mais mediático, vem desmistificar um pouco o que é a deficiência de uma pessoa e ter um problema destes. Porque não é o fim em si mesmo…a deficiência é um caminho. Um caminho árduo, que tem de se trilhar, porque a sociedade não é suficientemente inclusiva. E acho que esta minha ideia pode inspirar outros e mostrar aquilo que é o meu lema, ao nosso lema de vida, que é não quero saber se é difícil, apenas se é possível. Focar na possibilidade e não na impossibilidade. Quando vou trabalhar, ou quando vou aos campeonatos, ganho pelo que valho e não pela minha deficiência. E é isso que tento transmitir nas minhas palestras”, faz questão de frisar.
O último objetivo e o legado que fica feliz por deixar
Aos 43 anos, o que falta então a Nuno Vitorino alcançar? "Tenho ainda uma meta na minha carreira, porque acho que ela já se encaminha para o fim e se calhar até já devia ter tido um final. Mas quero ser o próximo campeão do mundo de surf adaptado. Esse é o meu principal objetivo agora. Não sabemos quando vai ser o próximo campeonato, mas assim que for marcado estarei lá. Pela minha experiência, diria que em 2021 não será marcado. Estaremos a falar de 2022, porque em 2021 haverá Jogos Olímpicos e Paralímpicos e muito a acontecer", lembra.
Mas faz questão de frisar: "Não é um sonho, é um objetivo. Eu não sonho com isso, tenho esse objetivo. E o objetivo tem de ser ganhar. Não gosto de ouvir um atleta dizer que foi bom, porque foi lá competir. Para mim, o desporto não é aquilo que dizem, que o importante é participar. Para mim, o desporto de alta competição não é para participar, é para ganhar!".
Cumprido esse objetivo, o que ficará então do legado deixado pela sua carreira? Nuno diz que a sua principal medalha é mesmo ter fundado a SURFaddict, Associação Portuguesa de Surf Adaptado.
"O principal que vou deixar é ter fundado a associação de surf adaptado e ter aberto o surf a pessoas com deficiência. Acho que é a minha principal medalha, apesar de ter, claro, outras que me deixam muito satisfeito, como ser o atual campeão da Europa ou ter sido o quarto melhor atleta do mundo. Mas acho que o meu principal legado – e aquilo que me faz todos os dias acordar com um sorriso – é perceber que a associação por mim fundada e que tem agora mais gentea trabalhar nela faz a diferença na vida de outras pessoas. E saber que o surf se tornou num desporto democrático, que é para todos", refere.
Esse legado, reconhece Nuno, só é possível graças ao que o desporto lhe ensinou e proporcionou. "Não gosto muito da expressão 'reinserção social', porque a verdade é que nunca estive fora da sociedade. Mas posso dizer que o desporto moldou o meu carácter, moldou a minha forma estar na vida. Todos os dias me ensina a ser competente. Não saio de casa sem fazer a cama, com a casa desarrumada ou com roupa no chão. Porque o desporto ensina que não pode haver falhas e que todos os segundos, todos os milésimos de segundo contam. Se não tivermos tudo enquadrado, as coisas não vão funcionar. Não conheço nenhum atleta de alta competição que seja desarrumado, ou que seja mal encarado, que seja má pessoas. Porque se assim não for não será um vencedor", termina.
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