Treze dias no fio da navalha, a grandes velocidades, numa mota que chega a atingir os 160 km/hora. O perigo à espreita em cada pedra, cada buraco, cada duna na Arábia Saudita que, apesar de enormes e imponentes, nunca foram divãs. Bruno Santos saiu do Dakar 2024 com o título de vice-campeão entre os estreantes nas motos, numa prova onde superou todas as suas expetativas.
O título de melhor 'rookie' haveria de ficar para o austríaco Tobias Ebster, o mesmo que já tinha batido o motard português no Abu Dhabi Desert Challenge em 2023, na categoria 'Road to Dakar', onde o piloto natural de Torres Vedras terminou no quinto lugar na classe Rally 2.
Na Arábia Saudita, o bicampeão nacional de Rally Raids acabou em 28.º da geral nas motos, sendo o segundo melhor português, apenas batido por António Maio, que foi o 18.º. Mário Patrão (Honda) foi o 29.º e melhor dos veteranos (pilotos com mais de 45 anos) pelo terceiro ano consecutivo. Alexandre Azinhais (KTM) fechou a sua participação no 64.º lugar.
Na memória, ficam a beleza das paisagens, a velocidade com que se anda no deserto e o sentimento de dever cumprido. Mas também algumas lições para o futuro. Porque para quem participa, o Dakar é uma lição para a vida.
Além de ser segundo entre os estreantes, Bruno Santos viu o seu capacete ser eleito o mais original e bonito entre todos os pilotos de motos em prova. Um capacete desenhado e decorado por Eduardo Códices e que representa a zona Oeste de Portugal.
FOTOS: Imagens da carreira de Bruno Santos
Um sonho preso numa superbactéria
O 'bichinho' do Dakar começou a manifestar-se em 2018, quando Bruno Santos venceu o Rali Raid em Portugal, e ganhou definitivamente forma no ano seguinte, com a excelente participação no Merzouga Rally, em Marrocos. Em 2020, o diretor comercial de 36 anos começou a preparar-se para participar na mítica prova, na Arábia Saudita. Mas o sonho seria adiado.
"Arranjei a mota em 2021 e inscrevi-me em 2021 para ir correr o Dakar de 2022. Mas era importante fazer um Rali antes do Dakar 2022, alinhei-me para ir ao Rali de Marrocos que acontecia em outubro de 2021. Mas ali tive um acidente, parti a perna. Vim para Portugal, fui operado, faltavam três meses para o Dakar 2022. Ainda houve a possibilidade de lá estar mas, após consultar os médicos, percebemos que a recuperação não estava a acontecer como devia, então tive de abandonar a ideia. Então pensei, 'temos de adiar um ano este Dakar, vamos em 2023'", contou ao SAPO Desporto.
Mas ainda não era desta. Após a operação, os médicos descobriram que a recuperação estava atrasada. Depois chegou a pior notícia.
"Ao fim de três meses devia ter calo ósseo mas não tinha. E de repente aparece-me uma infeção hospitalar grave na perna. Quando fui operado, fiquei lá dentro com uma super bactéria. Inicialmente estava adormecida mas depois apareceu quando eu já estava sem muletas. Estive vários meses a antibióticos, a tentar tratar, não foi possível, então tive de ser submetido a uma nova cirurgia. [...] Com tudo isto, nem sequer pude estar no Dakar de 2023 porque no final de 2022 ainda andava a curar isto", conta.
Nesta altura, "tudo passou para segundo plano" e Bruno Santos "só desejaria recuperar o andar normal".
Após meses de recuperação, já com o Dakar 2022 em andamento, o motard português decidiu que tinha de ir ao Rali de Abu Dhabi, a segunda prova do Campeonato do Mundo de Rali Raids, no final de fevereiro. Longe da forma física, a prova serviria para Bruno testar as suas capacidades, após quase perder uma perna.
