O jurista e professor universitário Miguel Poiares Maduro considerou hoje em tribunal que as revelações efetuadas pelo site Football Leaks contribuíram para maior transparência e escrutínio reforçado no futebol, criando pressão que sejam efetuadas reformas no setor.
“O Football Leaks teve algum impacto, seguramente. O que conheço é sobretudo através de revelações feitas por jornalistas, com base em informação revelada pelo Football Leaks e que tem trazido alguma pressão no sentido de reforma”, afirmou o antigo ministro Adjunto e do Desenvolvimento Regional no governo liderado por Pedro Passos Coelho, que foi ouvido como testemunha na 40.ª sessão do julgamento, em curso no Tribunal Central Criminal de Lisboa.
Miguel Poiares Maduro justificou: “As revelações feitas são seguramente de interesse publico, pelo menos a maioria das que conheci pelos jornais, na medida em que revelam conflitos de interesse e, nessa medida, tiveram um contributo positivo para a transparência do futebol, infelizmente, ainda insuficiente, na minha opinião”.
No currículo do jurista está também uma passagem de cerca de 10 meses pela presidência do Comité de Governação da FIFA, entre julho de 2016 e maio de 2017, que lhe permitiu ter um conhecimento mais aprofundado da realidade do futebol e originou uma visão muito crítica em relação à organização e modo de funcionamento das suas principais estruturas.
“A cultura de organização e funcionamento do futebol e das suas organizações, incluindo a ausência de mecanismos de escrutínio, é originária do tempo de quando os clubes eram amadores. Mas hoje o futebol é algo equivalente a 3,7% do PIB europeu e essa atividade está na mão de organizações que mantêm formas de governação completamente arcaicas e que funcionam como cartel político, com uma fortíssima concentração de poder no topo”, analisou.
Por conseguinte, a testemunha arrolada pela defesa do arguido Rui Pinto defendeu que “a noção de Estado de direito é estranha à organização do mundo do futebol” e que este mundo se regre por uma “aplicação seletiva das regras”, com base em cálculos políticos e económicos, sem deixar de condenar que estruturas como a FIFA e a UEFA ajam, simultaneamente, como “reguladores e agentes económicos”, praticamente inviabilizando a ideia de autorregulação.
“Exige trabalhar a montante na cultura e é essencialmente um problema de regulação. E essa regulação não vai ser criada internamente. Como qualquer cartel, não se vai reformar a si próprio e a reforma vai ter de ser imposta pelo exterior”, notou, explicando o porquê da curta duração desta experiência: “Estive pouco tempo porque estive lá a fazer alguma coisa, se me permitem a piada”.
Miguel Poiares Maduro foi ainda questionado por causa de um artigo de opinião que escreveu e sobre a sua posição relativamente à utilização de informação obtida de forma ilegal. A este nível, o jurista e doutorado em Direito expressou somente uma visão geral, independentemente do caso concreto do Football Leaks.
“Há duas coisas: a prova poder ter sido obtida ilegalmente e ser punida nesse âmbito, outra é essa informação poder ser usada noutros processos”, disse, reforçando: “Independentemente da origem ilegal ou não dessa documentação, se suscitar matéria de interesse público vale a pena discutir. Outra questão é saber se essa documentação deve ou não ser usada em tribunais: a minha opinião é muito mais aberta do que aquela que sei ser dominante em Portugal”.
Já sobre o Luanda Leaks, cuja origem das revelações teve também o criador do Football Leaks na sua origem, centrando-se nos negócios da empresária angolana Isabel dos Santos (filha do antigo presidente José Eduardo dos Santos), Miguel Poiares Maduro subscreveu também a tese de estar em jogo “matéria de interesse público” e condenou o envolvimento de “gabinetes de advogados em arquiteturas jurídicas” que, aparentemente, tiveram como objetivo a ocultação de movimentos financeiros e cuja origem teria, alegadamente, “atividade criminosa”.
“Foram importantes porque revelam a existência de um padrão de comportamento por parte de responsáveis de outro país com impacto na nossa economia, suscitam indícios de potenciais crimes e revelam também algum tipo de comportamento - que, pelo menos do ponto de vista ético, me parece duvidoso - de juristas que auxiliavam na construção de edifícios jurídicos para evadir às normas”, resumiu.
Igualmente ouvido esta manhã foi o diretor do Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação, Gerard Ryle, responsável pela divulgação dos trabalhos sobre o caso Luanda Leaks. A testemunha, ouvida por videoconferência a partir da Austrália, defendeu a validade e legalidade do trabalho efetuado entre 2019 e 2020, assinalando o respeito pela lei dos Estados Unidos.
“Nenhum jornalista deve recusar a divulgação de informação de interesse público. No direito americano não se distingue a origem da informação se esta tiver interesse público. Cumprimos com a lei americana nos seus termos”, vincou, manifestando ainda a sua impressão de Rui Pinto: “A minha impressão era a de que ele era sincero e que tudo o que tinha feito no que toca à libertação dos documentos tinha a ver com a preocupação que dava ao combate à corrupção”.
Rui Pinto, de 32 anos, responde por um total de 90 crimes: 68 de acesso indevido, 14 de violação de correspondência, seis de acesso ilegítimo, visando entidades como o Sporting, a Doyen, a sociedade de advogados PLMJ, a Federação Portuguesa de Futebol (FPF) e a Procuradoria-Geral da República (PGR), e ainda por sabotagem informática à SAD do Sporting e por extorsão, na forma tentada. Este último crime diz respeito à Doyen e foi o que levou também à pronúncia do advogado Aníbal Pinto.
O criador do Football Leaks encontra-se em liberdade desde 07 de agosto, “devido à sua colaboração” com a Polícia Judiciária (PJ) e ao seu “sentido crítico”, mas está, por questões de segurança, inserido no programa de proteção de testemunhas em local não revelado e sob proteção policial.
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