Durante cinco dias, andou por terrenos semelhantes ao Dakar, em areia e pedras, (Abu Dhabi é vizinho da Arábia Saudita). Correu melhor do que esperava. O derradeiro teste, antes do Dakar 2024, seria fazer mais umas provas do Campeonato Nacional de Todo-o-terreno, como fazia habitualmente.
Recuperado da lesão, Bruno começou a preparar o Dakar 2024 com um ano de antecedência, aos comandos da sua Husqvarna FR 450 Rally (do grupo KTM), de 450 cilindrada, o limite máximo permitido. Em Portugal, a preparação foi mais física, com treinos de cárdio e força muscular.
Sem um deserto com as mesmas caraterísticas que iria encontrar na Arábia Saudita, Bruno Santos socorreu-se dos seus 12 anos de experiência no enduro para simular em Santiago do Cacem e Marinha Grande (areia), e ainda na Serra D’Ossa, no Alto Alentejo (pedras) as condições que poderia enfrentar nos 7.881 quilómetros, entre Al-Ula e Yanbu, na Arábia Saudita.
Não há Dakar sem peripécias: uma costela partida na 1.ª etapa e dores até ao final
Bruno Santos terminou com uma desvantagem de 02h, 55 minutos e 16 segundos do vencedor entre os estreantes, numa prova onde teve apenas uma penalização de 41 minutos. Apesar de esta ser a sua primeira experiência na mítica prova de todo-o-terreno, o piloto de Torres Vedras teve uma boa prestação. Mas não foi fácil encontrar o ritmo nos primeiros dias.
Na primeira semana, navegar era difícil por causa do pó. E quando Bruno Santos acelerava apanhava grupos de quatro, cinco pilotos, o que tornava difícil progredir.
"Nas primeiras etapas, muitos pilotos vêm ali em grandes ritmos, de andar para a frente, de avançar na pista, da sair da zona do pó, de ganhar lugares", conta.
Depois, um erro de navegação no prólogo acabou por ter influência no resto do rali.
"Tinha que passar 50 metros antes de uma pedra e passei depois e não apanhei o waypoint [n.d.r. ponto de referência, marca um local], tive de voltar atrás. E ao fazê-lo, perdi alguns minutos. Mas numa especial como o prólogo, que é curta, torna-se logo mau porque perdemos muitas posições ali", explica.
Assim, teve de sair mais tarde na primeira etapa e apanhar muito pó dos primeiros pilotos, tornando difíceis as ultrapassagens: "Quando avançava um bocadinho mais apanhava pilotos que vinham atrás com muita vontade em querer ultrapassar, passavam e faziam pó, não víamos bem a pista, eles enganavam-se e enganavam-nos a nós também. Estive uns três, quatro dias nisso, a tentar desenvencilhar disso", lamenta.
Numa prova dura, física e mentalmente, gerir tudo da melhor forma, encontrar o ritmo certo e decidir o quão rápido se pode ir foi um desafio gigante. O perigo está à volta e um centímetro para um lado pode deitar por terra o esforço de anos.
"Na primeira etapa tive uma pequena queda em cima de pedras, parti uma costela, tive muitas dores durante todo o rali, andei ali um pouco limitado, mas isso faz parte. Na sexta etapa tive uma corrente partida, andei uma hora a recuperar. Foi um momento chato: foi numa duna, estava calor, o sol a bater, o stress a reparar aquilo, não estava a conseguir. Houve quem parasse para me dar uma mãozinha, foi o que me safou", recorda.
Para Bruno Santos, "mentalmente, a gestão do nível que tinha de dar ao acelerador" foi o mais difícil porque todos os dias os pilotos estão "no fio da navalha, com muitos perigos à volta".
"O que me custou muito nos primeiros dias foi o doseamento da velocidade, de forma a não ter problemas, mas também de forma a ter uma boa performance no final: adaptar-me àquele tipo de prova, de piso, da zona, onde nunca tinha estado. Foi essa dificuldade de gerir o dia a dia e depois saber quanto esforçaria num determinado dia e no dia seguinte teria mais do mesmo", explica.
Só depois da etapa maratona de 48 horas é que o piloto de 36 horas encontrou o seu ritmo, após a dureza do percurso ter feito uma triagem entre os pilotos.
"Sabia o que era andar em cima de pedras, na areia, mas a perceção dos locais, o tipo de perigos que aparecem, como aparecem, como são sinalizados, a nossa concentração..."
A ansiedade do dia seguinte, 'o que virá amanhã?' tinha de ser gerido com pinças, até porque nem sempre as informações passadas pela organização coincidiam com o que os pilotos encontravam: "Havia uns briefings em que parecia que ia ser sempre a rolar e depois chegávamos na etapa, tínhamos muita pedra, outras a malta ficava um bocadinho mais assustada e acabava por rolar um pouco mais, havia sempre ali uma incerteza".
O dia a dia do Dakar
E como era o quotidiano nas duas semanas de prova? Bruno Santos conta.
"Acordávamos entre as 04h, 04h e meia, chegámos a acordar às 03h30 da manhã. A primeira coisa é ir diretamente a zona do catering, uma grande tenda, tomava lá um pequeno almoço à inglesa, com bacon, salsichas, feijão. Juntava também alguns suplementos que levava, como proteínas. Depois era hora de passar pela casa de banho e depois equipar para sair e ir fazer a ligação [para a zona de largada da etapa]
Uma hora, uma hora e meia antes da saída do 'bivouac', tinha de vestir roupa de frio porque as ligações de manhã são feitas muito cedo, estava sempre frio. Vestia casacos e calças grossas por cima [do fato]. As ligações curtas até a etapa eram cerca de 70 km, as mais longas chegam a 150, 180 km. Tivemos etapas com 520 km de ligação, antes da especial, era uma tareia. Tirávamos depois a roupa de frio que era guardada num saco com os nossos números e entregue à uma carrinha da organização, e partíamos para a especial.
No final da especial, em caso de ligações longas, vestia novamente o corta-vento até ao 'bivouac'. Sempre que chegava a especial, alimentava-me novamente, com barras de proteínas. Nas zonas de refuelling [reabastecimento de combustível], a meio das etapas longas, tentava comer novamente.
"Ali andávamos em alta velocidade, 130, 140, 150, 160 km/hora. Muitas vezes a pista permite, mas logo ali ao lado estão escondidos muitos perigos, valas, buracos, pedras..."
No final, levava sempre suplementos comigo para fazer um batido e o corpo absorver logo ali nutrientes importantes para a recuperação. Ao chegar ao 'bivouc', falava com os mecânicos para lhes explicar o que era preciso ou não fazer na mota, tomava banho, fazia uma refeição à tarde, um prato de massa ou algo assim. Depois prepara algumas coisas para a etapa seguinte, as bebidas, as provisões, as roupas.
No final do dia, por volta das 07h, 08h da noite, ia aos 'briefings' da organização para a etapa seguinte. Depois jantava rapidamente e tínhamos logo de ir dormir porque já eram 09h30, 10h da noite, era preciso acordar às 04h30, 05h da manhã para a nova etapa. Dormíamos umas seis, sete horas.
No Dakar, comia muitos hidratos de carbono, há muita necessidade de repor as calorias consumidas, podem ser cinco a seis mil calorias diariamente. Perdi quatro quilos nestes dias no Dakar. Tínhamos de comer muito todos os dias."
Mas o que ando aqui a fazer?
Bruno Santos foi uma das 96 motas (das 132 iniciais) que terminaram a prova. Muitos dos pilotos não aguentaram a dureza das 584 quilómetros da etapa maratona, dividida em dois dias, em que os pilotos não tiveram qualquer comunicação com o exterior. Uma dura etapa que o motard português superou com sucesso. E até gostou.
"Para mim foi bom. Quem mais sofre com uma etapa como aquela são os pilotos mais lentos, que não tem uma preparação física para estar 620 km só em areia. Foi uma etapa só com dunas e isso é exigente fisicamente. Quem está bem, aguenta, vai andando. Quem não está, começa a ficar exausto, a falhar as subidas e descidas, esgota as forças todas. Nas dunas, quanto mais rápido andares, menos as rodas enterram. Isso tirou muita gente para fora da corrida e fez muita gente passar para o Dakar Experience, que é para quem não consegue acabar uma etapa por motivos mecânicos ou excesso de tempo. Vi muita gente frustrada por esse motivo, gente que até vinha a fazer um Dakar regular", recorda.
Com os olhos postos na torre da sua Husqvarna FR 450 Rally, a olhar para o 'roadbook' e GPS, mas também em frente, a fugir das pedras e buracos, as lindas paisagens captadas pelas lentes dos fotógrafos ou levadas até nós pelas câmeras de televisão não chegavam, no seu esplendor, à visão de Bruno Santos. Não havia tempo para ver os camelos que passavam a poucos metros das motos e dos carros, dos habitantes locais à sombra das poucas árvores que iam aparecendo, a beber café e a apreciar a loucura dos que desafiavam, a alta velocidade, os perigos do deserto.
Mas na memória deste gestor comercial fica a alta velocidade com que os pilotos encaravam as paisagens quase lunares pelo deserto da Arábia Saudita.
"Quando estamos em zonas mais rápidas, a pista está boa, vamos bem e, de repente, aparecem ali umas pedras a meio e temos de estar com uma visão muito distante para não batermos nelas. Porque bater numa pedra daquelas a alta velocidade... é impossível aguentar", garante
As imensas e intermináveis dunas, gigantes na sua imponência, chamaram a atenção de Bruno Santos.
"Lembro-me de olhar para o velocímetro odómetro da mota que nos dá a distância e ver que estava há 300 metros a descer uma duna. [...] Quando estamos no alto daquelas montanhas de dunas lá em cima, às vezes nem temos noção do espaço, onde é que estamos. Mas por vezes chegamos a ponta da montanha e temos uma paisagem magnífica, onde temos um buraco de 300 metros e dali vemos tudo. Muitas vezes tinha vontade de parar e tirar uma fotografia para guardar aquela sensação. Mas é tudo tão rápido que não há tempo para olhar em volta", lamenta.
Nas duas semanas de provas, as saudades de casa, da culinária nacional, aumentavam a cada dia. Os pratos servidos, sempre com molhos, não eram do seu agrado.
As carnes e peixes, confeccionados com muitas especiarias estava entre as coisas que o português menos gostou.
Em jeito de balanço, Bruno Santos sublinha que os resultados foram "um bocadinho mais" do esperava. O segundo lugar entre os estreantes acabou por surpreende-lo "um pouco" porque havia muitos "pilotos de grande nome, com vida feita nas motas, no motocross, no enduro, que se preparam muito bem, com boas equipas" a fazerem o Dakar pela primeira vez.
"Curiosamente quem me venceu aqui na categoria 'rookies' já me tinha vencido no Rali de Abu Dhabi, onde estávamos na categoria 'Road to Dakar' que significa pilotos que nunca participaram no Dakar mas que estão para participar. Quem vencesse, garantiria a inscrição no Dakar, e eu tinha esse grande objetivo porque vencendo, isso daria uma grande ajuda financeira", conta.
Assim, Bruno Santos teve de entrar com os 18 mil euros de inscrição para si e para a mota, num total de mais mais de 60 mil euros gastos em inscrições no Dakar 2024, para toda a equipa.
Ainda com as imagens da prova bem vivas na memória, o piloto luso não quer ainda pensar nas próximas edições. Tudo vai depender do que puder reunir em termos financeiros e de equipa.
"Quando lá estamos, pensámos: 'Mas o que ando aqui a fazer?' E depois acabas por te superar, ultrapassar, tirar de lá uma grande conquista [...] O Dakar é uma lição para a vida. Vi gente emocionada, gente a chorar, gente a levar 'chapadas'. Vi muita gente que tem muito dinheiro, que pode fazer muita coisa com o dinheiro mas que chega ali e o dinheiro não serve", finaliza.
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